'Punk as you are'
Os 5ª Punkada não são uma banda qualquer. São um maravilhoso feitiço, que nos chega de Coimbra. Esta banda é composta por músicos de imenso talento, que formam um só organismo, que comunica através da música, por todos os poros. Dos 5ª Punkada, quatro são utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra. Eis os Blues da sua vida.
Concerto dos 5ª Punkada no Teatro Gil Vicente em Coimbra, a 11 de fevereiro de 2022. © Créditos: Valter Vinagre
(Artigo publicado originalmente em fevereiro de 2022.)
É tão simples quanto isto: em palco, a vida é como devia. Não é preto, não é branco, não é verso, não é reverso, não é inverso, não é regra, nem sequer contra-regra, não é parâmetro, nem deixa de ser, não obedece a enquadramentos, classificações, estereótipos, conceitos e preconceitos, nem tem de obedecer. É. O palco, assim como a música, têm uma natureza transpositora, maravilhosamente multidimensional. O ser é a sua estética, a sua linguagem. Se a alma existe, é neste sítio que se encontra. Sexta-feira 11, Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra, lá para a noitinha. Uma névoa de gelo seco flutuava, com os instrumentos no seu respirar antropomórfico e os microfones a exercer o efeito de sombras chinesas.
À distância, pareciam trepadeiras no branco do cenário, que tinha uma mão feita de duas, amarradas pelas artérias de um corpo unificado, como uma tatuagem de henna, com estas palavras de Fausto Sousa, que é o letrista, vocalista, sound beam e, em múltiplos aspectos, a essência dos 5ª Punkada, que não são apenas uma banda, mas um organismo que se expressa das profundezas, exactamente como acontece com as palavras e com o seu portador: "quem atado/ como eu a ti/ tu és metade de tudo/ que há em mim/ tu és metade de mim/ eu sou metade de ti".
Fausto Sousa é hoje o único músico da formação original. Para além dele compunham a formação original dos 5ª Punkada, Márcio Reis, na bateria, Adelaide Serafino, nas teclas, e Ricardo Sousa, no sound beam (interface que por meio de ultrassons transforma movimentos em melodia). © Créditos: Valter Vinagre
Não vale a pena extrair às palavras um significado, pois este deixa de ser pessoal sempre que se torna transmissível. Os 5ª Punkada já existem desde 1993, a sua formação já se alterou algumas vezes, por questões que estão guardadas na tristeza. O palco é a sua natureza. Em palco, eles reexistem todas as vezes. Exercem o imenso poder de poder, exercendo-o com a pureza rara que só a liberdade tem. É isso, mas não é só isso que os torna extraordinários. O que os torna extraordinários é o seu talento para ser punks nos blues da sua vida.
Blues da 5ª
Desde que se lembra, ele queria cantar, ser o vocalista de uma banda, expressar-se em palco, que é o território sagrado dos artistas, dar concertos ao vivo, ser ele o transmissor da energia indomável que a música é capaz de libertar na sua linguagem universal. Com maiores e menores subtilezas, todos lhe diziam que não era plausível cumprir essa vontade, para não lhe chamar sonho, que se torna uma palavra demasiado complexa conjugada no pretérito imperfeito, na categoria do intangível. Não era um sonho. Se fosse um sonho, Fausto guardá-lo-ia na mente, como tantas vezes aprendeu a fazer com a realidade das coisas.
Em palco, são o que querem. São amor, partilha, comunicação. São uma banda, na acepção plena da palavra. Como banda, não conhecem limite.
A música é antes de tudo uma necessidade absoluta, que não convive bem com a sua negação, muito menos com as limitações. Sempre que falava nisso, eram-lhe apresentados argumentos de ordem prática, técnica, de maioria de razão, até de lógica científica, mas ele não os compreendia, por não se encontrar na sua índole a desistência e por causa da voz que ele tinha lá dentro a segredar-lhe as letras das canções, os timbres, as melodias, os ritmos e os acordes, até a sonoridade dos aplausos, nesses tempos longínquos, em que ele era ainda um jovem habitante do silêncio. Fausto Sousa é interno na Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), que fica na Quinta da Conraria, em Ceira, Coimbra. É este o lugar que os une.
Um dia, no início dos anos 90, Fausto abordou Francisco Borges de Sousa, musicoterapeuta na instituição. Por esta altura, a sua ideia de formar uma banda já não era propriamente uma novidade para quem o conhecia. A novidade era o seu interlocutor. Fausto falou-lhe da sua vontade de cantar, de juntar pessoas como ele, utentes da APCC, com a coragem e o talento de usar a música para ultrapassar o que parecia inultrapassável. Se algo tem essa força, é a música. O prosaico 'não' era o mínimo que podia esperar. Mas a resposta de Francisco foi a mais imprevisível, mais rápida do que o grito de uma Fender Stratocaster às mãos de um digno executante: "Bora lá!".
Se sonho tinha, o de Fausto era este: uma resposta que contrariasse a lógica que lhe impunha a circunstância de o corpo não lhe obedecer como o seu pensamento. Assim nasceram os 5ª Punkada, 5ª, de Quinta da Conraria, o seu elo, Punkada, de punk, como a sua atitude de desafiar o sistema, sistematizando o desafio numa harmonia de desenvolvimento sistemático que é a sua música. Que projecto magnífico, a criação de um organismo feito da conjugação de tantos talentos numa vontade. O seu primeiro tema, assinala de forma indelével a geografia do seu coração: Blues da Quinta.
Sob a coordenação e direcção artística de Francisco Borges de Sousa, compunham a formação original dos 5ª Punkada, por óbvio, Fausto Sousa (voz e letras), Márcio Reis, na bateria, Adelaide Serafino, nas teclas, e Ricardo Sousa, no sound beam (interface que por meio de ultrassons transforma movimentos em melodia). A banda começou a ensaiar regularmente na Quinta da Conraria. E o seu repertório, junto com o entusiasmo contagiante que brota de Fausto, brotou como os cogumelos que se produzem na quinta pedagógica da instituição. Com a sua música, germinaria a mais importante das sementes, exemplar a todos os títulos e mais algum: a possibilidade.
Esta banda já tem na bagagem mais de três centenas de concertos ao vivo, mais estrada que muitas bandas pós-modernas que por aí circulam.
Para a mais comum das pessoas, a possibilidade pode ser como uma espécie de quimera perdida que anda por aí a tropeçar nas esquinas da vida. Para estes músicos brilhantes – e como brilham -, a possibilidade que conquistaram para eles, para outros, para tantas famílias, é a plena demonstração que não há impossíveis. É nisso que diferem de outra banda qualquer, em qualquer parte do mundo. No resto, talvez apenas na especificidade da sua logística, não se notam quaisquer diferenças. A sua música tem uma força incrível porque é feita da sua. É isto que caracteriza uma banda de rock n´roll, se assim lhe quiserem chamar, que eles não se importam. Os 5ª Punkada não fazem a menor questão de se definir enquanto banda. Não perdem com isso um fragmento do seu esforço.
Qualquer um deles sabe que a importância disso é zero quando comparada com a importância de estar em palco a tocar a sua música perante as mais diferentes plateias de Portugal e do mundo, quando o seu nome começou a voar e eles voando com ele de norte a sul do país, depois em Espanha, Itália, Grécia, Bélgica, França, Alemanha e, barómetro dos barómetros, em Inglaterra. Esta banda já tem na bagagem mais de três centenas de concertos ao vivo, mais estrada que muitas bandas pós-modernas que por aí circulam.Os 5ª Punkada têm outra coisa incomum à generalidade das bandas. Sempre souberam encontrar novo fôlego, mesmo quando as coisas pareciam perdidas. Um dia, num concerto na cidade da Guarda, sofreram um choque inimaginável. Francisco Borges de Sousa teve um ataque cardíaco em palco e em palco perdeu a vida, no exacto lugar onde os verdadeiros músicos costumam deixar tudo. Tinha 40 anos. Nos 5ª Punkada, ele não morreu. Nos 5ª Punkada, ninguém fica ausente. A banda convoca-os ao palco, como faz o Fausto com as palavras.
O 5º elemento
Fausto Sousa é hoje o único músico da formação original. E só se pode afirmar isto porque se conjugaram uma série de factores no espaço e no tempo, conjugados numa só pessoa. Paulo Jacob, que é natural de Coimbra, tinha terminado o curso de Educação Musical por volta do ano 2000, mais coisa, menos coisa. Nessa fase da vida, há escolhas a fazer. O Paulo escolheu Coimbra, a família, os amigos, os afectos e o programa que tinha na Rádio Universidade de Coimbra, que era uma espécie de cordão-umbilical à cidade e à música. Em troca, sofreu a maldição de um recém-licenciado nesta área: "Não tinha colocação. Tive de fazer-me à vida". Traduzindo: "Estive um ano a coordenar um ATL". Sobre esta experiência tem a dizer que adora as crianças, que são o melhor do mundo, desde que não sejam aos magotes. Ele, que trabalha com o som, aprendeu nessa altura a distingui-lo perfeitamente do ruído. "Depois trabalhei a vender porta-a-porta para uma operadora de telecomunicações".
O que lhe transmitiu a distinta impressão de não ter jeito nenhum para aquilo. "A seguir fui funcionário dos CTT durante seis meses". Foi importante esta actividade por vários motivos. Primeiro, para juntar dinheiro para ir de férias com uns amigos para Paris, depois porque é um laboratório da humanidade, e só depois para tirar a limpo se era verídica ou lendária aquela relação instável que os carteiros têm com os cães. Chegou a pensar em comprar um daqueles apitos ultrassónicos para defesa pessoal, mas entretanto despediu-se e foi para Paris. De Paris chegou na condição normal de quem chega de umas férias em Paris, sem trabalho à sua espera e a contar os tostões. Até que numa dessas noites encontrou o Luís Pedro Madeira, multi-talentoso, multi-instrumentista, dos Bell Chase Hotel, que por acaso tinham uma música algo apropriada à condição do Paulo, quando regressou a Coimbra: "Fossanova". Luís Pedro Madeira é colega de curso e amigo de Paulo Jacob. Nessa altura, trabalhava com os 5ª Punkada, que lutavam para manter o projecto.
