Da menopausa aos bloqueios sentimentais e traumas recalcados
Vergonha ou tabu, neste mundo em que a ginástica ou a meditação procuram corpos perfeitos, a menopausa mais parece ser um pesadelo.
© Créditos: Jennifer Pochinski
Desde há quatro verões que cozinho, para um grupo de amigos, um tacho de arroz de garoupa. A verdade é que dois ou três dias antes, asso uma garoupa no forno. Preparo, então, um banquete mais restrito. Depois, desfaço as sobras, aproveitando-me das partes mais gelatinosas da cabeça e, sobretudo, do caldo. Quando preparo o refogado, deito-lhe um frasco de enxovas. Um truque que aprendi com uma cozinheira florentina. Só cometo uma heresia que é a de usar arroz estufado, por me parecer ser mais resistente. Sei bem que os entendidos torcem o nariz, mas a verdade é que não suporto um arroz que tenha passado o ponto de cozedura. Com facilidade prescindo dos vinhos alentejanos. Prefiro acompanhar com vinhos tintos e brancos do Ribatejo que estão cada vez melhores. Considero excelente a enologia do Casal Branco, da Casa Cadaval e da Quinta da Lagoalva.
No ano passado, senti que as coisas estavam a mudar depressa. Um conhecido médico com quem me cruzei, cuja fama de bom cozinheiro é lendária, confessou-me que em matéria culinária tinha prescindido de quase tudo, das máquinas de vacum aos artifícios da apresentação, para se ater à qualidade dos produtos e ao respeito pela sua consistência. Do que mais gostava era da comida de tacho. Por isso, os tempos de cozedura são um dos elementos principais e, no meu caso, convém que os nacos da garoupa sejam colocados só no fim, mesmo antes de se juntarem os coentros que intensificam o sal.
Sem entrar em pormenores, confesso que gosto muito da mesa comprida e estreita da casa que alugo (uma peça de arquitectura tão simples quanto sublime!). E, mesmo que não haja toalha, nem guardanapos de pano, os copos são suficientemente finos para fazer brilhar os vinhos. Os que não costumam gostar dos do Ribatejo ficam convertidos. Quando fico mais nervoso é no momento de servir os pratos, pois tenho medo de que o arroz absorva todo o molho. Foi o que, infelizmente, aconteceu este ano, quando estava a acabar de servir as 15 pessoas que sentei. Fiquei com pena, mas os últimos três amigos já provaram o arroz sem o molho....
A maior parte dos convivas tem-se mantido fixa, mas todos os anos há pessoas novas que passam a palavra acerca do que se come, bebe e conversa. A cumplicidade é grande entre nós e multiplicam-se as inevitáveis piadinhas da praxe. Sem querer ser indiscreto, não resisto a reconstituir algumas dessas conversas.
Começo pela da menopausa, sobre a qual mulheres e homens pouco falam. Vergonha ou tabu, neste mundo em que a ginástica ou a meditação procuram corpos perfeitos, a menopausa mais parece um desses pesadelos de que não se fala. Calores para aqui, mudanças súbitas de humor para acolá, perda da líbido nalguns casos, vontade de estabelecer rupturas e recuperar o tempo perdido criado pelas relações longas e monótonas, desnorte ou histerismo nas interpretações machistas, etc. A conversa fluiu bem, na condição de não passar do inventário de temas a percorrer. Não foi fácil chegar ao âmago da coisa. E claro que foi na questão da líbido que as coisas começaram a fiar fininho.
– É que não estamos na Noruega, conforme me foi avisando uma querida amiga. Por isso, que não viesse eu estender a casca de banana para espreitar pelo buraco da fechadura e perceber como ia a líbido de cada um. A tolerância, a abertura a todas as sensibilidades e o enorme relativismo cultural, dadas as experiências de vida dos meus convidados, eram uma coisa. Outra, bem diferente, era a possibilidade de cada qual se pôr a falar da sua líbido. Em linguagem cara, não existiam sequer condições de possibilidade para o fazer. Só não percebi bem o que nos distinguia dos noruegueses. O treino obtido pela prática da psicanálise? A descontracção de uma sociedade mais rica, mas porventura mais alcoolizada? Sinceramente, não sei.
Houve também quem logo protestasse e sacudisse a água do capote. Foi então que uma outra amiga perguntou: por que razão se falava da menopausa e se escondia toda e qualquer referência à andropausa? Ainda por cima, esta surge sob a capa, muito mais benigna de crise da meia-idade, quando os homens calvos e com barriga a chocalhar, mais ou menos alcoolizados, se lançam na compra da mota de grande cilindrada ou, os que podem, se passam a pavonear ao volante de um “cabriolet”. Ridículo! Mais ridículo, ainda, quando todos sabemos que a maior parte das mulheres envelhece melhor que os homens.
