O caçador de asteroides
Quando o mundo inteiro se fechava em casa para se proteger da pandemia de coronavírus, Fred Thill passava a pente fino os céus do Luxemburgo. Até descobrir dois asteroides nunca antes identificados.
© Créditos: António Pires
A colina de Blaschette tem as condições ideais para observar o cosmos. Está suficientemente longe da capital para escapar à poluição atmosférica. Também está a 425 metros de altitude, o que em astronomia garante vistas limpas. E é um planalto, o que significa que a lente de um telescópio pode ser girada a 360 graus. “Sempre que as nuvens dissipam é para aqui que eu venho”, diz Fred Thill, 50 anos, astrónomo.
Quando aqui passa os dias, o luxemburguês está normalmente a observar o sol – e para isso precisa de usar um filtro que diminui em 100 mil vezes a intensidade da luz. Mas é sobretudo à noite que Fred sobe o monte, para ver buracos negros e nebulosas, planetas e cometas e, muitas vezes, simples asteroides. “Quanto mais frio fizer, melhor”, explica agora enquanto vai montando o telescópio. “Porque os dias frios têm normalmente baixos níveis de humidade e vento, e isso é essencial para a observação de estrelas.”
Uma vez, pôs-se a filmar o céu numa noite em que os termómetros marcavam 11 graus negativos. “Montei um tipi e fiz uma fogueira, então lá dentro estavam 22 graus. A câmara ia gravando a partir do telescópio e eu deixei-me adormecer. Por volta das três e meia da manhã oiço um barulho e, quando espreito, está um veado ao lado do telescópio. Acho que veio ver se estava tudo bem com a Via Láctea”, graceja.
O Capacete de Thor, uma nebulosa a 12 mil anos-luz da Terra, fotografada a partir do céu luxemburguês. © Créditos: Fred Thill
Fred trabalha com dois importantes observatórios europeus: o de Nice, em França, e o de Louvain, na Bélgica. Por estes dias anda a tentar implementar um centro de observação para estrelas cadentes em Niederanven, mas na maior parte dos dias o que faz é passar o céu a pente fino num programa e assim perceber eventuais mudanças.
“O mais longe que consegui ir foi a 65 mil anos-luz da Terra, e para isso já é necessária uma boa máquina”, afiança. As descobertas mais surpreendentes que lhe estavam reservadas, no entanto, aconteceram muito mais perto, entre Marte e Júpiter.
Quando filma o céu, Fred aciona um programa que identifica em tempo real as estrelas, os cometas e os asteroides que aparecem na gravação. “Os asteroides são planetas menores de rocha e metal e, no sistema solar, a maioria deles estão localizados antes de Júpiter.”
Os planetas criam-lhes campos gravitacionais estáveis, pelo que as órbitas que cumprem em torno do sol, regra geral, também o são. “Mas, às vezes, há dois corpos que chocam e isso fá-los mudar de curso. É importante estar sempre a identificar e atualizar as orbitas dos asteroides para verificar se uma mudança de curso pode significar algum risco de colisão com o nosso planeta.”
Enquanto a lente aponta ao céu, um programa de software lê os corpos que circulam na imagem. Planetas a vermelho, estrelas a amarelo, nebulosas de todas as cores. Mas às vezes há um objeto que fica a branco – normalmente um asteroide que não está identificado em nenhum catálogo espacial. E, nos céus do Luxemburgo, Thill descobriu dois.
Aconteceu duas vezes. A primeira no final de 2019, quando apontava o telescópio à galáxia M87 e tentava observar um buraco negro. A segunda em pleno confinamento, na primavera de 2020, e dessa vez tudo o que queria ver era a Ursa Maior. “Mas depois apanhei aquilo e claro que foi uma emoção. Não comecei aos saltos nem nada disso, mas saber que podemos ter descoberto algo que nunca ninguém identificou antes é uma sensação fantástica.”
