"O Luxemburgo não quer tornar-se o país do 'turismo da morte'"
O testemunho de quem trabalha de perto com a morte medicamente assistida.
Claudette Pierret luta há mais de três décadas pelo direito a morrer com dignidade. © Créditos: DR
Claudette Pierret, ex-delegada adjunta da ADMD (Associação pelo Direito de Morrer com Dignidade), de Meurthe-et-Moselle, luta há 30 anos por um único objetivo: permitir que qualquer pessoa possa recorrer à eutanásia ou ao suicídio assistido, se assim o desejar.
Apesar da prática ser ilegal em França, Claudette ajuda pessoas a fazê-lo na Bélgica, Suíça e está a tentar chegar ao Luxemburgo.
Porque se envolveu nesta luta?
Em 1987, encontrei um artigo na Femmes d'Aujourd'hui. A fotografia mostrava uma idosa com uma maca atrás dela e um corpo desfocado. Tratava-se de uma mulher de 83 anos que estava a ser julgada por homicídio. Na verdade, tinha simplesmente ajudado o marido, de 87 anos, a morrer. No fundo do artigo, em letras muito pequenas, estava o nome da ADMD. Aderi imediatamente...
Como foi o seu percurso na associação?
De simples membro, tornei-me a delegada adjunta para o Pays-Haut (fronteira com a Bélgica). Há cerca de doze anos, organizei uma reunião em Longwy com o médico belga Yves de Locht para explicar a lei em vigor na Bélgica, que foi adotada em 2002. Demo-nos muito bem e decidimos que podíamos ajudar alguns doentes. Foi assim o início.
Trabalha sobretudo com Yves de Locht?
Na Bélgica, são os médicos assistentes que realizam a eutanásia em pacientes belgas. Os franceses, por outro lado, preferem recorrer a médicos conhecidos e Locht é um deles. Mas, aos 78 anos, quer reduzir o trabalho. Também trabalho com outro médico que tem "apenas" 64 anos e para quem já encaminhei dois pacientes. Há também o médico Damas, de Liège, mas é médico hospitalar.
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Em França, a eutanásia é proibida, mas permite-se que as pessoas que o desejem possam fazê-lo no estrangeiro. E de uma forma completamente legal. Não é hipocrisia?
Em França, os médicos praticam [a eutanásia] clandestinamente, correndo o risco de serem processados. Nicolas Bonnemaison perdeu o direito de exercer medicina por ter ajudado uma paciente em final de vida a morrer. Em França, preferimos entregar o "trabalho sujo" (porque executar a eutanásia nunca é uma coisa fácil para um médico) aos médicos estrangeiros...
Porque é que a questão da eutanásia se mantém num impasse em França? Deve-se a considerações médicas, religiosas ou políticas?
Os três. Sempre que falamos de eutanásia, toda a hierarquia da Igreja se envolve. E o seu peso, em França, é inimaginável. Faz-me lembrar um discurso de João Paulo II, em 1980, quando declarou que "a França é a filha mais velha da Igreja"... A seguir, vem a Ordem dos Médicos - isto apesar de 72% dos médicos dizerem que são a favor de prestar assistência médica para morrer se o paciente estiver em estado terminal ou se a situação for irreversível. Há obviamente uma relutância política, mas não devemos esquecer que EHPADs (sigla em francês para lares de idosos franceses) ou laboratórios farmacêuticos ganham dinheiro com pessoas mais velhas e não querem vê-las morrer demasiado depressa...
Para mim, sedação é uma eutanásia retardada, lenta...
Não é propriamente segredo que nas unidades de cuidados paliativos, por vezes pergunta-se às famílias se desejam encurtar o sofrimento do familiar.
Sim. E se a família concordar, param os tratamentos, que é como causar a morte... Faz-me lembrar um caso na minha família que esteve nos cuidados intensivos. Quando conheci o médico, disse-lhe que nem ele nem a sua família queriam continuar com o tratamento. No dia seguinte, às seis da manhã, recebemos uma chamada para anunciar a morte. Ainda bem que os médicos fazem isto. Mas se o médico tivesse sido denunciado, poderia ter sido proibido de exercer.
