Português no Luxemburgo denunciou abuso sexual de padre em Portugal
Psiquiatra Daniel Sampaio fala das vidas destruídas pelas agressões sexuais na infância e apela a uma linha aberta para apoiar as vítimas.
Quase cinco mil crianças foram abusadas por padres em Portugal desde 1950 até 2022, revela o relatório da comissão de estudo independente.
Uma vida inteira pode não chegar para libertar o trauma e sofrimento dos portugueses que em crianças foram abusados sexualmente por padres em Portugal. Abusos, muitas vezes continuados destes religiosos que, em quase metade dos casos, foram guardados em silêncio pelas vítimas, que nunca tiveram coragem de os revelar.
"Marcou muito o resto da vida que tive. Passei muitos anos na escuridão", "Ainda hoje sinto vergonha, culpa", "Destruiu o meu futuro", foram alguns dos desabafos feito pelas vítimas que deram o seu testemunho à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos sexuais de Crianças na Igreja Portuguesa, que apresentou no início desta semana o seu relatório final.
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Uma investigação sobre uma realidade até agora escondida e que está a abalar Portugal, confrontado com os números de casos, que são "apenas uma pequena amostra da realidade", e com o sofrimento descrito pelas vítimas.
No total, foram feitas 512 denúncias validadas a esta comissão ao longo de 2022 e a par com a investigação, os autores revelam que terá havido, no mínimo, 4.800 crianças abusadas, entre 1950 até 2022, no seio da igreja portuguesa, na esmagadora maioria por padres.
O psiquiatra Daniel Sampaio, um dos membros da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal. © Créditos: Diana Tinoco
Caso do Luxemburgo
Os testemunhos chegaram à comissão de todo o país (88%), mas também do estrangeiro, de emigrantes portugueses.
"Houve um testemunho validado de um português do Luxemburgo que foi vítima de abusos sexuais em criança na Igreja portuguesa", realça ao Contacto, o psiquiatra Daniel Sampaio, um dos elementos desta comissão de estudo. Ana Nunes, que também integra a comissão independente, também confirmou esta informação à Rádio Latina.
As denúncias feitas também por emigrantes portugueses chegaram de vários países da Europa, como Reino Unido, França e Suíça, mas também do continente americano, do Canadá, EUA ou Brasil e de África, nomeadamente de Angola ou Guiné.
"Considero que muitas destas vítimas aceitaram falar, pela primeira vez, sobre os abusos vividos e os seus traumas porque tiveram confiança na comissão de estudo, porque perceberam que era uma investigação independente da Igreja Católica e que podiam falar sob anonimato e isso foi importante", considera Daniel Sampaio.
Para muitos contar finalmente a sua história foi um "desabafo libertador" com as próprias vítimas a frisarem ser necessário "falar sobre estes assuntos", ainda tabus, como realça o relatório final.
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Uma linha aberta para as vítimas
Mesmo após ter terminado o período para testemunharem, no final de outubro de 2022, as denúncias continuaram a chegar à comissão de estudo, e agora, depois da apresentação pública do relatório final mais testemunhos têm chegado.
"As vítimas têm de continuar a ser ouvidas, e é urgente que haja uma resposta. A função da nossa comissão cessou com a entrega do relatório final, mas a igreja e governo têm de dar seguimento a estes casos", vinca o psiquiatra.
Para Daniel Sampaio a solução passa pela criação de uma 'via verde', uma linha aberta para estas vítimas de abusos sexuais em geral, e não apenas na Igreja Católica.
2Em muitos casos, estas vítimas precisam de tratamento psiquiátrico e psicoterapêutico, e o Serviço Nacional de Saúde tem de dar resposta, dar prioridade nas marcações para tratamento, tal como criou a via verde para combater o suicídio", defende o especialista.
E, esta linha aberta tem de estar disponível "também para os portugueses residentes no estrangeiro que foram vítimas de abusos sexuais", considera, lembrando que as novas tecnologias permitem consultas à distância (online), de modo a que as pessoas possam falar e ser tratadas.
"Números inquietantes"
"Estudos internacionais apontam para que 18% das raparigas e 8% dos rapazes sejam vítimas de abusos sexuais e este número é altíssimo e muito inquietante. Há que dar respostas a estas vítimas".
O psiquiatra adverte: "Se os abusos forem intensos e duradouros e se as vítimas não tiverem apoio familiar isso pode gerar uma devastação emocional que pode perdurar".
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O estudo independente sobre os abusos sexuais na Igreja Católica foi desenvolvido por uma comissão de especialistas a pedido da própria igreja. A "ponta do icebergue" foi descoberta. Agora é preciso agir e criar "mecanismos de apoio para que mais vítimas possam denunciar os abusos e serem ajudadas".
Liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a comissão independente foi constituída pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, pela assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares, e pela cineasta Catarina Vasconcelos.