Contacto
OpiniãoAndamos todos ao mesmo

Voltar a viver com alguém? Nem pensar

Partilhar tarefas é bom. Mas não ter de discutir por causa do tubo da pasta de dentes aberto ou das meias no chão é melhor. Depois dos 40, se voltamos (ou começamos) a viver sozinhos, dificilmente voltamos atrás. E há quem não abdique disso.

Querida mãe,

É meio estranha, esta coisa de lhe enviar emails em vez de escrever, mas gosto da ideia de poder deitar as ideias cá para fora sem estar a pensar como é que a mãe as vai interpretar. Se vai ficar chateada ou ofendida ou irritada ou nervosa. Assim lê tudo a eito, relê, volta a reler, respira fundo, pensa uma vez, pensa duas, conversa com o pai, conversa com o meu irmão, reflete mais um pouco e depois logo responde. Com calma, sem nos chatearmos, como acontece tantas vezes.

Escrevo-lhe para explicar melhor o que eu queria dizer quando falei de não voltar a viver com alguém. Eu sei que pode parecer estranho, só porque me separei, estar para aqui a dizer que não volta a entrar ninguém em minha casa ou nunca mais haverá roupa de homem nas minhas gavetas. É um pouco mais complexo do que isso, mãe.

Não significa que não volte a ter relações. Não significa que não volte a envolver-me. Não significa que não tenha um namorado. Ou dois. Ou três (um de cada vez, esteja descansada). Não significa que ficarei celibatária. Significa apenas que não me apetece voltar a viver com outro adulto. Não me vejo a viver com outro adulto. Não concebo a ideia de voltar partilhar o espaço com outro adulto.

Não quero cuspir para o ar e dizer "desta água não beberei", mas depois de uns tempos por nossa conta, custa bastante voltar a ter de pedir opinião sobre o que fazer para o jantar ou ver quem é que vai às compras ou muda a areia do gato.

Não me interprete mal: não se trata de torcer o nariz à partilha de tarefas. Nada disso. Essa é a parte boa. O que eu não quero – já não quero – é a parte má. E a parte má é abdicar de tudo o que consegui e vou conseguir ter para mim e para os meus filhos nos próximos tempos.

Não quero ter de pedir para não deixar os sapatos fora do sítio – ou que me digam a mim para não deixar os sapatos fora do sítio na minha própria casa. Não quero ter de estar preocupada porque o tubo da pasta de dentes ficou aberto ou ter de chamar a atenção a alguém para o fechar.

Não quero ter de pensar se há mais ou menos roupa na cama porque eu sou encalorada e a outra pessoa não. Não quero ter de dormir com o estore ligeiramente aberto só porque alguém não gosta de dormir às escuras. Não quero ter os livros das estantes organizados por autores ou por temas. Sobretudo se não forem só os meus livros.

Não quero ter de gramar documentários de que não gosto e não quero que me chamem a atenção porque a luz da sala ficou acesa – ou porque eu pedi para a apagarem. Não quero ter de voltar a estender camisas de homem (muito menos passá-las a ferro) e não quero ter outra pessoa a arrumar a minha roupa interior, os meus cereais, a minha louça.

Não quero ter de explicar como gosto do arroz e não quero ter de comer arroz que não seja feito como aprendi – como a mãe me ensinou. E acima de tudo, não quero que os meus filhos tenham de se habituar aos gostos e preferências e manias de outras pessoas cá em casa além de mim.

Uma coisa é ter um namorado e termos de decidir se vamos de férias para a praia ou para o campo, se almoçamos em casa dos pais dele ou se posso faltar a isso, se vamos ao cinema ver o filme A ou B. Para isso estou disponível. Faz parte de ter uma relação. Mas estas são coisas a fazer fora de casa. O que eu não quero, acima de tudo, é a carga mental das coisas dentro de casa. Não quero a partilha do dia a dia. Do quotidiano.

Se eu nunca tivesse vivido com ninguém, menos mal. Mas quando começamos a viver sozinhos depois dos 40, ai mãe... acho que não há volta atrás. Agora sou só eu e os miúdos e, semana sim semana não, só apenas eu. Sem mais ninguém. A casa para mim. Sem dar cavaco a ninguém. E não há nada melhor do que isto, agora. Pelo menos para mim. E aposto que há mais pessoas a pensar como eu.

Um beijo da sua filha.

Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.