Os sentimentos e o poder como afrodisíaco
Será mesmo por interesse que ela está comigo, provavelmente atraída pelo meu poder, qualquer que ele seja, e não propriamente por amor?
Há dias, uma amiga que estimo disse-me de forma serena: “todas as mulheres, mesmo as mais feministas, têm fascínio por alguém que tem poder”. Depois, foi avante com o seu argumento, para me explicar que existem diferentes formas de poder, logo, de fascínio. E que o poder, qualquer que seja a sua natureza – económica, política ou intelectual – , era afrodisíaco. E quem é que não queria o conforto e a segurança de umas boas férias, de um fim-de-semana de sonho no Douro ou na Madeira, mais a estabilidade de uma bela casa ou de um jantarinho gourmet à beira Tejo ou na Foz do Porto?
A minha inabilidade em matéria de sentimentos, misturada com uma falta de treino em argumentar sobre tais coisas, deixou-me estomagado. Comecei mesmo por achar que se tratava de uma provocação dela em relação às reivindicações igualitárias das mulheres feministas. Logo, uma espécie de defesa de um qualquer arcaísmo conservador, próprio de mulheres inteligentes, mas que se recusam a alinhar com movimentos seja de que tipo for.
Para além de ter muita dificuldade em aceitar que os sentimentos amorosos sejam postos em relação com a dupla poder-atracção – entendida, ainda por cima, como prerrogativa masculina – , os meus conhecimentos livrescos criaram em mim uma outra consciência. Isto é, nos livros de história e de literatura comparada aprendi que, pelo menos desde o século XVII, para cá, o amor e a paixão tinham não só emergido, como se tinham autonomizado, em relação a outras esferas. Os sentimentos, as emoções e mesmo o controle sobre tudo o que é de matéria pulsional, pelo menos na cultura europeia e ocidental, separaram-se de outras esferas, nomeadamente das que mantinham uma relação com o poder ou os poderes.
Claro que, também, tinha e tenho dúvidas. Sabia que a minha interpretação era, talvez, demasiado esquemática, não entrando em linha de conta com outros aspectos, nomeadamente com os que se prendem com a vida sexual. Mas, pelo menos em matéria de estratégias matrimoniais e do modo como estas pesavam nas relações, julgava que vivíamos livres e preparados para sentir, amar e sofrer, como sucede em muitos romances.
Mais: num período crucial da minha formação, na década de 80, tive contacto – indirecto, é certo – com algumas pessoas que faziam análise e psicoterapia de grupo com o psiquiatra Eduardo Luís Cortesão. Através delas, aprendi a dar sentido e, ao mesmo tempo, a investir na transparência da auto-análise. E, mesmo que a psicoterapia de grupo não tenha uma norma escrita acerca da pureza dos sentimentos, sempre julguei que era para lá que as coisas se deviam encaminhar.
De qualquer modo, a conversa com a minha amiga começou a martelar dentro de mim. Cheguei mesmo a pensar em termos mais egoístas, ou seja, fiquei preocupado em saber qual seria, então, o poder de que eu próprio dispunha para conseguir atrair alguém.
Estava eu nestas elucubrações estéreis quando em conversa com outro grande amigo, autor de um monte de livros, que invejo na sua independência e frontalidade, acabei por lhe contar o que ouvira da minha amiga.
Abro aqui um breve parenteses, por causa do caricato desta situação. Tenho consciência de que com tanta sinceridade me exponho a ser ridicularizado. E não quero dar a entender a quem me lê que ando para aí no diz-que-disse, a levar ou a trazer, fundado no cuscar da vida dos outros. O meu objectivo é muito limitado: apenas gostaria de conseguir entender o que por aí vai em matéria de sentimentos e de emoções.
Qual não foi o meu espanto quando o meu amigo – de esquerda, sempre solidário com as causas dos oprimidos, militante em questões de género e envolvido em causas antirracistas – me contou, com o pedido expresso de que eu não pusesse a boca no trombone, que concordava integralmente com o que a minha amiga já tinha dito. Que sim, que o poder era afrodisíaco, e que ele sabia bem que, se não tivesse a lábia que tem, concretizada em não sei quantos livros, não teria tido direito à vida amorosa que teve. Sim, que não houvesse dúvidas, confessou, os seus dotes como sedutor, mesmo que fossem magros (e, nesta área, nada como um D. Juan que sabe ridicularizar-se a si próprio com ironia, grossa ou fina, pouco importa, para aumentar a capacidade de sedução) se deviam integralmente à prateleira de livros por ele escritos e que exibia no seu currículo.
Se andava atónito com o argumento da minha amiga, quase morri de espanto com aquilo que o meu amigo me contou. Sei bem que, para que me explicasse o que pensava, lhe tive de prometer que não contaria nada a ninguém e que ele poderia confiar integralmente em mim, pois nunca daria a entender quem ele era. É que ele não queria que lhe desmascarassem o jogo sobre o qual levava já meia vida – meio camelo como diziam os meus amigos de infância, em relação aos velhos lá do bairro.
Não sei se estarei em condições de respeitar tudo aquilo que lhe prometi. O certo é que ele apenas confirmou aquilo que a minha amiga já me tinha explicado: que o poder suscitava, ou mesmo construía, os sentimentos. Era mesmo afrodisíaco. Todo este relambório, no fundo, acerca do diz-que-disse, para se poder chegar a uma conclusão bem pífia, que só a custo consigo aceitar.
Tal como sucede em muitas anedotas, as relações mantêm-se mais por interesse do que propriamente por amor. O que me leva a perguntar: será mesmo por interesse que ela está comigo, provavelmente atraída pelo meu poder, qualquer que ele seja, e não propriamente por amor? E como poderei saber ao certo, se nem eu próprio acredito que os sentimentos se possam misturar com o poder?
Diogo Ramada Curto, historiador. Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).