Como voluntária, trabalha com a Bélgica. Como é a realidade na Suíça e no Luxemburgo?
Na Suíça, estou em contacto com uma pequena associação que não quer o nome divulgado para não se tornar tão grande como a Dignitas se tornou. Quando um paciente me contacta, envio o documento "Paralelo entre eutanásia na Bélgica e suicídio assistido na Suíça", onde está tudo explicado. Incluindo o custo, porque ainda conta: infelizmente, morrer no estrangeiro não é uma possibilidade para todos. Depois, o paciente escolhe um ou outro. A única diferença é que na Suíça um médico não está autorizado a dar a injeção porque a eutanásia é proibida.
É o próprio paciente quem tem de realizar o ato final e, para os tetraplégicos, pode ser complicado. Foram postos em prática dispositivos para que possam, por exemplo, acionar o dispositivo através de uma espécie de pérola colocada na boca, e ao virar a cabeça também conseguem iniciar a infusão que foi colocada no braço... Aqui, mais uma vez, é uma hipocrisia total. Estamos a complicar o fim da vida dos pacientes até ao último segundo.
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E no Luxemburgo?
Para o Luxemburgo ainda não consegui enviar ninguém porque os médicos luxemburgueses estão muito relutantes em realizar eutanásia em doentes que não acompanham há muito tempo. Só um médico se mostrou disponível para o fazer. Mas, mesmo com a ajuda da associação MWWM, é muito difícil ter acesso aos médicos. Gostaria de entrar em contacto com eles, mas como? Até existe uma lei desde 2009 [que torna legal a eutanásia no país]. O Luxemburgo não se quer tornar o país do "turismo da morte".
8.300 euros por suicídio assistido na Suíça
"Na Bélgica, a eutanásia no hospital custa 1.350 euros", explica Claudette Pierret. "A que se juntam o preço da consulta do clínico geral (50 euros), do psiquiatra (200 euros), mas também o dos agentes funerários, da cremação e do repatriamento do corpo, ou da urna funerária para a França." Para o suicídio assistido na Suíça, a associação com a qual Claudette Pierret colabora oferece um pacote de 8.300 euros. “Mas está tudo incluído. Desde a constituição do arquivo até a receção da urna pelos Correios", afirma.
Mencionou a influência da Igreja em França, mas esta também existe no Grão-Ducado...
Sim, parece que os franceses são mais burros do que os luxemburgueses e os belgas.
Já teve oportunidade de falar com algum dos representantes da Igreja?
Sim, num programa de televisão, fui convidada [para um debate] com um paciente dos Vosges, um representante da Igreja Protestante e um padre. É simples, foram tão poucas as trocas e os diálogos que nem foi transmitido... Resumindo, o padre só teve esta abordagem: “O bom Deus dá a vida, o bom Deus a tira”. Conheço apenas um padre que fala sobre este assunto e é um belga, Gabriel Ringlet. Escreve livros e acompanha os doentes na eutanásia. Porque é que a Igreja lhe permite tal liberdade de expressão? Não sei, mas em todo o caso, é muito interessante ouvi-lo. Ele lembra-nos que: "Quer se opte por sedação ou eutanásia, em ambos os casos está-se a tomar uma decisão consciente para pôr fim à vida de alguém". E concordo plenamente. Para mim, sedação é uma eutanásia retardada, lenta...
Numa sondagem conduzida pelo Ifop em França, em abril de 2021, 93% da população francesa declarou-se a favor de uma lei francesa que permita aos médicos pôr fim, sem sofrimento, à vida de pessoas com doenças graves e incuráveis.
Claro, os franceses são a favor da eutanásia. Quando tenho uma reunião é frequentemente conhecer pessoas que são a favor. Basicamente, eu prego aos convertidos. É por isso que prefiro ter um adversário na sala. Abre o diálogo e aproveito a oportunidade para responder aos seus argumentos.
Em França, quando se fala de eutanásia, pensa-se no caso de Vincent Lambert que, após um acidente de automóvel em 2008, passou onze anos em estado vegetativo porque os pais não quiseram parar os tratamentos. Está enterrado em Longwy. Teve contacto com a família?