Fred Thill não encontrou uma nova estrela, nem sequer um novo planeta, mas pelo que sabe nunca um corpo astral tinha sido identificado a partir dos céus luxemburgueses – então ele pode muito bem carregar essa medalha ao peito. O Observatório de Nice tem neste momento nas suas mãos as fotografias e gravações que ele registou na colina de Blaschette, e não será antes de 2022 que conseguirão declarar um nome e uma orbita para os dois novos corpos celestes. Mas isto já ninguém lhe tira. O espaço é um lugar um bocadinho menos misterioso por causa dele.
A arte de olhar para cima
Na estação meteorológica de Blaschette. © Créditos: António Pires
A colina onde Fred costuma montar o seu telescópio é também abrigo para o clube de radiomodelismo de Mersch – o Modellfligerklus Miersch. Enquanto o luxemburguês vai abrindo o tripé, enroscando os suportes e pesos que sustentam a lente, uma série de pequenos aviões rodopiam à sua volta e aterram no relvado atrás dele.
“Eu prefiro montar esta pequena besta em cima da gravilha”, avisa ele com uma gargalhada. Depois explica: “É que basta uma passada no relvado para o aparelho se mexer um nanomilímetro, o que em termos espaciais significa uma mudança de rota de milhares de anos-luz.”
Ali ao lado há uma estação meteorológica que tanto o serve a ele como às dezenas de pilotos de aviões em miniatura. “Os dias ideais para voar são os mesmos que para ver as galáxias. O vento tem de ser inferior a 10 quilómetros por hora e o nível de humidade do ar deve ser o mais baixo possível, porque isso vai ter um grande impacto ao nível da nitidez e alcance das imagens.”
Desde os primeiros dias da pandemia, Thill tem reparado num interesse crescente pela astronomia. “Há pessoas que vêm para aqui com telescópios mais pequenos, eu tento dar-lhes algumas dicas, ajudá-las no que puder” Às vezes aparecia a polícia, interrogavam-se sobre o que andava ali a fazer e acabavam inevitavelmente a espreitar pelo aparelho e a comentar o espaço.
“Ao longo das últimas décadas o ser humano tem perdido uma das suas maiores artes: olhar para o céu. Se pensarmos bem, antes da internet, era por observação direta que os agricultores percebiam o tempo e o clima e a natureza. Agora, olhamos todos para baixo, para o ecrã do telemóvel”, diz ele.
Thill começou de miúdo a analisar a imensidão azul, e à noite negra, que habitava por cima da sua cabeça. “Lembro-me perfeitamente de receber o meu primeiro telescópio quando tinha 13 anos e de como isso foi estruturante.” Durante a adolescência, escapava-se do quarto e lá ia ele para o quintal, à revelia dos pais, por-se a contar os planetas e as estrelas.
Quando os outros miúdos lhe estranhavam o hábito, Fred tinha resposta afiada na ponta da língua. “Sabes, se eu me perder no mato à noite sei bem para onde ir. Se andar no hemisfério norte posso guiar-me pela estrela polar, se estiver a sul posso seguir o Cruzeiro do Sul, e isso é uma coisa bem prática que a astronomia nos ensina desde os primeiros dias.”
Depois há toda uma teoria sobre os movimentos celestes, e a dança entre eles é uma história de romantismo. “Quando queres impressionar uma miúda podes muito bem falar-lhe das estrelas-duplas, que são corpos celestes que orbitam em torno um do outro até se extinguirem. Tem um certo charme, não tem?”, e depois Fred pisca o olho.
Apesar da astronomia ser hoje a sua profissão, Thill aprendeu a arte de observação os céus à sua conta, lendo livros e enciclopédias, primeiro, e depois assistindo a tutoriais do YouTube. Foi aliás assim que conseguiu adaptar a velha câmara fotográfica Cannon do seu pai à enorme lente de 60 quilos que todos os dias limpos ele transporta para o topo de uma colina luxemburguesa.
