O português que quer fazer da estupidez uma ciência
É quase de certeza a energia mais poderosa da Humanidade: a estupidez. Volátil, altamente contagiosa, devoradora, sem género, sem classe. Será esta a raiz quadrada dos nossos problemas? Terá cura esta pandemia ancestral? A resposta chega de Portugal. Um professor catedrático sistematizou a estupidez. Quer que a Estupidologia evolua para ciência, para que daqui se evolua para a inteligência. Um pequeno passo para a ciência, mas um grande passo para a Humanidade. Se não formos estúpidos, claro.
Vítor J. Rodrigues, doutorado em Psicologia pela Universidade de Lisboa, dedicou grande parte do seu tempo ao estudo da estupidez. © Créditos: DR
Não é preciso ser muito esperto, nem provavelmente muito estúpido, nem um estúpido medíocre, um estúpido médio, um estúpido acima da média, mesmo até um estúpido extraordinário para entender que a estupidez, não estando propriamente classificada como património imaterial da Humanidade, será eventualmente dos mais protegidas, ainda que a estupidez e, naturalmente, os estúpidos, estejam muito longe de se encontrar em vias de extinção. É uma verdade de tal forma insofismável que qualquer estúpido sabe.
Vítor J. Rodrigues, conforme ele próprio se apresenta, é doutorado em Psicologia pela Universidade de Lisboa, psicoterapeuta desde 1985, tendo sido professor catedrático durante perto duas décadas, é conferencista e formador na área da Psicologia Transpessoal, especialista em distúrbios de stress, terapia regressiva, hipnose e meditação. Desde sempre se dedicou ao estudo da estupidez, um trabalho incessante rumo ao objectivo de tornar ciência a Estupidologia, com uma obra que já vai extensa, dada a infinitude da matéria. A pedra filosofal da Estupidologia, encontramo-la na Teoria Geral da Estupidez Humana, obra que daria mais tarde lugar ao Nova Ordem Estupidológica e, mais recentemente, ao Livro da Ignorância que, embora em último, é o princípio activo da estupidez.
Será a estupidez um bem? Ou será apenas uma necessidade prática, não só da vida moderna, como de todos os tempos passados e futuros? Poder-se-ia acabar com a estupidez sem que daí viesse mal ao mundo?
Não é pêra doce, o grande tema da nossa estupidez, antes de mais porque pode parecer estúpido aprofundar a estupidez em bases científicas, suscitar perplexidades perigosas, até algum desencanto com determinadas estirpes de estupidez, individuais, sociais, culturais, patológicas. A máquina colossal da estupidez tem propulsores naturais e uma forma ímpar de canibalismo que providencia a sua cadeia alimentar.
A pedra filosofal da Estupidologia está espelhada no livroTeoria Geral da Estupidez Humana, de Vítor J. Rodrigues. © Créditos: DR
Não é pêra doce, o grande tema da nossa estupidez, antes de mais porque pode parecer estúpido aprofundar a estupidez em bases científicas, suscitar perplexidades perigosas, até algum desencanto com determinadas estirpes de estupidez, individuais, sociais, culturais, patológicas. A máquina colossal da estupidez tem propulsores naturais e uma forma ímpar de canibalismo que providencia a sua cadeia alimentar.
As grandes questões, que o psicólogo clínico apresenta em sinopse na sua Teoria Geral da Estupidez Humana, são estas: "Será a estupidez um bem? Ou será apenas uma necessidade prática, não só da vida moderna, como de todos os tempos passados e futuros? Poder-se-ia acabar com a estupidez sem que daí viesse mal ao mundo?" O autor "insurge-se contra as correntes de opinião que, estupidamente, procuram esconjurar a estupidez, adoptando uma postura claramente estupidológica".
Assim, "apoiado nas mais recentes investigações e métodos científicos, proclama que a estupidez, entre várias outras vantagens: faz ganhar tempo; evita ataques cardíacos; depressões e angústias". E, por estranho que tal possa parecer, está até "associada ao sucesso profissional". Para resumir uma história longa, Vítor J. Rodrigues considera que "a estupidez não é ausência de inteligência, mas resistência activa à inteligência e, por isso, deve ser caracterizada positivamente".
Analisando, pois, a questão de um ponto de vista um tanto ou quanto histriónico, "as provas da importância da estupidez nos assuntos humanos e da consequente necessidade do seu cultivo são tão esmagadoras, quanto as da inadequação da inteligência num mundo que não foi feito à sua medida", diz o professor Vítor J. Rodrigues.
E o pior é que "estamos tão estreitamente familiarizados com a estupidez, que já nem damos conta do grau em que esta se insinua nas nossas vidas e as influencia", alerta o psicoterapeuta. Correndo o risco de parecer sabemos o quê, sendo o espectro da estupidez tão esmagador, como se definirá uma unidade de estupidez, caro professor? A resposta, não sendo universal, está no livro: "A estupidez pode ser parcelar ou generalizada a todo o aparelho psíquico, espontânea ou cultivada, amplamente manifesta ou subtil. O estúpido é alguém que, para resistir à inteligência, estreita a sua mente, ignora informação, fecha-se em si mesmo. Retrai-se perante toda a dilatação de horizontes induzida pela inteligência".
Segundo Vítor J. Rodrigues, a estupidez é uma constante da vida humana, encontrando expoente nas chamadas sociedades modernas. "A inteligência tem sido sempre preterida pela estupidez, talvez porque esta funcione melhor na nossa sociedade. É mais rápida, cria-nos menos obstáculos, exige menos de cada um de nós. A impulsividade, ajuda muito. São emoções primárias, extrínsecas, pouco elaboradas pela inteligência. Toda a sociedade de consumo é construída através dessas motivações". Em termos gerais, socorrendo-se de uma metáfora do mundo animal, "é como pôr uma cenoura à frente do burro", sendo que o burro, mamífero perissodáctilo tão desconsiderado na família nos equídeos, o não é no sentido estupidológico do termo.
Neste livro o autor aprofunda a sua teoria sobre a estupidez humana. E chega à conclusão que a estupidez é uma constante da vida humana, encontrando expoente nas chamadas sociedades modernas. © Créditos: DR
Segundo Vítor J. Rodrigues, a estupidez é uma constante da vida humana, encontrando expoente nas chamadas sociedades modernas. "A inteligência tem sido sempre preterida pela estupidez, talvez porque esta funcione melhor na nossa sociedade. É mais rápida, cria-nos menos obstáculos, exige menos de cada um de nós. A impulsividade, ajuda muito. São emoções primárias, extrínsecas, pouco elaboradas pela inteligência. Toda a sociedade de consumo é construída através dessas motivações". Em termos gerais, socorrendo-se de uma metáfora do mundo animal, "é como pôr uma cenoura à frente do burro", sendo que o burro, mamífero perissodáctilo tão desconsiderado na família nos equídeos, o não é no sentido estupidológico do termo.
No fundo da estupidez
A Teoria Geral da Estupidez Humana é uma análise às profundezas da nossa estupidez e, parecendo antagónico, mais um passo para o seu conhecimento no vasto território que é a Estupidologia. Pensando bem, é território sem fim. Para utilizar um dos excertos que o autor considera mais relevantes na sua obra, na Humanidade "a estupidez está difundida em tal grau que não poderia ser devida à simples geração episódica e acidental de intelectos desnutridos. Pelo contrário, a exuberância dos fenómenos estupidológicos, a sua extrema variedade, a riqueza das suas realizações ou a elegância dos seus refinamentos, tudo nos faz encontrar na estupidez mais, muito mais do que uma vacuidade, uma ausência de inteligência".
Só reconceptualizando a estupidez no léxico dos nossos tempos se vislumbrará a sua verdadeira face, "das diversas demonstrações estupidológicas quotidianas, à percepção estúpida das coisas". Sistematizando, sistematizando, recapitulando incessantemente a História da estupidez, as suas múltiplas formas, explícitas, implícitas, as suas multiplicadoras decantações, as suas características relacionais e afectivas, na viagem desde os primórdios estupidológicos, ao que o professor Vítor J. Rodrigues define como a "douta estupidez", das formas indeléveis da "estupidez artística à metafísica da estupidez".
Mas, senhor professor, dar corpo à estupidez não é um método perigoso? "A repressão da inteligência é um perigo incomparavelmente maior. Estamos no transe de nos fecharmos, de nos encerrarmos em nós mesmos. Estamos ensinados a negar os problemas do mundo. Há quem use drogas para expandir a mente. A estupidez é a droga da antítese".
Se não, vejamos só isto: as guerras, a fome, os preconceitos, as religiões. Todas as mil coisas que fazemos num quotidiano perto ou distante, enlatados numa rotina qualquer para fazer o que não queríamos, evitando os outros a todo o custo, para não ter que lhe desejar os bons dias ou pedir-lhe desculpa pelo incómodo. Nos nossos carros, apitamos vigorosamente para o tipo da frente, que deixou um peão atravessar a dois centímetros da passadeira, anda lá, pá!, depois atiramos para o chão um maço sem tabaco, fazemos pequenas, médias e grandes descargas poluentes no sítio que habitamos, pregamos terapias para o aquecimento global atirando gasolina para a fogueira, e andamos por aí, contentes da vida, a tentar passar a perna aos outros com falsos altruísmos.