Concerto dos 5ª Punkada no Teatro Gil Vicente em Coimbra, a 11 de Fevereiro de 2022. © Créditos: Valter VInagre
Salvo excepções quase bíblicas, manter uma banda já é o que é, quanto mais manter uma banda extraordinária como aquela, que havia perdido em palco um instrumento da sua essência. De qualquer maneira, Luís Pedro Madeira não tinha como estar a tempo inteiro com os 5ª Punkada. Paulo, estás nessa? Paulo conhecia os 5ª Punkada, o problema nem sequer era esse. O problema estava na dimensão do convite, no medo de enfrentar uma realidade que julgava outra. Disse que não. Mais tarde, com coincidências pelo meio, não precisou dizer que sim. Bastou conhecer os membros integrantes da banda para saber que já lhe pertencia.
Para todos os efeitos, "entrei de páraquedas". Um paraquedista assustado, acabado de aterrar numa unidade cognitiva que não tem medo de criar, muito menos de palco. A formação actual dos 5ª Punkada é esta, pela ordem dos factores: Fausto Sousa (letrista, voz, sound beam), 53 anos; Fátima Pinho (teclas), 55 anos; Jorge Maleiro (guitarra/voz), 26 anos; Miguel Duarte, mais conhecido por Mike (bateria), 23 anos. E Paulo Jacob (guitarra e voz), 44 anos. Nos 5ª Punkada, Paulo é um músico e não um musicoterapeuta. É deles, como eles são dele, no patamar que os eleva ao único lugar onde eles conseguem ser o que verdadeiramente são – todos eles, memórias incluídas -, uns punks de primeira, que decidiram usar a música para transformar a sua cena em algo que todos pudessem compreender. Há neles qualquer coisa de trágico e de mágico.Visto da plateia, uma beleza que parece maior do que a vida. Em palco, são o que querem. São amor, partilha, comunicação. São uma banda, na acepção plena da palavra. Como banda, não conhecem limites.
Concerto dos 5ª Punkada no Teatro Gil Vicente em Coimbra, a 11 de Fevereiro de 2022. © Créditos: Valter Vinagre
Somos punks ou não?
Paulo encontrou nesta banda coisas raríssimas, a começar pela sua integração. "Nos 5ª Punkada sou um músico com consciência de musicoterapeuta." Sabe qual é a sua parte no sistema que é esta banda, cujo trajecto já vai longo, pela capacidade que tem de se adaptar ao que a vida é quando o silêncio se instala de novo. Os 5ª Punkada estão mais uma vez no seu mundo, que se divide entre a estrada e o palco, percorrendo o país. A pandemia, como aconteceu com a generalidade da população mundial, obrigou à mais dolorosa das separações, como um instrumento sem instrumentista. Foi, porém, em plena pandemia que os 5ª Punkada conseguiram cumprir o sonho de todos os sonhos: editaram o seu primeiro disco, graças à Omnichord (editora independente), que embarcou no seu projecto, para assim o imortalizar.
Este projecto, que teve o apoio do Instituto Nacional de Reabilitação, incluiu um documentário sobre a banda, produzido pela Casota Collective, gravado na Quinta da Conraria, coração da 5ª. Ao longo do seu trajecto, os 5ª Punkada já tinham gravado temas ao vivo. Mas ainda não tinham tido a experiência de gravar um disco de forma profissional. Mas, que não restem dúvidas. Hugo Ferreira, da Omnichord, juntou-se ao projecto pelo mérito deste, não por qualquer outra razão.
Concerto dos 5ª Punkada no Teatro Gil Vicente em Coimbra, a 11 de Fevereiro de 2022. © Créditos: Valter Vinagre
Os 5ª Punkada não fogem do que são: uma banda, que não tem comparação com nenhuma outra. É isso que torna única a sua música. É isso que os torna únicos. Ao vivo, a sua energia é maravilhosa. Este disco – "Somos Punks ou Não?" -, com captação, produção e mistura de Rui Gaspar, dos First Breath After Coma, que se junta à formação nas actuações ao vivo, reuniu na banda dois artistas enormes. Surma (Débora Umbelino), multi-talentosa artista de Leiria. E Victor Torpedo, um "velho" guerreiro do rock 'n' roll de Coimbra, que já passou por muitos palcos do mundo, abrindo caminho para a música portuguesa onde esta não chegava, tantas vezes em ambiente hostil, no tempo dos lendários Tédio Boys, depois nos Parkinson, nos Blood Safari ou nos Tiguana Bibles. Torpedo é aquilo que se pode definir como um puro, que vive para a música, vivendo esta para o palco.
Os 5ª Punkada não podiam estar mais de acordo. Estes talentos que se misturaram com o seu funcionam como um sistema límbico, que aos nossos olhos se transforma em unidade. Pensando bem, é isto que gera ao vivo a música dos 5ª Punkada: unidade. É como se de repente eles fossem metade de nós. E nós metade deles.
(Autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.)