Vincent Lambert está enterrado a 800 metros da minha casa. Tive contacto com o sobrinho, um advogado e com Rachel, mulher de Vincent (que era a favor de parar o tratamento). Tanto Vincent como Rachel Lambert tinham exercido no hospital Mont Saint-Martin, mas ele não tinha deixado por escrito as suas diretivas antecipadas [decisão de parar ou continuar um tratamento em situações irreversíveis]. Hoje, se surgisse um caso Lambert em França, encontrar-nos-íamos exatamente na mesma situação. Na Bélgica, a lei prevê uma hierarquia de pessoas a serem consultadas. Em primeiro lugar, é a mulher que decide, depois os filhos e só depois os pais do paciente.
Ouço-os, nunca julgo e não choro com eles, não é compaixão que eles esperam de mim, mas eficiência.
Uma diretiva antecipada pode ser contestada?
Sim, em dois casos: primeiro, quando o paciente se encontra numa situação de emergência com risco de vida; segundo, quando o médico considera a diretiva "inadequada", o que significa que é sempre o médico que decide em todos os casos, uma vez que a lei lhe permite declará-la "inadequada". Isto é impensável para mim.
Existe um registo nacional de diretivas antecipadas?
Não. Ou seja, se uma pessoa tiver escrito as suas diretivas antecipadas mas tiver deixado na mesa de cabeceira sem dizer nada a ninguém, ou se o seu conselheiro de confiança decidir não respeitar os seus desejos, ninguém saberia... A ADMD criou um arquivo, mas não há nada oficial. E não está aberto 24 horas por dia. De momento, a melhor maneira de garantir que as nossas diretivas antecipadas são respeitadas é levar uma cópia no carro, dar uma à pessoa de confiança, aos filhos e ao médico.
O que acha que deveria ser feito?
Fizemos essa consulta e, tecnicamente, seria possível registar diretivas antecipadas no nosso cartão vital.
Como é que funciona na Bélgica?
A lei belga estipula que o pedido de eutanásia deve ser feito ao "médico assistente" que pratica na Bélgica. Um segundo médico deve ser consultado para verificar a gravidade da doença e, se o paciente não estiver no fim da vida (morte dentro de mais ou menos seis meses), deve também consultar um terceiro médico que será um especialista na doença ou um psiquiatra. Ao ajudarmos pacientes que sofrem de várias patologias (cancro, doenças neurodegenerativas, etc.), optamos pelo psiquiatra, que está autorizado por lei a dar a sua opinião em todos os casos.
Temos o mesmo psiquiatra há algum tempo e tornou-se o médico de referência na ajuda que Locht e eu damos aos pacientes franceses. Dou ambas as consultas no mesmo dia, limitando assim as viagens a doentes em má forma física que muitas vezes viajam em condições muito difíceis.
Como se processa o contacto entre si e o doente?
É simples, a pessoa que me chama pode ter cancro ou outras doenças... Ouço-os, nunca julgo e não choro com eles, não é compaixão que eles esperam de mim, mas eficiência. Por vezes, garanto-vos que não é fácil, especialmente quando são jovens... Depois envio uma folha de informação para preencher e a pessoa tem de me enviar os documentos médicos que provem o estado de saúde atual. Envio ao médico na Bélgica para ver se este concorda em vê-lo.
Posso assegurar que muitas - se não todas - das pessoas que acompanhei na eutanásia partiram com um sorriso no rosto.
Uma pessoa pode estar em fim de vida mesmo que não sofra de uma doença incurável?
Sim, no caso de uma pessoa acamada, por exemplo, que sofre de múltiplas patologias. Digamos que já não conseguem ver ou ouvir, têm osteoartrite e já não conseguem andar, a sua vida tornou-se insuportável... Neste caso, a polipatologia é tida em conta. Este foi o caso de Alain Cocq, em França. Sofria de uma doença muito rara e incapacitante, poderia ter vivido mais dez anos... Como não conseguiu morrer em França, foi para a Suíça.
Qual é a idade média das pessoas que optam pela eutanásia?
Entre um de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2021, o relatório da CFCEE ( Comissão Federal de Revisão e Avaliação da Eutanásia) destacou que o maior grupo de pacientes que recorrem à eutanásia esta na faixa etária entre os 60 e 80 anos é a mais representada (77%), seguindo-se a faixa etária dos 80-89 anos (28,3%). Recorde-se que a eutanásia em doentes com menos de 40 anos é ainda muito rara (1,2%).
