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A desigualdade entre géneros, as supermulheres e as relações longas

Uma amiga escreveu-me o seguinte: – Traço o meu mapa de possibilidades, frente ao que mais me seduz, e coloco à frente a ideia de uma relação longa. Mas a montanha que tenho à minha frente, com tantos caminhos, é difícil de transpor.

© Créditos: Paula Rego, “A Família”, 1988

Nos últimos tempos, interessei-me pelo modo de fazer funcionar relações a dois. Tenho observado com atenção os que me rodeiam e conversado de forma aberta. Sei que estar sentado à volta de uma mesa com amigos e conhecidos ajuda a perceber melhor as coisas. Duas pessoas pensam melhor que uma, três melhor que duas e por aí fora. A mesa, talvez por reportar a uma realidade precedente, a da família, não tem só a vantagem do comes e bebes; ela permite um outro tipo de transparência.

Sem pretensões de fazer qualquer estatística, o que mais me choca é a desigualdade que reina entre os casais. Uma desigualdade que tanto leva as mulheres a tratarem os seus homens como uma espécie de filhos mais velhos, seguindo o estereótipo da figura maternal de tratar os machos como uns meninos; como se baseia numa espécie de inutilidade, atavismo ou simples indolência em que muitos homens se refugiam. O pior de tudo é que a principal margem de actuação destes está, se tanto, centrada na ideia de que fizeram e continuam a fazer disparates. Têm, por isso, de brincar a uma espécie de jogo das escondidas, para prolongar a sua adolescência retardada.

Acredito que essa desigualdade possa criar, em cenários mais íntimos, um sentimento de revolta do lado masculino. Imagino, até, alguns homens a sentirem-se suficientemente frustrados para se constituírem numa espécie de panela de pressão, pronta a explodir a qualquer hora. Mas, do lado das mulheres, esta é uma situação que se afigura, por vezes, bastante utilitária para quem se emancipa, pagando, no sentido material e espiritual, e fazendo uma avaliação clara de custos e benefícios.

Confesso que até tenho medo de explorar as consequências dessa desigualdade. Sobretudo em relação a casais com filhos, pois esses são os homens que desapareceram de anteriores relações e não contribuem com nada. Antes de mais, por não conseguirem ser pais. Insistindo em ser simplesmente filhos, partiram à procura de quem lhes desse colo. Uns falhados e inúteis da treta que nunca cresceram, nem resolveram as suas situações, sobretudo, com as suas mamãs.

O contraste é grande com o outro lado, onde vejo mulheres adultas com carreiras brilhantes, com múltiplas valências e uma capacidade rara para reflectir acerca do lugar em que estão e da desigualdade em que têm de viver, para fugir à solidão. Creio mesmo que o padrão da desigualdade entre géneros se encaminha, a passos largos, para a situação acabada de descrever. Isto é, de um lado, estão as mulheres emancipadas, com carreiras profissionais atraentes e maturidade sentimental; do outro, encontram-se os homens que não cresceram e que, como nos quadros da Paula Rego, são passivos.

Não descrevo esta situação para contrariar ou provar que são inúteis as reivindicações emancipatórias do lado das mulheres. Pelo contrário. Sei bem que há inúmeros casos em que a desigualdade condena a mulher a ser a que ganha pior e a quem é exigido um lugar de submissão, numa vida a dois. Pode também dar-se o caso de mulheres que utilizam o seu estatuto de maior emancipação para se transformarem numas estouvadas, julgando que estão a seguir o figurino da supermulher independente.

Na casa dos cinquentas, verifico que a situação é bastante diversa. E mesmo que não me possa pronunciar sobre os casais do mesmo sexo (apenas conheço dois, que têm relações de uma estabilidade e de um afecto invejáveis). Tenho de reconhecer que há muitas mulheres que entenderam a emancipação nos termos em que outrora os machos agiam e se pronunciavam.

No outro dia, num jantar fora com amigos, defendi a ideia na qual acredito e de que tenho, à minha volta, vários exemplos. Ou seja, sou pelas relações longas e tenho por elas uma enorme admiração. Talvez porque só nelas exista a conquista de uma intimidade profunda capaz de suplantar qualquer tipo de atracção fatal. Quando confessei esta verdade, uma amiga confrontou-me com o aborrecido que implicava o quotidiano, o esticar do tempo, as idas ao supermercado, os almoços de Domingo em casa dos sogros e a monotonia das estações. Para ela, o que mais importava era o prazer do momento. Talvez por isso tivesse sentido a necessidade de começar a falar, livremente, das suas aventuras. Achei que estas – aliás, de uma banalidade insuportável – eram mais o resultado da busca de uma excitação fugaz, constituindo um padrão que vem sempre acompanhado de algo extravagante ou até violento.

Reconheci bem aquela atitude. Acho até que já fui assim. Não será essa a melhor forma de definir os idos anos 80 ou 90 do século passado? Não sei bem, porque não vivo do passado, nem tão-pouco da sua constante rememoração. Para mim, o momento é o que se define a partir de um padrão e o que me parece mais generalizado, agora, é o tipo da mulher que toma conta do seu homem, mais da casa, dos filhos e que, ainda por cima, ainda consegue manter uma vida profissional entusiasmante.

