Querida filha, que se lixe a santidade do matrimónio...
... e a tradição e os hábitos e a culpa. Se queres divorciar-te, vai em frente. Mas não esperes que os teus pais tenham sempre bom senso nisto. Às vezes só conseguimos meter os pés pelas mãos na tentativa de ajudar.
Paulo Farinha © Créditos: Rodrigo Cabrita
Querida filha,
Recebi o teu e-mail da semana passada. Li-o várias vezes. O teu pai também leu. E fez-me aquela cara de quem diz “eu avisei-te”.
Comecei a responder várias vezes. Mas nunca era bom, nunca era suficiente. Já apaguei tantos disparates e já me arrependi de ter apagado outros. A vantagem de escrevermos em vez de falarmos é que conseguimos organizar as ideias e não deixar que a irritação e o calor dos momentos se transformem em discussões. Tu escreveste tudo o que tinhas aí dentro sem eu te interromper, agora eu respondo-te também com calma e tu lês como, onde e quando quiseres. Vou sugerir esta tua ideia a todas as minhas amigas cujos filhos se irritam com elas quando conversam (e são muitas).
Acho que nunca te disse isto. Por isso vai agora por aqui: não contaste novidade nenhuma, quando nos disseste que tu e o João se iam separar. Foi um choque, sim. Mas não um que não antecipássemos. Talvez o teu pai, pelo feitio dele e por ser tão próximo de ti, já estivesse preparado – serás sempre a menina do papá, como o teu irmão é menino da mamã e é tal e qual como tu dizes: não há mal nenhum nisso. Mas eu não. Eu não estava preparada. Sabia que podia acontecer, sabia que o tempo ia passando e as coisas não pareciam melhorar, mas tinha uma esperança lá no fundo que vocês dessem a volta. Que o João te reconquistasse. Que tu reconquistasses o João. Ou que se perdoassem do que quer que fosse que vos tinha magoado. Sei lá... Passaram-me tantas coisas pela cabeça nestes anos que até já perdi a conta às vezes em que tentei falar no assunto. Umas melhor, outras pior...
E tu, filha, ou fingias que não reparavas ou ias empurrando com a barriga. Mesmo que nós nos oferecêssemos para ficar com os miúdos para vocês terem um fim de semana, para irem jantar, para namorarem, para viajarem. E eu, filha, sem saber bem o que fazer ou como tocar no tema. Quando te perguntava tu respondias que estavas bem, mesmo que eu até já notasse na forma como subias as escadas, como entravas em casa, como nos cumprimentavas... Estavas funcional mas não estavas feliz. Levavas a vida para a frente mas ias ficando para trás. Os pais percebem isso. Até quando os filhos nos entram pela porta dentro nós sabemos ler estas coisas só de ver a vossa cara ou ouvir a vossa voz. Até ao telefone eu percebia que tu não estavas bem.
Sim, claro que pensei que pudesse haver outras pessoas. Um caso sério ou uma aventura. Do teu lado ou do lado do João. E claro que pensei que pudesses estar a precipitar-te. E claro que pensei que o João pudesse tratar-te mal. Pensamos em tudo, quando um filho nos diz que se vai divorciar. Até chegar ao momento em que dizemos que apoiamos e cuidamos e que estaremos sempre do lado dele, nós pensamos em tudo e colocamos todas as hipóteses. Procuramos razões em tudo. E, se não as encontramos, se não há nada que nos seja gritante, marcante, desesperante, nós pensamos no básico: tinhas alguém que te ajudava a pagar contas, que cuidava de ti e dos miúdos e o resto logo haveria de se resolver. Ou a vida logo colocaria tudo em ordem.
Não é uma forma boa de pensar, eu sei. Adiar os problemas e varrê-los para debaixo do tapete não é boa solução. Mas eu só te queria segura e cuidada. Talvez um dia entendas, se passares por isso com os teus filhos. Ou então não. Se calhar ficaste tão magoada com a minha reação que vais educá-los de forma diferente e vais trabalhar para que não passem pelo mesmo.
Não pensei, em primeiro lugar, que a razão podia ser outra. E uma bem mais simples: tinha-se acabado o amor. Eu, pelo menos, não pensei. Fui educada noutros tempos, cresci noutros tempos, vivi outros tempos. Habituei-me – ou habituaram-me – a pensar que o amor, sendo importante, não é tudo. Ou pelo menos eu acostumei-me a pensar assim. Se calhar fiz mal. Se calhar não estive bem e o teu pai também não, ao longo destes anos, quando achámos que superámos as nossas crises em vez de irmos à nossa vida. Talvez se fosse agora, se tivéssemos menos de 50 anos e vivêssemos os tempos atuais, não tivéssemos ficado juntos. Não sei. Acho que nunca vou saber. Nem ele. Não estou arrependida de ainda estar com o teu pai, filha, mas não sei se ele pensa o mesmo. Na verdade nunca saberei.
E esta culpa, estes remorsos, esta cruz que nos impingem desde que somos pequenos, esta coisa judaico-cristã que nos faz sentir culpados do que quer que seja que possa correr mal. O que seria de ti? O que seria do teu irmão? O que seria de mim? Rai’s parta, se calhar eu penalizo-me e irrito-me e digo que não compreendo e é tudo porque no fundo, se calhar, eu tenho é inveja de ti. Da tua coragem. Do passo que deste e eu não fui capaz de dar. E se calhar, também por isso, eu faço deste o meu drama. Desculpa, filha.
Podemos falar sobre isto noutra altura, sim. Se tiveres paciência para me ouvir e me emprestares um ombro. Acho que ainda temos muita coisa para dizer – ou escrever – uma à outra. Mas é como dizes: agora é o teu tempo, não o meu.
Um beijo grande da tua mãe.