Contacto
OpiniãoReino Unido

Os professores casuais, a um mês de se tornarem sem-abrigo

O maior sindicato do Ensino Superior britânico prepara-se para votar sobre mais uma longa acção de protesto e greves contra o aumento das contribuições para as pensões e a precarização do sector.

Antes que se diga que os professores universitários são todos uns pequeno-burgueses privilegiados, era bom que se lessem os números. Sobretudo diante de um sector em que os alunos pagam 9,200 libras/ano só em propinas; em que várias universidades (sobretudo as mais ricas) aumentaram as suas vagas em quase 15% durante a pandemia, e em que apesar dos escândalos do último ano lectivo, com perdas de renda nas residências, muitas instituições tiveram excedente orçamental.

Pelo menos foi o que o vice-director da Universidade de Edimburgo (a minha) disse numa apresentação sobre as poupanças consideráveis devido à Covid-19 (luz, água, internet, rendas, manutenção, pessoal), aumento das contribuições do governo (lay-off e apoio a novas tecnologias no ensino), poupança com investigação (ninguém pôde ir a lado nenhum, nem à Biblioteca Nacional tirar fotocópias) e com pensões.

Os resultados do inquérito no Ensino Superior são claros: um terço de todo o pessoal académico tem contratos a prazo. No UK chamam-se "casuais". A situação piora quando são académicos que dão exclusivamente aulas (44% a prazo); e piora ainda em académicos que leccionam mas também fazem investigação (68%).

Ainda há 29 instituições com contratos "zero horas", contratos em que o patrão não tem obrigação de garantir horas ao trabalhador. Hoje pode haver aulas para dar ou trabalhos para corrigir. Amanhã, quem sabe? Volte na próxima semana, pode ser que haja qualquer coisinha. É um trabalhador "à jorna" mas com contrato. A perfeita contradição.

Há 66 mil académicos com contratos que o sindicato considera "atípicos": a prazo, mistura de zero horas e termo, permanência em contratos a termo após período legal (em vez de renovar um contrato, celebra-se um novo criando um vazio legal que protege o empregador). E tudo isto se agrava se o trabalhador é mulher e não branco. Trabalhadores de minorias étnicas ganham 26% menos do que os seus colegas brancos pelo mesmo trabalho. Mulheres ganham menos 15,9% do que os homens.

O Guardian publicou esta semana a história de uma aluna de Doutoramento em Literatura Inglesa da Universidade de Royal Holloway, Londres, que vivia numa tenda. Porque tendo uma bolsa e recebendo à hora para leccionar numa das universidades mais privilegiadas do país, não ganhava o suficiente para pagar propinas, comida e habitação numa das cidades mais caras do mundo.

Os que trabalhamos em Universidades que estão no topo dos rankings sabemos que muitos dos nossos colegas são carne para canhão de todo o trabalho académico e administrativo. Um inquérito em Cambridge revelou que quase metade dos tutoriais são dados por trabalhadores sem contratos. É a Universidade uberizada beneficiando da "economia da partilha". Há dois anos, o Guardian dava conta de universidades que se tinham transformado em sweatshops, fábricas do suor, como maquiladoras mexicanas, "ateliers da miséria", como se diz em França. Um professor de Sociologia com 44 anos, dizia: "Somos trabalhadores sazonais, como colectores de fruta."

A deputada Asana Begum confrontou no Parlamento reitores de universidades, perguntando-lhes se salários superiores a 250 mil libras/ano (o dobro do Primeiro-Ministro) são razoáveis, quando 50% do staff é precário e muitos recebem menos de 15 mil libras/ano (abaixo do salário mínimo). Soube-se que o reitor de Edimburgo ganha 340 mil libras/ano, mais 42 mil em contribuições para pensão, todas as despesas pagas (incluindo casa no bairro mais caro da cidade), e não um, mas dois motoristas. A líder do sindicato, Jo Grady, explicou: "Este é o pequeno segredo sujo do Ensino Superior: que um sistema inteiro se mantenha à tona com o trabalho de pessoas que estão normalmente a um mês de salário de se tornarem sem-abrigo."

(Autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.)

Raquel Ribeiro, entre a América Latina e a Escócia

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo.