Motim Literário: Zenith contra George
Afinal, "os ensaios luminosos" de Bréchon sempre serviram de inspiração a Zenith. Será isto um plágio? Segundo o método de Zenith, que atira pedras sem cuidar dos seus telhados de vidro, creio que sim.
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Em lugar de ir directo ao assunto, vou à volta. Por isso, peço ao leitor que não desanime. Não tarda nada e conseguirei apanhar a mosca – a chave do grande escândalo, em jeito de motim literário, que acabou de rebentar. José Agostinho de Macedo (1761-1831) foi um dos mais prolixos escritores da cultura portuguesa. Inimigos teve-os às dúzias, ainda mais do que as polémicas em que se viu envolvido em toda a sua vida. Postumamente, as suas obras foram lidas e editadas por muitos: de Camilo a Inocêncio e Teófilo Braga. Carlos Olavo escreveu dele uma biografia bem catita, bem melhor do que o pretensioso romance de Mega Ferreira. Mas foi só desde o trabalho académico de Maria Ivone Ornellas de Andrade, em dois volumes, que passámos a dispor de um guia seguro para nos orientar na interpretação da vida e obra do Padre Lagosta.
O seu Motim Literário em forma de solilóquios de 1811, continuado pelas Cartas Filosoficas a Attico (1815), conheceu várias edições e nem todas constam do catálogo da Biblioteca Nacional. Os quatro volumes em pequeno formato sempre me interessaram por conterem em si bicadas e controvérsias, daquele que começou por ser um “iluminista paradoxal” – nas palavras da sua maior estudiosa – por ser bem informado das novas correntes dos enciclopedistas e filósofos das Luzes, e se ter revelado um dos principais expoentes da contrarrevolução. Digno de ombrear, em termos de reaccionarismo, com o seu amigo alcobacense, Frei Fortunato de S. Boaventura.
Não reconstituo aqui, porque seria fastidioso, o sentido das suas polémicas. Mas não resisto à tentação de evocar a acrimónia com que tratou poetas tais como Bocage e Filinto Elísio. Acerca de Elmano, por exemplo, escreveu versos de grande dureza que começavam assim: “Tu és magro, és vadio, és pobre, és feio / E nada disto em ti reprovo ou noto”. Apenas me interessa lembrar, sempre graças a Ornellas de Andrade, o gozo que os seus inimigos sentiram quando encontraram no Motim um “roubozinho”. O Padre Lagosta pilhara umas poucas de páginas da Republica Literaria, obra seiscentista de Saavedra Fajardo. Mais: António Maria do Couto, seu inimigo figadal, explicou que Macedo não se ficara por aí e deu o nome abreviado de outros autores plagiados. O debate continuou com acusações dos dois lados (Ornellas de Andrade, José Agostinho de Macedo, vol. I Colibri, 2001, pp. 100-104).
Entro, pois, de mansinho na matéria do motim literário que, agora, estalou a respeito das duas biografias calhamaçais de Fernando Pessoa acabadas de sair, por me parecer que a luta veio para durar e que as posições se vão extremar. Longe de mim, erguer-me em árbitro seja do que for. Desde já assumo que a minha simpatia tende muito mais a estar do lado das interpretações de João Pedro George, do que das de Richard Zenith. Já tive a ocasião de o dizer nesta mesma coluna e vou continuar a explicar o meu ponto de vista.
Ainda hoje no semanário Expresso com direito a chamada de primeira página, Zenith fez ouvir a sua voz, com o único propósito de desacreditar a biografia de George. O rumor, em jeito de lamento, já constava no pequeno mundo português e lisboeta. Zenith estava furioso com o empecilho, falava aos quatro ventos lá junto ao Bugio de que tinha sido roubado e espoliado. Ele que já gramara, no que dizia respeito à edição de textos, com a eficácia de Jerónimo Pizarro e, em áreas mais específicas como a das ideias políticas de Pessoa, com as investigações inteligentes e seguras de José Barreto, tudo em bonitas edições da Tinta-da-China. Por que razão tinha, agora, de levar com a concorrência de outras mil páginas da autoria desse ignoto badameco do George? Às urtigas com o rapaz, pois nada lhe importava que este fosse autor de outras biografias e por acaso de uma obra bem consistente e criativa de sociologia da literatura. O descaramento do badameco de vir para cima do “seu” Pessoa só poderia resultar se terminasse numa denúncia e numa acusação de plágio. Custasse o que custasse, assim tinha de ser.