Maria, que é entre as minhas amigas aquela com quem tenho maior cumplicidade, vai no terceiro casamento e conta com quatro filhos quase todos criados. Tem uma graça especial, sobretudo, quando evoca a sua própria experiência e um rol de relações que não resultaram. Os seus olhos rasgados tanto quanto o seu descaramento, misturado com muitas dúvidas, dão-lhe um encanto especial. Foi ela que lançou o segundo tema das conversas que entraram pela noite fora: o do bloqueio sentimental.
Quando era mais nova, por duas vezes, confrontou-se com outros homens que lhe confessaram estar bloqueados nos seus sentimentos. Se bem percebi, queriam-lhe muito. Presumo até que gostassem de a exibir como um troféu, no quadro dos seus sentimentos machistas, mas não passavam daquilo. O tal bloqueio não os deixava entregarem-se. Aprendeu a lição, em dose dupla. Ao princípio, começou por pensar que havia ali qualquer coisa de mal resolvido com as respectivas mães. Mães fortes, omnipresentes, talvez mesmo castradoras, não permitiam que os filhos se soltassem e se livrassem dos ditos bloqueios.
Chegou também a pensar no sentido inverso: homens que seguiam o modelo de contenção sentimental dos seus próprios pais, que não se livraram nunca dos tais bloqueios. Nesta busca da interpretação certa para os que lhe tinham confessado os seus bloqueios, em lugar de lhe terem dito que a amavam, chegou mesmo a ensaiar uma via diferente. Concretamente, passou a utilizar a mesma linguagem e a confessar que estava bloqueada sempre que se confrontava com um homem que não lhe agradava e do qual sabia que nunca iria gostar. Ou seja, em lugar de dizer simplesmente que não se queria abrir a nenhum tipo de relação, a minha amiga Maria passou a evocar esse vocabulário psicologizante dos bloqueios sentimentais.
Estou consciente que não sou só eu que me sinto atraído pelas conversas onde se toca numa esfera mais íntima ou subjectiva. Partilho a mesma atracção com a maior parte dos meus amigos. Durante o jantar, só senti um desconforto maior da parte de uma delas. Psiquiatra de profissão, sempre que abordamos este tipo de assuntos, parece encolher-se e querer guardar distância. Às vezes procura surpreender pelo comentário inteligente. Claramente mais fundamentado pelos anos de psicanálise que já leva consigo e lhe permitiram alcançar uma enorme serenidade. Desculpo-lhe tudo, mesmo a distância que vem junta com uma certa sobranceria.
Foi com ela que aprendi algo que me fez pensar muito nos últimos anos e que foi o terceiro tema das conversas à volta da mesa. Para o explicar, precisava de mais espaço do que aquele que uma crónica permite. É que existem muitas nuances e pormenores que seria necessário ter em conta para compreender bem o sentido das suas palavras, que se constituíram, para mim, numa lição de vida. Resumo o que se tratou, com a consciência de não conseguir passar de um resumo telegráfico, muito tosco, que pode suscitar interpretações erradas.
Desde sempre, aprendera que a transparência, depois do mergulho na subjectividade e na introspecção, se deveria constituir numa norma de vida. Ou seja, sempre se me afigurou necessário procurar não só aprofundar o que somos, mas também tentar levar uma vida com as janelas abertas. Mal comparado, o modelo era um pouco à maneira das salas holandesas que permitem, a quem passe na rua, ver o que se passa lá dentro, pela simples razão de que não há nada a esconder. Pelo contrário, até nos devíamos orgulhar dos nossos estados de alma expostos de forma clara.
Pensei, assim, que a minha crença era produto de uma confluência. Por um lado, de uma cultura confessional antiga, cuja matriz é fácil de identificar e que participa de uma exigência de autenticidade. Por outro lado, de uma cultura psicologizante superficial, dita freudiana, que considera que a única forma de ultrapassar os traumas é falando neles. Isto é, abrindo todas as janelas. E foi aí que aprendi com a minha amiga psiquiatra algo de muito simples, mas que me parece ser bem certeiro: há traumas que, por serem tão dolorosos, têm de ser recalcados. Precisamente, porque a sua memória ou evocação constantes provocam uma dor insuportável. E aí, mais importante do que falar neles, é aprender a ir à volta, circundando-os ou fintando-os.
Conto essa última lição sobre a qual conversámos à mesa, tal como se fosse minha, um pouco a exemplo da minha amiga Maria que adoptou para si uma justificação de que já tinha sido alvo. As conversas à volta da mesa, com tudo o que implicam de trocas, têm a vantagem de podermos aprender com os outros a viver melhor. Talvez devido a essa avidez de comer e conversar, não tivesse sobrado nada do tacho de arroz de garoupa. Apesar de ainda ter havido melão, para a sobremesa.
*O autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.
Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto
Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).