O anjo e o demónio de Elon Musk
A pandemia permitiu uma das maiores concentrações de riqueza desde que há memória. O Twitter é só uma manobra de diversão.
© Créditos: Scott Olson/AFP
Sempre que tento dar o exemplo de um multimilionário que está a destruir o mundo, apesar do seu discurso sobre aparente redenção, recorro a Elon Musk.
Não é que Jeff Bezos, Bill Gates, Mark Zuckerberg não me entusiasmem na caricatura. Afinal todos mais que duplicaram o seu património desde o início da pandemia e, alguns, ainda foram às estrelas com os seus foguetões medir pilinhas, enquanto nós nos encavalitávamos cá em baixo, de máscara azul cueca, à procura de um Serviço Nacional de Saúde.
Quarenta e quatro mil milhões dólares: sabemos que acabar com a fome no mundo são 'apenas' 6 mil milhões, segundo o director do Programa Mundial contra a Fome que, em Outubro de 2021, desafiou Elon Musk no Twitter a pôr fim ao sofrimento de 42 milhões de pessoa doando 2% (apenas) de toda a sua riqueza para a ONU.
Na era do capitalismo de vigilância (para roubar a expressão de Shoshana Zuboff), importa pouco que Musk tenha comprado o Twitter, se vai manter a liberdade de expressão, se é um brinquedo de menino mimado ou um investimento a sério. Isso é conversa de "investidores" que lêem os três rodapés do canal Bloomberg em simultâneo. Para os outros, não é diferente das mãos em que estão o Facebook ou o Instagram. Mas antes que digam que a esquerda tem "inveja" de empreendedores self-made, seria realmente diferente se os Estados os regulassem, os controlassem, os taxassem.
Vi alguns amigos indignados: agora que o Musk comprou o Twitter, para onde "vamos"? Já "viemos" da ágora para os conluios políticos dos bifes no Snob, para os murais amorais do Facebook, que mergulhou na obsolescência etária, e agora levam-nos o Twitter "que ainda era livre". Sobra-nos o Tik Tok, sobre o qual sabemos pouco ou nada, acima de tudo, por ignorância e preconceito (é da China), enquanto continuamos a acreditar nos valores democráticos no/do Twitter ou Facebook.
Quarenta e quatro mil milhões dólares: sabemos que acabar com a fome no mundo são "apenas" 6 mil milhões, segundo o director do Programa Mundial contra a Fome que, em Outubro de 2021, desafiou Elon Musk no Twitter a pôr fim ao sofrimento de 42 milhões de pessoa doando 2% (apenas) de toda a sua riqueza para a ONU.
Não é bem assim, dizem os liberais. Porque ele "não tem" os billions no bolso. Estão em assets, em shares, em rendas, em carteira, em investimento. Se fosse ao banco e tentasse levantar tudo numa mala – quantas malas seriam 264.6 mil milhões de dólares? –, o banco não conseguiria responder. Porque o banco também tem tudo em assets, em shares, em rendas, em carteira, em investimento, e um bocadinho em caixa para gerir a caderneta dos reformados.
Musk é um CEO. Um entrepeneur. Um business manager que apoia golpes de estado se lítio preciso for. Um "angel investor" (Wikipedia delicodoce), nem sei se traduzir como "investidor de anjos" ou "anjo de investidor". Explico, porque também leio os três rodapés do Bloomberg, que um "angel investor" é um investidor de risco numa startup, que aposta numa ideia estapafúrdia correndo o risco de ficar milionário ou perder tudo num só lance. Um pouco como as empresas 'unicórnio' que Carlos Moedas queria trazer para Lisboa.
O relatório da Oxfam de Janeiro dizia que, durante a pandemia, 10 dos homens mais ricos duplicaram a sua fortuna de 700 mil milhões para 1.5 biliões (à velocidade de 15 mil dólares/segundo, 1.300 milhões/dia). Enquanto a renda de 99% da humanidade decresceu e mais de 160 milhões caíram na pobreza.
Como é que isto se faz? O Washington Post contava em 2021 que Musk tinha de apagar um tweet contra sindicatos, a Tesla teria de re-empregar um trabalhador assediado por tentativa de sindicalização e o National Labor Relations Board acusou a empresa de práticas anti-sindicais. É assim que se faz: a Tesla "interrogou trabalhadores sobre suspeitas de esforços de sindicalização, ameaçou trabalhadores com perda das suas acções [da empresa] caso se sindicalizassem e demitiu ilegalmente um trabalhador e disciplinou outro por actividade relacionada com o sindicato".
A ironia é que este texto será partilhado no Twitter. Isto se, entretanto, Elon Musk não arranjar um bot que bloqueie contas que o critiquem. Mas ao contrário dos amigos que não sabem bem para onde ir, a ideia é mesmo continuarmos aqui, a lutar no coração onde o capital se acumula nas mãos de uns poucos, entre os milhares de corpos empilhados que o consomem. Musk sabe bem o que isso é: afinal a sua fortuna começou com a herança dos minérios do paizinho, na África do Sul do apartheid.
(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)
Raquel Ribeiro, entre a América Latina e a Escócia
Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo.