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OpiniãoLisboa

Poisos de prostitutas, submundos e duplicidades da moral salazarista

O que significa mapear a prostituição de rua para a confinar? Cuidar das aparências de uma cidade que queria atrair turistas? Mas não terá um tal mapeamento enormes implicações morais e políticas?

© Créditos: Fabian Sommer/dpa

Em 1947, o capitão Eurico de Castro Zuzarte registou os principais poisos ou estabelecimentos comerciais onde paravam as prostitutas de rua. Esclareceu que a polícia já dispunha do registo das diferentes casas de passe. Assim, no que respeitava aos poisos não era só a Baixa a estar contaminada ou infestada de prostitutas.

Eles espalhavam-se pelas grandes avenidas da capital: Almirante Reis, Duque de Loulé, Fontes Pereira de Melo, Liberdade e Praça Marquês de Pombal; Bairro Camões, Bairro Alto, São Pedro de Alcântara, Rua da Glória e adjacências, o Conde Barão e São Paulo, o Cais do Sodré, a Mouraria, etc..

Na Rua dos Correeiros, havia uma casa de toleradas com tabuinhas verdes nas janelas, onde as mulheres não vinham à rua. Em comparação, passaram a existir quatro casas de passe, com movimento permanente de mulheres na rua, a dar à volta pela Baixa em busca de clientes.

Esta circulação prejudicava as actividades comerciais e industriais da área, nomeadamente os hotéis Duas Nações, Francfort, Pensão Leiriense, que eram os de maior nomeada, mas também todos os hotéis, pensões e casas de hóspedes da Baixa. As famílias chegadas a Lisboa tinham vergonha de instalar em tais hotéis.

Muitas vezes, os polícias encurralavam as prostitutas nas casas de passe, pretendendo prendê-las para as multarem. Mas elas próprias ali se refugiavam e, quando os guardas voltavam as costas, voltavam a ir para a rua. Na Rua do Crucifixo, existia um dos maiores poisos na Antiga Vacaria Áurea. Nela, era tão grande a frequência das prostitutas que Zuzarte, uma vez, contou lá dentro 45, que acamaradavam com marítimos, operários, pequenos empregados e muita chularia.

A maioria das mulheres que frequentavam tal poiso tinham frequentado uma casa de passe que fora fechada pelo advogado Herlander Ribeiro, cujo escritório funcionava no mesmo prédio. As mesmas prostitutas passaram a ir em cortejo seguidas pelos respectivos clientes a outras casas de passe situadas noutras ruas da Baixa.

Mas o maior poiso de Lisboa parecia ser a Leitaria Globo, na Rua dos Condes. Assim sucedia desde o encerramento para obras da Chic, ao lado da futura sede do SNI. O seu horário era bem revelador, porque só fechava entre as 6 e as 7 da manhã. Uma vez, logo pela manhã, Zuzarte contou 52 mulheres e, num outro dia, pelas 11 da noite, 107. O mais escandoloso era o trânsito que tinham de fazer, atravessando a Avenida da Liberdade para a Rua da Glória e imediações, bem como para o Jardim do Regedor, Eugénio dos Santos, etc.

No Rossio, no pequeno poiso que era a leitaria do n.º 75, era comum haver prostitutas disfarçadas de senhoras que vinham às compras. O mesmo sucedia pelas paragens dos eléctricos, onde esperavam pelo cliente. O mesmo sucedia na Rua da Madalena, onde o poiso era a cervejaria Boémia. Outros poisos existiam, incluindo na Confeitaria Nacional e na Confeitaria Aliança, esta na Rua 1.º de Dezembro, ambas frequentadas por mulheres que se apresentavam com um certo luxo.

Na Praça dos Restauradores, a Taverna Imperial era outro dos poisos de "prostitutas de boa apresentação que fazem carreira de preferência para a Zita na Rua do Regedor e para a Luísa Miranda na Rua Eugénio Santos defronte da Arcádia". Na Avenida da Liberdade, contavam-se a Pastelaria Baiana e a Leitaria Pomarense. No Parque Mayer, assinalava-se o Vitória Bar. Na Rua da Glória, para a qual havia um rodopio permanente entre as 16h e as 7 da manhã, havia casas de toleradas, casas de passe e o principal poiso estava no Lusitânia Bar.

Sem preocupações de esgotar todas as referências aos sítios one se encontravam prostitutas, Zuzarte descreveu os locais em torno da Praça Marquês de Pombal. As prostitutas deambulavam por ali e no início da Avenida Fontes Pereira de Melo, a partir das 23h. Estavam em grupos de duas a seis, na esquina da Fontes Pereira de Melo com a Rua Camilo Castelo Branco, tendo como poisos certos as leitarias Liz e Silex Bar, na Rua Rodrigues Sampaio.