Coisas minúsculas, tornam-se pequenas, de pequenas crescem para grandes, e as grandes ultrapassam os nossos próprios limites. Na imensa chaise longue da nossa psicanálise, usamos orgulhosamente as nossas máscaras (as outras), disfarçados de nós, corrompendo, aniquilando, reinventando o nosso pior. Olhamos para os que andam na contra-regra e ridicularizamo-los, como Quixotes da anarquia. O mundo corre a tropeçar nas suas pernas, fazendo reféns entre a minoria dos estúpidos que pensam por si.
A propósito, se houvesse limites para a estupidez, onde é que eles já iam, professor doutor? "A estupidez e a ciência da Estupidologia não tem limites. A energia pela qual as pessoas se regem é a negação da inteligência profunda, onde se encontra também o amor e, neste, a consciência social. Sexo, violência, medo, desejo. Se não fosse a artificialidade em que vivemos, teríamos o comportamento de animal irracional", ironiza.
O engarrafamento é o pão nosso de cada dia em muitas cidades do mundo. Mas mesmo assim não nos conseguimos libertar da ditadura do automóvel. © Créditos: Guy Jallay
Não sendo a mesma coisa, a irracionalidade é tão certa quanto a estupidez. Tem tanto de lógica como o preço do barril de crude aumentar o preço do pão, enquanto mais de 12 milhões de crianças morrem de subnutrição. No mundo, há mais de 400 milhões de pessoas a viver em condições de pobreza extrema, mais de 900 milhões que sofrem de problemas de saúde crónicos que resultam de subnutrição grave, a cada trinta segundos das nossas vidas, uma criança morre, vítima de malária. Neste preciso momento, alguém foi assassinado.
Uns vivem os dias com medo, outros andam perdidos em ideais de beleza, uns matam, outros esfolam, uns vendem férias num destino de sonho, outros pregam o paraíso. Temos leis, regras, coisas, os mais incríveis gadgets, observamos o vizinho do lado no Google Earth, seguimos guerras ao minuto no telemóvel, queremos ser perfeitos, vamos de carro para o ginásio, temos maminhas novas, injectamos botox, fazemos lipoaspirações, cirurgias plásticas, fazemos filhos e empréstimos e, um dia destes, morremos sem ter vivido. Será essa a grande semente da estupidez, senhor professor? Seremos justamente estúpidos uns com os outros? "Isso é uma pergunta retórica".
Impressionante rosário, o da Humanidade, certamente um contributo inestimável para a ciência da Estupidologia. A Primeira Guerra Mundial deixou 37 milhões de cadáveres. Na II Guerra Mundial terão sido uns 50 milhões, sendo que seis milhões foi porque eram judeus. Seria fastidioso viajar para os tempos dos nossos primos ancestrais, pôr uma rolha na Idade Média, seguir directo para os três milhões de índios americanos que não resistiram aos espanhóis, talvez os 78 milhões da revolução chinesa, talvez o Cambodja, a Arménia, os comunistas na Indonésia, às mãos de Suharto, o Vietname, os tutsis no Ruanda, Burundi, Serra Leoa, Haiti, Chade, Uganda, o Kosovo, Darfur, a Ucrânia.
Venha um estupidólogo e escolha. Se isto não é estupidez pura e dura, de incontabilizável potencial energético, então é porque andamos todos certos e a estupidez é, afinal, a fórmula de uma estranha inteligência, em simultâneo o efeito da nossa causa e a causa do nosso efeito.
Ter a noção da nossa parcela de estupidez, salienta o professor, é já caminho percorrido. Na sua qualidade de professor universitário emérito, ensina isto sempre que pode. Na actividade de psicólogo clínico, faz o que é possível. Trata caso a caso no sigilo do seu gabinete, cada um com a sua referência estupidológica específica na grande patologia planetária. Conhecendo os parâmetros e a demografia da nossa estupidez, não é de estranhar que o professor, segundo o próprio, seja inúmeras vezes convidado para dar conferências por todo o mundo, e em Portugal tenha quase de limitar-se aos workshops para "estúpidos" conscientes, que só querem ser felizes e aprendem a não ter medo da cura.
O professor Vítor J. Rodrigues sabe que é longo e estúpido o caminho para tornar a Estupidologia ciência, mas abdicar deste seu desígnio seria o cúmulo da estupidez. O percurso para o conhecimento da estupidez é, segundo este psicoterapeuta de Évora, o principal, mas não o único trajecto lógico para a inteligência.
Em geral, a estupidez devia ser considerada uma ameaça pública. Devia ter mandados de captura por toda a parte. Por outro lado, não deixa de ser curioso que para interromper o ciclo voraz da estupidez se tenha que começar a desenvolver piores estúpidos.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)