
Pode uma fronteira parar um rio?
Mesmo antes de chegar a Portugal, o Tejo deixa de ser um curso natural para transformar-se numa sucessão de cinco barragens para produção hidroeléctrica. A Convenção de Albufeira determina a quantidade mínima de água a transferir entre os dois países, mas a irregularidade dos caudais faz estragos nos ecossistemas e causa a revolta das populações da raia.
POR JUAN CALLEJA E RICARDO J. RODRIGUES ¦ IMAGEM DE RUI OLIVEIRA
Antes da Convenção de Albufeira, havia 50 pescadores na Ortiga. Agora, diz Francisco Pinto, "somos três ou quatro."
“Há dias em que só me apetece chorar”, diz Joaquim Pinto, 52 anos inteiros a viver de um rio que “já não presta”. Nas aldeias do lado português da fronteira, a vida sempre correu ao ritmo do Tejo. Só que, agora, ninguém consegue entender a corrente. Quando a água sobe, vem com tanta força que os homens nem conseguem largar as barcas. “Mas na maioria das vezes a maré está tão baixa que rebentamos os cascos nas pedras que há no fundo. Já não se consegue lançar as redes ao peixe”, lamenta o homem. “E mesmo quando o fazemos, vêm vazias. O peixe já não sobe.”
Ortiga é uma povoação do concelho de Mação, junto à pequena barragem de Belver, a 68 quilómetros de Espanha. Os seus 450 habitantes viviam tradicionalmente da pesca até à viragem do milénio, sobretudo da lampreia – que entre janeiro e abril trazia centenas de pessoas de toda a região para apanhar a espécie rainha do Tejo. “Nessa altura havia aqui 50 famílias a ganhar a vida no rio. Hoje somos só três ou quatro”, diz Francisco Pinto. Com as subidas e descidas súbitas do caudal, o peixe desapareceu. E a riqueza desapareceu com ele.
Para Francisco, as coisas começaram a piorar em 1998, quando Portugal e Espanha assinaram a Convenção de Albufeira, um acordo que regula o montante e periodicidade da água que atravessa a fronteira. Antes, a regulamentação baseava-se num acordo de 1912, que foi renovado em 1968, e dividia a disponibilidade de água a meias: da água dos reservatórios, a capital espanhola mantinha metade e enviava os restantes 50% para Lisboa. O pescador confessa que, pelo menos nessa altura, "o Tejo era o Tejo".
Todos os anos, Mação organiza um Festival Gastronómico da Lampreia, que durante dois meses traz gente de Portugal inteiro à Ortiga. “Temos centenas de pessoas a virem comer o nosso arroz e o maior atrativo de todos é sermos nós a pescar os nossos próprios produtos”, diz Pinto, que além de pescador é proprietário da Lena da Barragem, um restaurante encostado às margens do rio. “Nestas alturas gastamos umas vinte lampreias por dia. Mas sabe quantas consegui apanhar este ano, durante toda a campanha? Nem uma.” A época de captura da espécie corre de janeiro a abril.
É tendência que se acentuou na última década: em vez de irem ao rio, as gentes da região passam as semanas a tentar comprar pescado noutras geografias, porque aqui ele já não chega. “Este ano safei-me com um produtor de Bordéus, mas a lampreia não tinha a mesma qualidade e cheirava mal”, constata. “Continuava a ir ao rio todas as manhãs e nada, nem lampreia, nem bogas nem sável. A água do rio está sempre a subir e a descer e os animais já não sobem para desovar.”
E atira com sabedoria do terreno: “A pesca desapareceu, os restaurantes vão fechando, o turismo não funciona porque o caudal é irregular e as praias fluviais estão cheias de lodo. Já não temos a mínima hipótese de sobreviver aqui.”
Trezentos quilómetros de charco
Só a barragem de Alcântara, do lado espanhol, consegue acumular mais do que toda a água que é preciso passar para Portugal.
Os problemas da Ortiga têm origem uns quilómetros a montante, sobretudo zona da fronteira. “Quando chega à [região espanhola da] Extremadura, o Tejo já não existe como rio. São cinco grandes barragens que acumulam mais de 5.000 hm3 de água onde não há sequer um metro seguido de bosque fluvial”, critica o ecologista espanhol Miguel Ángel Sanchez, porta-voz da Plataforma em Defesa dos rios Tejo e Alberche.
"São grandes instalações de armazenamento de água que, junto com a central nuclear de Almaraz, representam um negócio formidável para a Iberdrola, o operador hidroeléctrico. As aldeias, as pessoas, não importam: esta é uma reserva de para produzir dinheiro e lucros", diz.
Azután é o primeiro de cinco reservatórios geridos pela Iberdrola, que se seguem uns aos outros até à fronteira com Portugal. Fica a dez quilómetros de Talavera de la Reina, na província de Toledo. "A água chega limpa aos reservatórios de Madrid mas daí para baixo está em péssimas condições", explica Sánchez.
Depois de na cabeceira o Tejo já ter perdido uma uma grande parte do caudal, desviado por um transvase para irrigar o sudeste de Espanha, o rio mais longo da Península Ibérica volta a sofrer grandes pressões quando chega à capital espanhola. "Os afluentes do Tejo ficam aqui retidos para abastecer a população da capital e ter uma reserva de garantia para os anos secos. Mas quando as estações de tratamento de águas residuais devolvem a água ao rio, ela vem com má qualidade", diz.
Miguel Ángel Sánchez, porta-voz da Plataforma de Defensa del Tajo
Depois de na cabeceira o Tejo já ter perdido uma uma grande parte do caudal, desviado por um transvase para irrigar o sudeste de Espanha, o rio mais longo da Península Ibérica volta a sofrer grandes pressões quando chega à capital espanhola. "Os afluentes do Tejo ficam aqui retidos para abastecer a população da capital e ter uma reserva de garantia para os anos secos. Mas quando as estações de tratamento de águas residuais devolvem a água ao rio, ela vem com má qualidade", diz.
A partir de Azután, os terrenos montanhosos e as precipitações garantiriam à partida um novo fôlego ao Tejo. Mas é precisamente a partir deste ponto que o rio perde o seu curso natural para se transformar num mar de represas sucessivas. Desde a década de 1950 que a hidroeléctrica espanhola Iberdrola – nessa altura, chamava-se Iberduero – tem a concessão para utilizar a água num um trecho de quase 300 quilómetros desde esta barragem até à fronteira portuguesa.
Para além deAzután, a Iberdrola gere Valdecañas, Torrejón-Tajo, Cedillo e Alcântara. Entre as cinco barragens, a produção média anual é de 2.180 gigawats por hora (Gwh). Só Alcântara, a maior de todas, produz uma média de 1.038,06 Gwh. Isso significa que, só ela, tem capacidade de fornecer o dobro da energia que a região da Extremadura inteira precisa. A barragem, aliás, tem capacidade de reter 3162 hm3 de água, mais 462 hm3 do que Espanha está obrigada a passar anualmente a Portugal.
"Quando a barragem foi construída, não faltava emprego. Vieram umas três mil pessoas trabalhar para aqui nessa altura", diz Manuel Magro por detrás do balcão do Café Lisboa, bem no centro da aldeia de Alcântara, a um par de quilómetros da barragem. Tem 72 anos e diz-se em plena forma. "Gosto de estar com as pessoas", confessa, e a maneira como se mexe parece dar-lhe razão. Mostra várias fotos de quando era jovem, nas terras agrícolas que entretanto foram tomadas pelo charco, e outras de como era o Tejo antes da construção daquele pântano gigante. "Era uma terra viva, esta. Agora a central eléctrica é altamente automatizada e controlada a partir de Madrid. No bairro não há hoje mais de 50 trabalhadores".
Manuel Magro, que todos tratam por Manolo, diz que foram as barragens que roubaram a riqueza e o povo de Alcântara, na Extremadura.
O bairro a que Manolo se refere é um aglomerado de casas construído para acolher os trabalhadores da Iberdrola que trabalham na central hidroelétrica. Está localizado mesmo no topo da barragem e tem vista para duas espetaculares obras de engenharia: a atual barragem, inaugurada em 1969, e a ponte romana, construída entre os anos 103 e 104. Apesar de terem um mar de água doce ali ao lado, os habitantes de Alcântara extraem água furos para regar os campos. E sentem que aquela enorme estrutura não lhes trouxe nada de bom. "Desde que o campo nos roubou os melhores campos de cultivo, vivemos do turismo nacional mais alguns portugueses que de vez em quando vêm aqui parar", queixa-se Manolo. “A pandemia está a criar muitos problemas e a única coisa que para oferecer é um reservatório que não nos serve de nada.”
Oscilações perigosas
A cegonha-negra está ameaçada de extinção, mas a irregularidade do Tejo põe em causa a sua sobrevivência.
Uma boa parte da água retida na barragem de Alcântara atravessa o Parque Nacional de Monfragüe, um dos maiores tesouros naturais da bacia do Tejo. Como é deste reservatório que se regula e transfere a água que passa para Portugal, as subidas e descidas do caudal são constantes e têm um grande impacto sobre várias espécies que aqui vivem. Nomeadamente esta: a cegonha negra.
"É uma ave que nidifica junto às margens do rio, em quotas muito baixas, e quando as oscilações do caudal se acentuam, podem levar à inundação dos ninhos", explica Marcelino Cadalliague, delegado na Extremadura da mais antiga ONG ambientalista de Espanha, SEO Birdlife.
Marcelino Cadalliague, da SEO Birdlife
"É uma ave que nidifica junto às margens do rio, em quotas muito baixas, e quando as oscilações do caudal se acentuam, podem levar à inundação dos ninhos", explica Marcelino Cadalliague, delegado na Extremadura da mais antiga ONG ambientalista de Espanha, SEO Birdlife.
O Salto del Gitano, ou Salto do Cigano, é um lugar popular para observar aves em Monfragüe. Aqui, as cegonhas-negras vão sobrevoando o rio de rocha em rocha. Não há muitos lugares na Europa onde se possa vê-las também – são animais discretos. Ameaçadas de extinção, são "a estrela de Monfragüe", nas palavras de Cadalliague. "Mas as crias correm risco de morte de cada vez que a água sobe demasiado depressa, porque os ninhos são baixos".
Explica que as variações do nível de água se estão a agudizar. "As alterações climáticas criam este facto: a precipitação é cada vez mais irregular, mais intensa em curtos períodos de tempo. Está a tornar-se cada vez mais difícil fazer previsões para o futuro. Por outro lado, o aumento da temperatura faz aumentar o consumo de electricidade, especialmente no verão, e estão a levar a uma gestão cada vez mais agressiva dos caudais.”
No final de Junho, a água do rio parecia uma sopa verde. É causado por uma microalga que ocorre em águas paradas e excessivamente carregadas de nutrientes das quintas. Para piorar as coisas, faz-se sentir um calor intenso. Desde Maio, a água foi invadida por outra alga invasor: a azolla. "Temperaturas cada vez mais elevadas, água estagnada e a contaminação que a agricultura e a pecuária trazem indiretamente criaram aqui uma tempestade perfeita”, diz o homem. A jóia natural do Tejo está debaixo de uma pressão insuportável.
A fronteira intermitente
Trezentos quilómetros de rio são barrados para a produção de energia hidroelétrica antes da fronteira portuguesa.
A tarde cai e a tranquilidade toma conta da barragem de Alcântara. Não há uma única alma em redor e o silêncio é total. Isso também significa uma coisa: que a enorme estrutura de betão não está neste momento a libertar qualquer água para o outro lado da fronteira. Segundo a Convenção de Albufeira, o acordo que rege os rios internacionais na Península Ibérica, Espanha tem de passar anualmente 2700 hectómetros cúbicos (hm3) de água do Tejo para Portugal.
No último ano hidrológico, que correu de outubro de 2018 a setembro de 2019, Madrid tinha libertado apenas 1900 hm3 até ao final de julho. E então, para cumprir o protocolo, largou 800 hm3 de água em apenas cinco semanas, esvaziando a última barragem do lado espanhol, Cedillo, e secando os afluentes que garantiam o caudal ecológico do rio em Portugal.
Em outubro, o Tejo estava seco e atravessava-se a pé junto ao castelo de Almourol, já a meio caminho da foz. “Com as alterações climatéricas e o prolongamento dos verões as secas são cada vez mais extremas”, diz Paulo Constantino, porta-voz do proTejo – Movimento pelo Tejo. “A irregularidade com que o caudal passa está a piorar o que já era gravíssimo. Toda a economia do rio, à volta do qual se concentra metade da população da Península, está hoje em causa.”
Paulo Constantino, do proTejo - Movimento pelo Tejo, junto ao castelo de Almourol
Em outubro, o Tejo estava seco e atravessava-se a pé junto ao castelo de Almourol, já a meio caminho da foz. “Com as alterações climatéricas e o prolongamento dos verões as secas são cada vez mais extremas”, diz Paulo Constantino, porta-voz do proTejo – Movimento pelo Tejo. “A irregularidade com que o caudal passa está a piorar o que já era gravíssimo. Toda a economia do rio, à volta do qual se concentra metade da população da Península, está hoje em causa.”
O ambientalista português é um crítico feroz do acordo de Albufeira. “Há 2700 hm3 acordados entre os dois países, que na maioria dos anos têm sido cumpridos.” Até 2008, cabia a Madrid decidir quando libertava a água, a partir daí os países estabeleceram passar 7hm3 semanalmente e um valor trimestal que varia entre os 130 e os 350 hm3. “O problema é que o acordo só regula a passagem de 37% da água. Não há valores diários que permitam assegurar um caudal ecológico e a decisão de transferência de 67% da água cabe a um único país. E é por isso que a água às vezes vem com uma força danada e na maioria das vezes chega sem força nenhuma. Aqui morremos de sede”, queixa-se Paulo Constantino.
Portugal e Espanha concordam, no entanto, que o acordo estabelecido em 1998 em Albufeira satisfaz as duas partes. “Acredito que é um convénio exemplar, e confirmo-o sempre que o explicamos ao resto do mundo”, diz Teodoro Estrela, Diretor Geral da Água de Espanha. “Mas seguramente que no futuro teremos de ajustá-lo, tanto ao nível dos indicadores como dos volumes de água.” João Pedro Matos Fernandes, ministro do ambiente português, diz não ter qualquer interesse em rever o convénio. “Se pensarmos que o Tejo perdeu 25 por cento do caudal em duas décadas, percebemos que qualquer negociação vai começar neste ponto: há menos água, por isso Portugal tem de receber menos. E isso não nos interessa.”
Os ambientalistas dos dois lados da fronteira lamentam a atitude de Lisboa – e não entendem como Portugal desistiu de lutar por uma maior regularidade da água que passa para o lado português. “Tentaremos reforçar os caudais semanais nas próximas negociações, mas parece-me mais importante que a água que nos chegue tenha boa qualidade, algo que hoje não se passa”, diz Matos Fernandes, criticando o tratamento dos esgotos feito à saída de Madrid. Teodoro Estrela admite as culpas, justifica-se com a antiguidade das estações de tratamento. E promete recuperá-las.
Teodoro Estrela, Diretor Geral da Água de Espanha
Espanha recusa a crítica de que seja a Iberdrola a gerir a água do Tejo. “O setor hidroelétrico está sempre sujeito ao superior interesse da bacia do rio”, diz Estrela. “A Iberdrola tem a autonomia que pode ter dentro de um plano de gestão integrada da bacia. Em determinadas situações, como nos períodos de seca, tem de cumprir o que lhe diga a administração geral.”
A hidroelétrica espanhola defende-se: "As acções realizadas pela empresa respondem aos compromissos estabelecidos entre o Reino de Espanha e a República Portuguesa". E sublinham que colaboram "com o cumprimento desta obrigação e entregam o volume de água estabelecido em cada período" em coordenação com as administrações competentes e sob a supervisão da Confederação Hidrográfica do Tejo.
O governo de Portugal também recusa apontar o dedo às elétricas espanholas e prefere resolver o problema do seu lado. “Ainda este ano lançaremos um estudo de impacto ambiental para construir no rio Ocreza, do nosso lado da fronteira, uma barragem com fins ecológicos, que resolva as intermitências atuais”, promete Matos Fernandes.
Um aviso das variações do caudal do rio, no Tejo, em Monfragüe.
“Não se compreende como um rio internacional continue a ser gerido por dois governos com planos diferentes”, responde Paulo Constantino, ambientalista da proTejo. “O Tejo é uma única entidade, e tem de ser visto como um todo. Ao dividí-lo, está a ser assassinado aos bocadinhos.” Cita o exemplo do Danúbio, cujo plano de gestão é feito em comum por 14 países.
Na raia, o povo interroga-se como é um rio pode ser gerido aos soluços. "Aqui temos tanta água parada que ela evapora com o sol, e todos sabemos bem que ela não está a chegar em condições a Portugal", sentencia Manolo, o proprietário do café Lisboa, em Alcântara. E está certo que ele não conhece Francisco Pinto, o pescador de Ortiga que deixou de conseguir apanhar lampreias. Mas há isto: um está a viver à beira de um mar de água doce do qual quase não obtém qualquer benefício, e o outro vive na margem de um rio que nunca sabe quando vai correr. Na fronteira, o Tejo mostra a tragédia que os homens lhe inventaram: a de como parar um rio.
A série “Tejo: como matar um rio” foi feita ao abrigo da bolsa Reporters in the Field, promovida pela associação n-ost e pela fundação alemã Robert Bosch, e é publicada simultaneamente pelo jornal luxemburguês Contacto, pelo português Diário de Notícias e pelo espanhol El País