O método seguido por Zenith, no artigo subscrito por Luciana Leiderfarb, afigura-se mais do que evidente: vira-se a informação ou o reconhecimento de erros a emendar, pelo autor, contra o próprio; faz-se um inventário de umas tantas minudências de datas e nomes, que assumidamente terão de ser corrigidas em próxima edição, para se passar a insinuar que toda a obra está pejada de erros; aqui e acolá, Zenith acusa George de o copiar, para logo de seguida reconhecer que não foi fidedigno no copianço; procura-se desacreditar o trabalho do George – um escritor profissional, crítico duro e corajoso – como resultado de uma pressa, por oposição à autoridade de um Zenith que escreveu durante dez anos um livro sem mácula e totalmente objectivo; procura-se, ainda, centrar o debate numa espécie de oposição entre o bom e o mau, representados, respectivamente, pela autoridade do especialista premiado, ou seja, de Zenith, frente ao que vem de fora e é mais novo, não tem títulos e incorre em sucessivos erros, estando conspurcado pelo plágio que a toda a força se procura insinuar; e, por último, chama-se à colação um amigo e colaborador de Zenith, na edição da prosa de Álvaro de Campos, tido como autoridade também na matéria, para dar mais uma traulitada no rapaz que não era conhecido deles, ou seja, dos amigos que odeiam o fedelho pelo simples facto de ter vindo ao mundo...
Escusado ir mais longe na descrição de um método tão patético. O Motim Literário pequenino e mesquinho foi aberto. Ele está aí. E a questão que se coloca é como podemos tirar partido dele e – em lugar de andarmos às pedradas, como dantes faziam os rapazes de Lisboa lá para as bandas da Cotovia – não perder o discernimento da análise e da leitura. Assim, o melhor será reforçar a comparação entre as duas biografias, enquanto trabalhos de síntese acerca da vida de um escritor com o estatuto de génio, cuja obra se afigura colossal. Em duas áreas que pude analisar de perto, a infância e as ideias coloniais, a comparação entre as duas biografias levou-me a concordar mais com o George do que com Zenith (mas o inquérito deverá ser extensivo a outros domínios, como por exemplo o do judaísmo e anti-semitismo). Tais exercícios de leitura dupla ou conjunta inspiram-se, aliás, num artigo de Nick Burns, onde este comparou as ideias e tomadas de posição políticas de Fernando Pessoa, tal como surgem na biografia de Zenith, com as interpretações – bem mais sagazes, diga-se de passagem, mas com assertividade – de José Barreto (“The Politics of Fernando Pessoa”, New Left Review, 129, Maio-Junho 2021).
Claro que ainda mais interessante é cotejar os conflitos de interpretação e as filiações que se registam quando comparamos entre si todas as biografias de Fernando Pessoa, cujo elenco principal já apresentei no citado artigo publicado neste jornal. O modo de interpretar a infância, a sexualidade e o freudismo em Fernando Pessoa, por parte de João Gaspar Simões, seu primeiro biógrafo, claramente inspiraram Zenith que segue nos seus calcanhares sem apresentar grande novidade; enquanto George, sem ter sido necessariamente o primeiro a fazê-lo, afasta-se da interpretação de Gaspar Simões em relação à infância marcada por um padrasto que foi um intruso, da qual resultaram o que Zenith denomina, de forma muito discutível, como “problemas sexuais”...
Um outro exemplo de comparação pode partir de Fernando Pessoa: uma quase-autobiografia (Porto Editora, 2012), de José Paulo Calvalcanti Filho, que escreveu, a respeito das leituras de Pessoa: “As irmãs Brontë criaram seres imaginários que se correspondiam entre si” (op. cit, p. 219). Se fosse aqui seguido o método de Zenith, mas virando-o contra si próprio, dir-se-ia que também ele plagiou Cavalcanti quando, na abertura do capítulo 11, desenvolveu a mesma ideia, a propósito das mesmas escritoras e do seu irmão Branwell, que se divertiam “a inventar países habitados por personagens imaginadas e históricas através de cujas vozes escreviam histórias e poemas” (Pessoa: uma biografia, Quetzal, 2022, p. 181).
