Porque é que faltam medicamentos no Luxemburgo? Até o paracetamol está em risco
A crise é europeia e mundial. Nas prateleiras das farmácias do Luxemburgo, e da restante UE, faltam xaropes para a tosse e até o vulgar paracetamol está a acabar, porque a Europa não o produz.
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Xarope para a tosse, antibióticos para crianças e medicamentos para a diabetes e tensão alta. Vários medicamentos destes grupos estão em falta ou são difíceis de encontrar nas 98 farmácias do Luxemburgo. "Nunca pensei que uma coisa destas pudesse acontecer", disse o presidente da União dos Farmacêuticos do Luxemburgo, Alain de Bourcy, na terça-feira, aos microfones da Radio RTL.
A falta de medicamentos nas prateleiras das farmácias, não é uma situação completamente nova no Grão-Ducado, mas a atual rutura de 'stocks' de medicamentos de uso corrente tem piorado nos últimos meses de inverno.
Por causa do aumento das ocorrências de gripe e de doenças respiratórias – depois de dois anos de confinamentos e do uso de máscaras – os vírus sazonais apanharam a população com sistemas imunitários mais enfraquecidos.
No caso dos injetáveis para a diabetes – a falta não se deve ao aumento de pacientes com esta doença crónica, mas ao facto de estarem a ser usados para emagrecer, como é o caso do Ozempic, um medicamento que está a ser consumido por celebridades e copiado por pessoas não diabéticas que apenas querem perder peso depressa.
85% dos medicamentos do Luxemburgo são comprados à Bélgica
A rutura de medicamentos no Grão-Ducado torna-se complicada porque, de acordo com Alain de Bourcy, há muito poucas alternativas. Na entrevista recente à RTL, Bourcy adiantou que uma explicação para este estrangulamento será "uma questão logística que pode ser devida ao facto de a UE não estar a fazer encomendas suficientes a fabricantes no estrangeiro".
O Luxemburgo, em particular, depende grandemente da Bélgica para o abastecimento das suas farmácias. Bourcy avança que 85% dos medicamentos consumidos no Luxemburgo são provenientes do país vizinho.
No final de janeiro, a Bélgica - que também está a passar por uma escassez fora do normal de produtos farmacêuticos - emitiu um decreto real a abrir caminho a uma proibição de exportação de medicamentos críticos numa eventual crise grave de escassez.
Num artigo publicado a 28 de fevereiro, a RTL refere que a Direção de Saúde Nacional informou que o fornecimento de encomendas vindas da Bélgica não está a ter problemas. Mas a vulnerabilidade do Grão-Ducado quando depende tanto de um único fornecedor, é evidente.
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Um problema europeu
A falta de medicamentos comuns não é um problema exclusivo do Luxemburgo. Quase toda a União Europeia está a passar pelo mesmo desde o final de 2022, correspondendo ao início do inverno e à época das infeções virais e respiratórias.
Segundo um resumo do PGEU – Associação de Farmacêuticos Europeus - um quarto dos países (que incluem também a Turquia, a Macedónia do Norte, o Kosovo e a Noruega) declarou mais de 600 medicamentos em falta em relação aos seus stocks habituais. E três quartos dos países considerou que as ruturas deste inverno são piores do que as de estações anteriores.
Um artigo recente do jornal Politico refere que as autoridades belgas dão como em falta quase 300 medicamentos; na Alemanha são 408 e na Áustria mais de 600. A Itália é o país da UE em pior situação, faltando mais de 3.000 medicamentos, embora alguns sejam formulações diferentes do mesmo princípio ativo.
Entre os medicamentos mais em falta estão os antibióticos, e em particular a amoxicilina, droga usada para tratar infeções respiratórias. E, tal como acontece nas prateleiras das farmácias do Luxemburgo, faltam em toda a UE xaropes para a tosse. Além disso, o vulgar paracetamol (muito usado no inverno) e drogas para a tensão arterial estão também com stocks deficientes.
A crise da falta de medicamentos está a ser referida um pouco por todo o mundo e parece ser uma pandemia depois da pandemia do SARS-CoV-2. Muitos técnicos acreditam que é em parte uma consequência dos últimos dois anos de confinamentos. As doenças sazonais – em que se incluem a gripe, constipações e doenças do trato respiratório – chegaram este ano com mais vigor, encontrando populações com sistemas imunitários menos treinados, depois de dois anos em casa e a usar máscaras.
