Amor, dor, sentimentos e bloqueios...
Amigos e amigas procuram, em cada frase que escrevo, perceber a quem me refiro e que ressentimentos carrego comigo, sempre que falo de sentimentos. No fundo, o que pensam é: pois, pois, com a verdade me enganas!
© Créditos: José Tagarro, Autoretrato, 1929 (Colecção particular
Desde que comecei a escrever sobre sentimentos, mudou a percepção que os meus amigos tinham de mim. Durante anos, fui conotado por uma rigidez disciplinar que não interessava a ninguém e encerrado numa espécie de quotidiano de arquivos e bibliotecas, com o seu bolor livresco e respectivo cheiro a bafio. Uma autêntica secura, sem emoções. Mas a verdade é que a minha imagem se alterou porque me tornei mais confessional, mais ligeiro e disponível para tornar público o meu próprio diário sentimental. Tudo isso, apesar de muitos desconfiarem que por detrás da minha nova imagem possa mesmo estar uma ponta de sinceridade.
A pandemia, que nos ensimesmou a todos, tinha aberto a estrada para o mergulho na intimidade. E o registo confessional, não no sentido de peregrinação interior, mas como uma espécie de conversinha psicologizante, que tanto me enerva, como me atrai, acabou por se impor como modo fácil de comunicação.
Quando da pandemia passámos para a guerra, o choro colectivo frente a tanto sofrimento – reconheça-se, em linguagem que constitui uma evocação cruel – veio ajudar à festa. Por todas essas razões, quem não quer hoje ler, conversar e sentir os males da alma, bem como encontros e desencontros amorosos?
Ainda no outro dia, a meio de um jantar volante de amigos, se começou a dançar ao som de uma musiquinha ligeira, com grande mistura de ritmos africanos, latinos e disco, e pude sentir bem que aquilo que todos mais queriam era sentir qualquer coisa. Rodopiar para lá e para cá, emparelhar nem que seja por uns breves momentos, fazer uma roda e sobretudo sentir que, através de uma linguagem que é mais de gestos e corporal, estamos juntos. Tudo isto para mandar a solidão às urtigas!
O pior nesta deriva sentimental, em que me apetece experimentar outras vozes e acolher uma diversidade de registos, alguns deles mais ou menos inventados, é a severidade de alguns juízos. Há quem pense que procuro imitar a Margarida Rebelo Pinto que deve ser boa no que escreve, pois há muitas pessoas que a conhecem, mas nunca li os seus livros. Outros acusam-me de andar a requentar as ideias de Francesco Alberoni sobre o enamoramento.
Sinceramente, sempre pensei que estes meus bocados de prosa estavam mais próximos do voyerismo de Fialho de Almeida. Mal comparado, sinto-me como Carolina, personagem do conto intitulado A Ruiva, quando “da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco de pinho, podia ver o que se passava na alcova dum pobre bordel fronteiro. Apagava a luz, para não ser vista; subia ao banco, encostada à janela; e ali, durante horas, passava a espreitar o que via a vizinhança”.
Mas o pior de todos os juízos vem dos meus amigos e amigas mais chegados que procuram, em cada frase que escrevo, perceber a quem me refiro e que ressentimentos carrego comigo, sempre que me queixo. Por mais que lhes explique só me interessarem os sentimentos e que, por isso, invento muitas personagens para falar acerca de algo que considero mais vital, olham-me de soslaio e desconfiados. No fundo, o que pensam é: pois, pois, com a verdade me enganas!
Com tanta efervescência sentimental e rodopios de dançarino à parte, não posso deixar de falar já do cansaço que por aí anda. Uma espécie de cansaço que cheira a descrença numa vida que possa ser vivida mais à flor da pele. Bem sinto os olhares e reprovações. Com eles, vêm as admoestações e o cepticismo em relação a tudo que não encaixe na norma. Uma espécie de entendimento burocrático de como resistir ao quotidiano sem chama, estando ou não em causa relações, que se mostra sempre contrária ao sangue na guelra.
De todos os lados, ouço o mesmo: tens de ser razoável, arranjar alguém para os diferentes invernos que aí vêm e, no fundo, deixares-te de fantasias. A poesia virá com a aceitação do compromisso e dos outonos resignados. Sem grandes picos de excitação, nem entusiasmos. A companhia vale por si. Uma lengalenga sem encanto, em que não me revejo.
O facto é que os que querem sonhar têm dificuldade em aceitar os compromissos. Logo, vão estendendo os afastamentos, a ponto de estes passarem a ser superiores aos encontros. E mesmo que se diga que nada se critica no outro e que, tão-pouco, se quer fazer com que ele ou ela mude, a pretexto de se aceitar que cada qual está numa relação como quer e pode. Apesar de tudo isto, dizia, o certo é que as relações se dissipam. Tornam-se tão subtis que, na sua volatilidade, desaparecem.
Os sentimentos são assim. Servem de instrumento para nos aproximarmos dos outros. Mas, paradoxalmente, também nos levam à recusa do compromisso, logo, à volatilidade que dilui as relações e nos faz sentir sós. Admito que, ao escrever isto, estou a pensar mais em dar sentido às palavras que escrevo do que, propriamente, a espreitar para a vida dos outros, em cima do tal banco da Carolina.
Sei ainda bem que, chegados a este ponto, precisava de uma ideia chave para concluir em beleza. Mas nenhum argumento, grande ou pequeno, me ocorre. A razão para esta incapacidade só pode estar nas minhas limitações e falta de treino em enveredar por grandes abstracções. Aliás, a esses quadros de orientação universal, que convidam à formulação de máximas do comportamento, prefiro sempre a petite histoire dos casos e personagens. Não sei se, contando a história da Maria do Carmo, não conseguirei ilustrar melhor o que sinto ou, melhor, aquilo com o que me solidarizo, do ponto de vista sentimental. Vale a pena tentar.
Naquele sorriso, sempre pressenti uma tristeza resignada. Assim sucedia não por conformismo, mas por ela própria achar que nada mais valia a pena. Depois da dor causada por uma série de separações forçadas, estas sem dúvida determinadas por lutas de egos incompatíveis, dado os desejos emancipados que em cada qual se escondem. Depois de tantas outras dores derivadas de situações e vontades causadas por filhos, pais e demais família. Era difícil encontrar uma ranhura, mais pequena ainda que uma janela (um postigo não sei se será uma imagem demasiado ridícula) para ver para fora de um mundo enredado em tantos fios donde era impossível sair.
Enfim, se o sorriso triste de Maria do Carmo se passou a constituir numa intriga para onde passei a espreitar, para ela não havia nesga através da qual se pudesse projectar. E, no entanto, continuei a acreditar que isso seria possível, num futuro próximo. Isto é, sempre acreditei que, um dia, ela iria conseguir transformar o seu sorriso numa maneira de voltar a viver em função dos seus sentimentos. Tudo isto, na condição de se disponibilizar para uma nova vida, sem bloqueios, livre do enredo que sobre ela se abatera.
Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto
Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).