Uma comparação com alguns dos principais especialistas franceses de Pessoa, na biografia de Zenith afigura-se como um outro exercício possível, mas os resultados não se afiguram lá muito abonatórios para o mesmo biógrafo. Pierre Hourcade que conheceu Pessoa é citado pelos encontros que teve com o poeta e da bibliografia consta uma colectânea dos seus ensaios. A obra monumental que escreveu e que só foi publicada postumamente nem sequer mereceu a atenção de Zenith: A mais incerta das certezas: itinerário poético de Fernando Pessoa, edição e tradução de Fernando Carmino Marques (Tinta-da-china, 2016). Igualmente ignorado é Armand Guibert que, provavelmente influenciado por Hourcade, foi também tradutor e estudioso de Pessoa, incluindo na Gallimard. Repare-se que o trabalho de tais autores foi importante porque conferiu brilho e inteligência à cultura portuguesa em França, a qual era na época identificada e reduzida às figuras dos emigrantes pobres, pedreiros, porteiras, etc.
No entanto, é importante destacar que Zenith se mostra reconhecido, pelo menos uma vez, em relação a um outro francês estudioso de Pessoa – Robert Bréchon. Concretamente, reconhece a importância que tiveram, para ele, “as conversas, bem como os ensaios luminosos” de Bréchon (tão luminosos devem ter sido que Zenith nunca os cita). Postos a par dos de Antonio Tabucchi, continua, esses ensaios “ajudaram a refinar e tornar mais viva a minha ideia de Pessoa”.
Contudo, tais palavras mais parecem resultar de um qualquer formalismo e soam a lágrimas de crocodilo, pois ao longo de quase 1200 páginas, Zenith não faz nem uma citação de Bréchon. E o pior é que quando cita a biografia de Bréchon, na bibliografia, Zenith limita-se a denunciar o que considera ser um traço negativo: “Étrange étranger: une biographie de Fernando Pessoa (Paris: Christian Bourgois, 1996). Simultaneamente temática e cronológica, a biografia de Bréchon não se preocupou em descobrir informações sobre Pessoa, mas sim em mapear a sua vasta obra literária”. Acrescento, apenas: grande amigo terá sido este Zenith do falecido Bréchon, para lhe vir agora ferrar uma farpa no caixão!
Chegado a este ponto, não posso deixar de assumir uma postura mais de Padre Lagosta que um dia descreveu a estalada que deu no seu próprio cachaço para apanhar uma mosca. Vivia, então, a expensas do Duque de Cadaval, lá para Pedrouços. É que foi com ele que aprendi a desconfiar dessa ambígua mistura entre o formalismo do salamaleque e a farpa no morto. Que ali há gato escondido com o rabo de fora não se duvide. Mas não se ponha também em causa que é sempre difícil descobrir o “roubozinho”. Cito a expressão que retiro do estudo de Ornellas de Andrade: “o roubozinho deve ter feito as delícias do detective” (op. cit., vol. I, p. 100). Foi o que me sucedeu e fez as minhas delícias, como quando se bate e se consegue mesmo apanhar a mosca a morder no cachaço.
No prólogo, precisamente na página 27 da tradução portuguesa, da sua biografia de Pessoa, lá vem o Zenith com uma série de considerações sobre o Livro do Desassossego. À cabeça dessas comparações figura o homem sem qualidades chamado Ulrich, uma criação de Robert Musil na sua famosa saga, o qual é posto em paralelo com Bernardo Soares, criação e heterónimo de Pessoa. Claro que uma comparação deste tipo tem os seus matizes e especificidades, que Zenith se apressa a desenvolver para mostrar ao seu público internacional o gabarito não tanto de Pessoa, como dele próprio capaz de fazer comparações que envolvessem grandes personagens da literatura. O problema é que a comparação tem dono e Zenith não cita a fonte que o inspirou. O primeiro a fazer tal comparação foi o referido Bréchon, a que se seguiu Ernesto de Melo e Castro, em O Fim Visual do Século XX e outros textos críticos, de 1993.
O mesmo Robert Bréchon que, segundo Zenith, apenas mapeou a vida intelectual de Pessoa..., fez essa comparação, alargando-a a um conjunto de outras obras, de Huysmans a Kafka, numa recensão à primeira edição do Livro do desassossego, na Colóquio-Letras, n.º 82 (1973) e, depois, nas Actas do II Congresso Internacional de Estudos Pessoanos (1985). Mais recentemente, Joana Matos Frias reconstituiu, com rigor, a mesma aproximação entre Soares e Ulrich (Revista Estranhar Pessoa, n.º 5, Out. 2018). Pouco importa que essa aproximação se afigure discutível, se tomarmos em linha de conta o que Musil deixou escrito sobre Ulrich e a sua relação incestuosa com a irmã. De momento, o que se afigura mais importante é perceber que, afinal, “os ensaios luminosos” de Bréchon sempre serviram de inspiração a Zenith. Será isto um plágio? Segundo o método de Zenith, que atira pedras sem cuidar dos seus telhados de vidro, creio que sim.