E ainda que o telescópio que hoje utiliza ter custado 1500 euros, apesar de ter mais dois aparelhos de pequenas dimensões na bagageira do carro para observar os corpos celestes que estão mais próximos do planeta, foi aquele instrumento que recebeu de presente aos 13 anos que acabaria por lhe moldar a vida. O espanto de localizar uma galáxia distante ou encontrar um asteroide que ainda ninguém conhecia carregam a mesmíssima dose de alegria que sentiu numa tarde de outono, há muitos, muitos anos, quando observou pela primeira vez os anéis de Saturno.
Ver pequeno, ver grande
Fred Thill na colina de Blaschette. © Créditos: António Pires
Quando terminou os estudos e chegou a hora de decidir-se por um ofício, a astronomia nem sequer era questão em cima da mesa. “Eu gostava de trabalhar com materiais, perceber as estruturas dos materiais, e então decidi que queria ser joalheiro”, conta Fred Thill. Aos 18 anos, mudou-se para Paris para estudar na Alta Escola de Joalharia, no XIVième arrondissement.
“Logo nos primeiros dias reparei que a Universidade de Paris dava uns cursos livres de astronomia, então decidi inscrever-me.” Passou dois anos a estudar os astros à noite, fora do horário laboral. “Quando comecei a trabalhar nos ateliers de joias da Place Vendôme juntei algum dinheiro e comprei um telescópio Dobson que pesava umas valentes dezenas de quilos. Eu morava num apartamento de 37 metros quadrados, era simplesmente impossível guardar aquela tralha em casa. Então comprei um atrelado para o carro e instalei o equipamento lá.”
O automóvel dormia sob as estrelas, o atrelado na garagem que um amigo lhe emprestou. “À noite saía e ia para o Jardin des Invalides ver as estrelas. Montes de gente metia-se comigo por causa disso, tenho de admitir que era um bocado bizarro ver um tipo com uma carroça e uma parafernália de instrumentos fazer medições ao céu.”
Ao fim de semana fazia-se à estrada pelos caminhos menos batidos e a passo de caracol e ia a encontros de astrónomos a Tours. Arranjou emprego na Cartier e um dia pediram-lhe que fizesse o pé de uma mesa de bilhar em ouro. “Era para o sultão do Brunei.”
As duas paixões caminhavam lado a lado. De dia baixava a cabeça para trabalhar a minúcia, de noite levantava-a para explorar a vastidão. Em 2003, decidiu abandonar a capital francesa e voltar a casa. Ao cabo de três anos, meteu-se num avião para Tbilisi porque andava há anos com a curiosidade de conhecer a Geórgia. “Era para ficar um mês, acabei por ficar dois anos.”
O Cáucaso é famoso pela arte joalheira, então não lhe foi difícil encontrar trabalho numa das principais casas do país. Foi ali que se apaixonou e conheceu a sua futura mulher, que tinha uma série de amigos interessados em astronomia. “Às vezes metíamo-nos à estrada e íamos para o Observatório Abastumani, a 1700 metros de altitude, era simplesmente espetacular.”
Abandonou o país em 2008, quando as tensões da Geórgia com a Rússia escalavam por causa da Ossétia do Sul e da Abcásia. Nos dez anos seguintes, já no Luxemburgo, trabalhou como carpinteiro e serralheiro, abriu um bar e uma importadora de vinhos georgianos. A joalharia desaparecera da sua vida e a astronomia tinha-se tornado pouco mais que um passatempo.
“Depois de me divorciar, voltei a dedicar tempo ao que sempre tinha gostado e percebi que isso não era apenas um ofício, era algo que me definia enquanto pessoa.” Comprou um pequeno telescópio, ao fim de um mês comprou outro, começou a fazer experiências e contactos com os observatórios. “Tentei perceber até que ponto poderia ser útil e dediquei-me a fundo ao trabalho. Agora trabalho para o Centro de Investigação Espacial de Louvain a tempo inteiro.”
A criação de joias passou a tarefa secundária, mas ele sabe que é uma questão de tempo para aí voltar. “Se não perceberes o que é infinitamente pequeno, nunca vais perceber o que é imenso e infinitamente grande. Olhas para a realidade através de dois cones – um para cima, outro para baixo. E tu és o vértice.”