Já na esquina da Fontes Pereira de Melo com a Avenida António Augusto Aguiar, entre a 1h e as 3h da madrugada, notava-se a presença de prostitutas muito bem vestidas que serviam clientes de automóvel. Havia, ainda, outras leitarias e casas de passe que Zuzarte elencou nas ruas Gomes Freire, Gonçalves Crespo, bem como os grandes poisos do Cais do Sodré. A respeito deste último, sublinhou, “por estas imediações, desde o anoitecer, o circular numeroso e muito ordinário mulherio assume o aspecto de praga”.

Zuzarte passou em claro a informação precisa de que dispunha sobre poisos, casas de passe e de toleradas na Mouraria, Rua da Palma, Almirante Reis, Alcântara, Bairro Alto, S. Pedro Alcântara, Conde Barão, Rua da Graça e imediações. A razão para tal omissão no relatório prendeu-se com o facto de ter recebido ordem para proceder à entrega imediata dessa informação. Já no respeitante aos dancings, a razão para sua exclusão era outra: no seu entender, eles preenchiam funções que não deveriam ser postas em causa.

Funcionavam como "centros de variedades artísticas e, se prostitutas por lá vão, têm muita clientela, incluindo do sexo feminino, que lá vai pelo simples prazer coreográfico e distrair-se com a música e apreciação dos artistas, casas que têm a sua função própria na vida noturna duma cidade cosmopolita como já é a nossa Lisboa".

Isto é os dancings faziam parte de uma cultura noturna que se queria cosmopolita, correspondiam a uma procura artística (coreográfica e musical), além de proporcionarem aos homens e mulheres (cujos prazeres tinham de ser satisfeitos e que podiam frequentar tais centros) um contacto com prostitutas.

Com base no resumo das informações do Capitão Eurico Zuzarte, um indiscutível colaborador do regime de Salazar, será possível retirar algumas conclusões. Em todas elas, há uma preocupação sociológica que José Machado Pais formulou, a respeito de uma história da prostituição, mas para um período anterior: "em que medida os submundos de uma sociedade permitirão chegar a um melhor entendimento das suas estruturas?".

A primeira e mais evidente conclusão é a de que uma ordem social, concebida a partir das famílias e da moral católica de santificação da mulher – cujas raízes recuavam aos "projectos de regulamentação da prostituição propostos por burgueses conservadores e moralistas", desde a segunda metade do século XIX – se articulava com o mercado da prostituição, desde que este não estivesse presente nas ruas e fosse exibido de modo escandaloso.

Desde que, também, se evitassem as sobreposições, como por exemplo, todos os que frequentavam as casas de passe ou de pouca permanência não contribuíssem para "cenas de amoralidade e o completo desrespeito por todos e tudo, sem a menor atenção por senhoras, mesmo da maior honorabilidade" (como se dizia num outro documento do Secretariado, anexo ao parecer). Ou seja, a adesão ao salazarismo não implicava excluir do seu horizonte o mercado da prostituição.

Família e prostitutas, longe de se excluírem mutuamente, coexistiam desde que estas últimas fossem mantidas de forma discreta, confinadas às suas casas e, se possível, a um único bairro. E, ainda, desde que os seus clientes mantivessem a sua duplicidade, de maneira bem hipócrita. Na linguagem do já referido sociólogo, Machado Pais, à luz do relatório de Zuzarte, confirma-se a ideia de que se esbatiam as fronteiras que separavam "a Lisboa boémia da Lisboa respeitável".

Aliás, a ter em conta o esbater dessas fronteiras entre a Lisboa da boémia e a do respeitinho, num quadro caracterizado pela duplicidade e uma certa permissividade, é mais difícil reconhecer relações de homologia entre a prostituta e o vadio-mendigo, como sugeriu Susana Trovão. À luz do relatório de Zuzarte, só a custo se podem retirar dessas relações de homologia conclusões acerca do "'estado de perigosidade social', enquanto alteridade poluente, nódoa e chaga do corpo social" que o salazarismo atribuía tanto aos vadios como às prostitutas, em especial às clandestinas.

Preferível, porque mais pertinente, será considerar o que a socióloga Inês Brasão escreveu acerca da moral do Estado Novo a respeito do sexo e do corpo, nomeadamente o da mulher, pois nele existem traços de uma evidente duplicidade: "o quadro moral restritivo sobre o sexo mantém-se, considerando-o uma dimensão sagrada, embora tolere os prazeres silenciosos e silenciados. A outra ideia está relacionada com a imagem da prostituta: ela é tolerada mas apenas nas franjas do indizível, dos risos e das vergonhas caladas, dos trunfos de uma juventude ansiosa. O seu nome é proibido, aquilo que o seu corpo pode dar é proibido, mas é, ao mesmo tempo, acessível, demasiado acessível para um poder capaz de chegar à devassa da privacidade das pessoas se estas se revelassem contrárias ao 'espírito' do Governo".

