Contacto
Opinião

Professores, esses trabalhadores essenciais

A Califórnia acabou de incluir os professores na lista de trabalhadores essenciais a serem vacinados. A ministra da Saúde Marta Temido admitiu o mesmo ontem na SIC. Mas serão mesmo essenciais?

© Créditos: AFP

Na Califórnia, o Governador Democrata Gavin Newsom anunciou há dias que professores e trabalhadores da educação iriam ter prioridade na vacinação contra a covid-19. A ideia é garantir que a maior parte dos alunos afectada pela pandemia – "sem tecto ou de famílias de acolhimento, de baixo rendimento ou iniciantes em língua inglesa" — regresse à sala de aula o mais depressa possível, disse a AP. A maioria dos 6 milhões de menores do K12 (do jardim de infância ao 12º ano) de escolas públicas da Califórnia não tem aulas presenciais desde Março de 2020.

O reconhecimento dos professores como trabalhadores essenciais ou prioritários para as vacinações não é consensual, mas tem acontecido noutras partes do mundo: o Chile já o começou a fazer em Fevereiro, vários estados do EUA em Janeiro. A questão não é se um professor é "mais importante" do que um trabalhador da distribuição, por exemplo, da limpeza, dos serviços hospitalares, dos médicos e enfermeiros, dos bombeiros, dos transportes e comunicações.

É evidente que aqueles que estão na linha da frente 1) a salvar vidas, 2) a garantir que todos temos água, luz e comida, são absolutamente indispensáveis nesta pandemia. Não é um ranking de relevância. Mas há que reconhecer que se há uma profissão que, até certo ponto, não saiu da linha da frente na manutenção de qualquer espécie de "normalidade", e que garante qualquer possibilidade de futuro para aliviar as consequências – físicas, mentais, económicas – da pandemia, são os trabalhadores da educação.

As sociedades doentes põem o dinheiro, o lucro, o crescimento e a eficiência acima tudo. Inclusive da saúde física e mental dos que cuidam: dos velhos, dos doentes, dos jovens. Os professores são parte da lista dos que cuidam, mas, em Portugal, são normalmente vilipendiados por uma sociedade que os vê como funcionários públicos parasitas a viver à custa do Estado. Basta ler as caixas de comentários ou o tom das coberturas noticiosas de cada vez que há uma greve ou um protesto. Em Portugal, portanto, os professores continuam a ser o elo mais fraco da cadeia que tem sustentado o país neste ano de pandemia.

Depois de anos de desrespeito e desprezo pela comunidade docente, contudo, observam-se alguns sinais de reconhecimento. Fechados em casa com os filhos, por vezes mais do que um, de diferentes níveis de ensino, em teletrabalho (e também eles em exaustão), talvez muitos pais tenham finalmente compreendido a dedicação da maioria dos professores pelos seus alunos. Talvez tenham entendido as diferenças gritantes que há entre muitos alunos, por vezes dentro da mesma turma, e que só o ensino e a atenção dos professores conseguem atenuar.

Talvez tenham finalmente percebido o esforço duplo de muitos professores durante a pandemia, uma verdadeira mise-en-abyme de "transições digitais": a maioria dos teletrabalhadores até pode ser pai, mas não é professor; se há professores que são pais em teletrabalho, então eles são-no a cuidar dos seus próprios filhos ligados em tele-escola, mas também dos filhos dos outros (os nossos), em simultâneo.

Não me cabe criticar a sugestão da ministra da saúde, Marta Temido, ontem em entrevista à SIC, sobre a inclusão de professores nas prioridades de vacinação. Mas diria, sem qualquer ironia, que os professores portugueses já estão naturalmente na próxima lista de prioridade de vacinação, uma vez que Portugal tem dos corpos docentes mais envelhecidos da Europa – menos de 2% têm menos de 30 anos e mais de 43% têm mais de 50 anos, segundo o relatório da OCDE de Setembro de 2020.

Se na Saúde todos reconhecem que estamos a pagar muito caro os anos de desinvestimento sistemático da intervenção da troika, também na Educação isso se tem passado: temos um corpo docente envelhecido (note-se que muitos dos milhares professores contratados em, Agosto de 2020 pelo Ministério da Educação, para auxílio pandémico, eram já reformados), exaurido, no limite das forças anímicas e em total burnout. Não há qualquer "transição digital" num plano de Recuperação e Resiliência futuro que salve esta profissão e o sector sem se pensar em larga escala que ensino queremos.

E sobretudo sem investir de forma massiva, não só em novas tecnologias, mas sobretudo em pessoal docente. Sem surpresa, o Público trazia esta semana uma reportagem sobre jovens professores sub-30 – a raridade numa carreira precária, congelada, envelhecida e que trata mal os seus trabalhadores –, como Joana Cabral, professora de Geografia do secundário, de 25 anos, que costuma ouvir na sala dos professores: "Se tens outro tipo de trabalho, desiste disto."

O relatório da OCDE continua a pintar um quadro bastante deprimente do ensino em Portugal. O país está abaixo da média da UE e da OCDE em gasto por aluno por ciclo de ensino, da primária ao superior: cerca de 12 mil dólares (em 2017). O Luxemburgo tinha o valor mais alto: 25 mil dólares. Mas um número continua a ser um retrato fiel dos professores portugueses: 64,8% dizem que, ainda assim, escolheriam ser professores se lhes fosse dado a escolher. Bem longe dos 89% dos professores espanhóis.

Não se leia aqui uma qualquer taxa de satisfação, mas talvez um valor, se possível de medir, do nível de dedicação destas pessoas. Porque depois da pandemia, é também os professores que queremos e a forma como os respeitamos que temos de repensar.

(Autora escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.)

Raquel Ribeiro, entre a América Latina e a Escócia

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo. Escreve às quartas-feiras.

NOTÍCIAS RELACIONADAS