Noto, até, que tanto há raízes bem populares nas matriarcas de que que falo, como também verifico o mesmo padrão de supermulheres entre as mais privilegiadas. Com licenciaturas e pós-graduações, carreiras em muitos dos casos internacionais, com filhos que são só delas, muitos deles já crescidos. Tudo isto tendo na base uma inteligência arguta, da qual não está excluída uma graça irónica. A verdade é que são dezenas as mulheres que encaixam neste modelo.

Enquanto perguntava aqui e acolá por esta ideia de um padrão de supermulher, um amigo disse-me que, das cinco amigas mais próximas da sua mulher, todas elas correspondiam ao mesmo modelo. No Natal e não só, lá vão elas fazer as compras para os seus meninos que desistiram de o fazer, dependendo delas economicamente e tendo-se afastado dos seus filhos, simplesmente porque são eles que querem ser tratados como tais.

Se em Itália os mesmos homens ficariam a viver com as mães, que lhes engomam a roupa e fazem a pasta como mais ninguém sabe fazer, transformando-se nuns autênticos "mammoni", em Portugal, arranjam mulher e até chegam a ter várias relações. Nestas, encontram o que deveriam ter conseguido à custa das suas mães. Um horror!

Não conto isto tudo, com uma carga subjectiva evidente e padecendo de uma notória parcialidade, para me elevar. O que mais me interessa é perceber como funcionam as relações longas e não me parece ser obrigatório que elas tenham de ser sustentadas por supermulheres com uns reconvertidos "mammoni", presos por uma trela (para não fazerem disparates!).

O problema, pelo menos no meu fraco entender acerca de sentimentos, é saber como é que a busca da excitação, associada ao momento excepcional e único, se pode instalar no quotidiano, sem que este fique a cheirar a bafio e a arrastar-se por aí como se fosse a morte lenta. Claro que não sou o único, o primeiro, nem o último, a querer fazer esta quadratura do círculo. Quem não conhece o confronto entre as forças explosivas do carisma e as que estão ligadas à acção rotineira? Resolver o modo como se faz reviver no dia-a-dia, a erupção que nos liga a uma qualquer esfera transcendente, ou nos excita por via ascética ou corporal, é um problema que quase não tem solução. E, no entanto, é disso que parece andarmos todos à procura.

O meu argumento é simples. Pelo menos gostava que assim fosse entendido. Estou apostado em relações longas. Mas tenho à minha frente um cenário em que, de um lado, estão as supermulheres que embalam os seus homens, como antes as mamãs o faziam. Do outro, estão ainda as mulheres que, eventualmente fartas de sofrer com a monotonia do quotidiano, querem paródia, experiências e não estão dispostas a abdicar da festa. Sei que estou a simplificar, pois entre as duas vias acabadas de mencionar, há muitos caminhos e tipos diferentes.

Uma situação mais intrigante tem, para mim, já algum tempo. Conheci uma mulher que queria sair e conversar, mas recusava-se a falar de qualquer indício que fosse que tivesse a ver com o seu passado ou que pudesse ir lá dar. Uma complicada, pensei, talvez vítima de um grande trauma. Não tentava sequer transformar o seu exílio interior num enigma ou num mistério capaz de despertar o interesse nos que a rodeavam. Extremamente bem-sucedida de um ponto de vista profissional, com um currículo invejável nas matemáticas, a sua solidão assustava-me. Não era uma supermulher como as outras que tratava do seu "mammoni". Vivia para ela e satisfazia-se sozinha, considerando que qualquer investida do exterior não passava de uma intromissão a rejeitar.

Existem muitas outras mulheres que representam outros caminhos. Lembro-me bem de uma que foi sugada pela vida. Uma estrela na adolescência e na entrada da vida adulta, depois, deixou-se arrastar pela resolução de um problema psicanalítico, que envolvia a relação com o avô, por quem tinha sido educada. Uma série de escolhas mal feitas com namorados que acabaram por viver à sua custa. Problemas com filhos adolescentes, a que se vieram somar más decisões do ponto de vista profissional e, até, uma situação de desemprego. Tudo isso acabou por funcionar como uma acumulação de traumas, frente aos quais aquela que chegara a ser tida como uma estrela teve de encontrar modos de escapismo.

Entretanto, outra amiga, sabendo das minhas indagações, escreveu-me para me contar o seguinte. Reproduzo aqui, pois não diria melhor: – Traço o meu mapa de possibilidades frente ao que mais me seduz e coloco à frente a ideia de uma relação longa. Mas a montanha que tenho à minha frente, com tantos caminhos, é difícil de transpor. É certo que a minha idade também já não ajuda a manter em aberto uma grande diversidade. Tenho a certeza que uma relação longa é difícil, trabalhosa, um golpe de sorte, mas meio caminho para uma vida mais feliz. Acho que vale a pena tentar. Talvez esse seja o projecto mais difícil. E, por isso, longe de ser fruto de uma resignação, afigura-se bem excitante...

No entanto, uma outra amiga atirou-me à cara todo este paleio e escreveu-me o seguinte: – Estás fechado no teu mundo burguês e esqueces milhares de mulheres que são todos os dias vítimas de violência doméstica. Muitas acabam mortas, porque não têm sequer alternativas de vida. Estás fechado no teu mundo e esqueces que as mulheres continuam afastadas dos lugares de liderança que realmente importam, porque os círculos de poder são decididos em jantaradas de amigos, frente a um jogo de futebol. Estás fechado no teu mundo onde cantas a relação utópica, enquanto insistes em nada fazer para a ter. Estás fechado no teu mundo e continuas sem perceber o que se passa à tua volta…

(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)

Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto

Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).