Em segundo lugar, o modo de conceber o mercado a prostituição passava pela sua regulação. Esta era concebida, por um lado, como um projecto de confinar as prostitutas num único bairro, com o objectivo de fazer com que não se exibissem, nem infestassem as ruas de Lisboa, mantendo-se assim a imagem de uma cidade cosmopolita.

Por outro lado, a mesma regulação dependia do papel controlador e de vigilância exercido pelas patroas das casas de toleradas, que se responsabilizariam por retirar as prostitutas das ruas, com o único senão de controlarem as suas subordinadas em excesso, mantendo-as endividadas. Este quadro desenhado por Zuzarte das prostitutas "apatroadas" e registadas pela Polícia afigura-se bem mais positivo e integrador do que as outras representações da anormalidade das mesmas prostitutas propostas, pela mesma altura pelo médico Alfredo Tovar de Lemos.

Escreveu este último – com igual consciência de que os resultados da exploração a que as prostitutas estavam sujeitas pelas patroas eram os mesmos que os apontados por Zuzarte – recorrendo a uma linguagem da biopolítica centrada na separação entre o normal e o anormal: "As mulheres que se entregam a esta vida, está provado em trabalhos científicos, são em grande número anormais sob o ponto de vista psíquico, atrasadas, e, dada a insuficiência da sua instrução e educação, raras são as capazes de se governarem por si sós. São na maioria boçais, rudes e inexperientes. Daí o procurarem as facilidades quer a casa de toleradas lhes dá quanto aos problemas da vida diária, habitação, alimentação, vestuário, etc., não obstante ficarem sempre prejudicadas pela exploração de que são vítimas".

Em terceiro lugar, destaca-se notar todo um sistema classificatório, que se dispunha de forma hierárquica, o qual era utilizado para traçar a história das mudanças no mercado da prostituição lisboeta. Neste sentido, há que reparar: no contraste entre mercado lícito, controlado pela polícia, e clandestino que se admitia estar em expansão; nas diferenças criadas por prostitutas de luxo ou bem vestidas e dos seus clientes quando surgiam ao volante dos seus carros; bem como na tipologia dos locais frequentados por prostitutas, os quais se encontravam divididos entre casas de toleradas, casas de passe (que ficavam na mira do ataque de Zuzarte) e os poisos, constituídos por bares, cafés, casas de chá, restaurantes e leitarias.

À margem desta tipologia, encontravam-se os dancings associados às artes coreográficas e musicais, envolvendo o gosto das classes altas. A este último respeito, diga-se de passagem, que, ao considerar válida a ideia de uma Lisboa boémia, conotada com "o quotidiano de gente ordinária – prostitutas, fadistas, proxenetas, chulos, marialvas, marinheiros, etc." – , terão de se considerar muitos outros grupos sociais que ultrapassam a ideia de uma história "vista de baixo".

Em quarto lugar, um pequeno pormenor não pode passar despercebido, pois é revelador de um outro tipo de duplicidade. Trata-se do modo natural com que é referido o facto de mulheres, com um certo estatuto subentenda-se, poderem frequentar os dancings e recorrerem, tal como os homens, aos serviços das prostitutas. Enfim, neste reconhecimento do lesbianismo, conotado com um gosto artístico e extravagante, encontra-se uma forma de permissibilidade – talvez só acessível às classes altas – que só por si põe em causa as leituras em bloco de controlo sobre os costumes e a cultura do salazarismo.

Por último, será necessário utilizar o mapeamento da prostituição pelas ruas e bairros de Lisboa como resultado de uma prática que não corresponde necessariamente ao olhar do polícia ou ao do médico, mas que responde a uma preocupação pelas aparências e imagem da cidade. Um mundo de aparências que, longe de se esgotar em bairros confinados ou marginalizados, trazia para as principais artérias o espectáculo da prostituição, provocando uma reacção de repulsa.

É que "o mundo social pode ser pronunciado e construído de diferentes formas", como sustentou Pierre Bourdieu; e o "mapeamento do espaço simbólico no espaço social, possibilitando identidades partilhadas e espoletando a formação de grupos, nunca é perfeito, devido à elasticidade semântica da realidade social". O que estava em jogo era a representação de uma distinção social feita a par de um modo de estigmatização social, suscitado pela pressão do turismo, numa ocasião específica em que iriam ter lugar as festas da cidade.

Mais: se a Lisboa boémia e da prostituição da segunda metade do século XIX, estudada por Machado Pais, surgira associada às tabernas, aos toiros e às casas de fado, já em 1947, uma outra configuração existia que, sem negar a anterior, também incluía as leitarias, os bares e, no topo, os dancings.