Farmacêuticas fogem para a Ásia
Mas se a procura, por questões de aumento das doenças, cresceu, a oferta por motivos geopolíticos e da atual crise com a guerra da Ucrânia, diminuiu. O que criou a tempestade perfeita.
O aumento dos preços da energia e a inflação estão a levar ao êxodo de várias farmacêuticas da Europa, pondo ainda mais em risco o fornecimento de medicamentos básicos para a saúde. Segundo um artigo da Reuters, muitas empresas, sobretudo as que produzem medicamentos genéricos, extremamente baratos, já há muito tempo que se mudaram para a Índia ou China. Mas a guerra da Ucrânia e a crise energética e económica associadas podem fazer o que faltava. Ou seja, "afugentar de uma vez por todas o setor farmacêutico europeu de medicamentos essenciais", refere um relatório do maior fabricante de genéricos, Teva.
O relatório apresenta um prognóstico sombrio: medicamentos fundamentais, como os antibióticos, insulina ou drogas para o cancro podem deixar de ser fabricados no continente entre cinco a dez anos.
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A UE não faz o vulgar paracetamol
O vulgar paracetamol é um dos casos. Segundo a Reuters, a última fábrica europeia a produzi-lo fechou em 2008. Neste momento, os únicos fabricantes estão na Ásia. Durante o período negro da covid-19, o paracetamol era um dos medicamentos difíceis de encontrar.
Para a indústria farmacêutica e para os políticos europeus, os anos de 2020 e 2021 serviram para abrir os olhos. A UE deparou-se com as suas enormes insuficiências ao nível da produção de medicamentos que podem salvar vidas. O comissário do Mercado Único, Thierry Breton, lançou-se numa maratona para acelerar a produção das farmacêuticas europeias e juntar os vários atores para o bem comum de tornar a UE autossuficiente.
Mas com esta nova crise, o responsável europeu da Teva, Erick Tyssier, salientou à Reuters que não houve grandes melhorias na cadeia de fornecimento de medicamentos europeia. Pelo contrário, a tendência de deslocalizar a produção para a Ásia está a aumentar.
O Politico refere que há farmacêuticas europeias a falir com a crise. É o caso da holandesa InnoGenerics. E mesmo a Centrient Pharmaceuticals, fabricante holandesa de ingredientes ativos, está a produzir menos um quarto do que em 2021.
Também a Sandoz, uma das maiores farmacêuticas europeias de medicamentos genéricos, avançou a "escassez de matérias-primas e constrangimentos de produção" como outros motivos que levam à desolação atual das estantes das farmácias.
Um 'MarketPlace' para vender medicamentos que sobram
Por causa disto há Governos que estão a entrar em pânico. Em novembro, a Grécia elaborou uma lista extensa de medicamentos proibidos de serem exportados. E a Bélgica emitiu o decreto real que pode entrar em vigor caso a saúde dos belgas seja ameaçada – e nessa eventualidade as exportações para o Luxemburgo poderiam ser interrompidas.
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A situação faz lembrar os piores tempos da covid em que os Estados-membros começaram a fechar fronteiras sem aviso prévio. A comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, pediu ao ministro grego da Saúde que considerasse os efeitos das proibições, lembrando que a Grécia tem de respeitar as regras do Mercado Único.
A Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou que os Estados permitissem a emissão de doses individuais de comprimidos. E a Alemanha admite a criação de um mercado de drogas (estilo 'MarketPlace') onde os pacientes poderiam dar comprimidos dos blisters que lhes sobram aos que estão a precisar.
Após aprender as duras lições da pandemia – e foi mesmo assim que foi apresentado – a Comissão Europeia criou um novo organismo, a HERA (Autoridade de Emergência de Saúde), para responder aos grandes desafios à escala da UE.
E a falta de medicamentos a um nível que poria em risco a vida dos europeus seria um desses eventos, que levaria a Comissão a intervir, isto é, comprar em bloco (como fez com as vacinas) e banir exportações para países terceiros.
Mas, até ao momento, a crise da falta de medicamentos não foi considerada pela EMA como um caso de vida ou morte. E a chegada da primavera pode resolver o problema. Até ao surto da próxima estação fria.