O que é um dia típico para a Claudette?
É um dia dedicado aos doentes, aos ficheiros, à leitura de artigos sobre o assunto, à publicação de um ou outro artigo nas redes sociais e assim por diante... Passo os meus dias nesta missão.
Como a encara?
Sei que é necessária e útil. Tenho a sorte de ter dez dedos, por isso, gosto de pintar, desenhar, cozinhar... Por exemplo, quando um jovem é eutanasiado, posso começar a fazer bolos às 23h dessa noite. Tem de sair bem de alguma forma... É um escape. Felizmente, tenho estas outras atividades, senão não ia conseguir.
Sente alguma forma de satisfação?
De que tipo?
De permitir que as pessoas ponham fim ao seu sofrimento.
As pessoas perguntam-me frequentemente duas coisas: "1. Por que faço isto? 2. Como posso continuar?" A estas duas perguntas, só há uma resposta: porque estou convencida de que estou a fazer o bem. Pode parecer presunçoso, mas quando ajudo alguém a morrer - porque é esse o seu desejo - é um alívio. Se tivesse alguma dúvida, não o faria.
Alguma vez foi ameaçada?
No início de 2021, um homem de 23 anos contactou-me com um pedido de eutanásia. Disse-me que sofria de dores de cabeça terríveis a ponto de não conseguir abrir as pálpebras, de não aguentar o mínimo barulho, de não poder sair com os amigos... Mas não havia nada no seu ficheiro que indicasse que se tratava de uma doença grave, ou mesmo incurável. Na Bélgica e na Suíça, a resposta foi a mesma: tem de fazer mais testes. Disse-lhe isto e ele agradeceu-me... Em 2022, dizem-me da ADMD que alguém está a tentar obter os meus dados...
O que é que aconteceu?
O pai do jovem telefona-me e diz-me que o filho cometeu suicídio e que me vai processar. Uma queixa com dez acusações. Ele queria ter sido informado sobre as ações do filho. Eu compreendo, mas ele tinha 23 anos, era maior. Passaram-se meses e, na véspera de Natal, telefonou-me e disse-me que seria convocada muito em breve. Mas não tenho com que me preocupar e todos os documentos das conversas que tive com o jovem comprovam isso. Mesmo assim, compreendo a dor deste homem. A perda de uma criança é sempre uma tragédia.
Acompanha os doentes no dia da eutanásia?
Sim.
Como são os últimos momentos?
Pode parecer um pouco surreal, mas o paciente e os familiares encontram-se numa sala e falam como se nada tivesse acontecido. Os médicos perguntam ao doente (que está deitado) se está pronto, porque é ele quem decide quando quer morrer e, sobretudo, se ainda quer morrer.
Uma dúvida. Uma pessoa que é eutanasiada morre de morte natural?
Não. Essa expressão implica que a pessoa morre durante o sono ou de uma forma natural. Não é o caso. No entanto, posso assegurar que muitas - se não todas - das pessoas que acompanhei na eutanásia partiram com um sorriso no rosto. Pacificamente. O mais difícil, no final, é quando há demasiados familiares à volta.
Fez a sua diretiva antecipada?
Sim. Desde que possa falar, tomarei a decisão, mas se não puder falar ou se estiver em coma, não quero ser mantida em cuidados paliativos. As minhas diretivas assistidas estão escritas e os meus dois filhos sabem-no. E também eles já tomaram as suas providências.
Ainda acredita que a visão sobre a eutanásia vai evoluir em França, uma vez que o resultado da Convenção de Cidadãos (possível nova lei) sobre o assunto está marcada para março?
Aos 75 anos, e apesar de só celebrar o meu aniversário de quatro em quatro anos (nasceu a 29 de fevereiro), sei que a minha vez está para breve... Portanto, digamos que espero ver aprovada uma lei sobre a eutanásia antes de morrer. Seria bom que os políticos não demorassem muito (risos).
(Artigo original publicado no jornal Virgule e adaptado para o Contacto por Ana Patrícia Cardoso.)