Florinhas de Rua e a assistência psiquiátrica às "crianças anormais"
Como se articulou a assistência às crianças anormais ou necessitadas com a reorganização dos serviços psiquiátricos?
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Em 6 de Julho de 1935, a condessa de Rilvas escreveu directamente a Salazar para chamar a atenção do presidente do Conselho para a Associação Protectora das Florinhas de Rua e Instituto Médico-Pedagógico que lhe estaria anexo. Fê-lo em conjunto com Vítor Fontes, o médico pediatra que contava já com uma larga experiência nos modos de apoiar as crianças, muito em particular as que eram consideradas como anormais e sobre as quais tinha já escrito extensamente, como sucedera no livro intitulado Crianças anormais (Lisboa: Ferin, 1933). No dossier organizado pela condessa, há duas peças distintas. Na primeira, traça-se a história da Associação e apresenta-se um projecto de reorganização do Instituto. Fundada em 1917, por D. João Evangelista de Lima Vidal, arcebispo de Mitilene, no Campo dos Mártires da Pátria, a Associação destinava-se a proteger as crianças contra o abandono paternal, a miséria, o tráfico das menores, os maus-tratos e os exemplos morais. Em 1925, por acordo com a Sociedade Protectora do Hospital de Nossa Senhora da Saúde, as crianças anormais foram instaladas no Rego. Iniciativas isoladas passaram a interessar mais os poderes públicos quando o Ministério da Justiça cedeu à Associação verba e instalações para instalar um Instituto Médico-Pedagógico, em troca de lá poder colocar “algumas anormais das tutorias” ( ANTT, Arquivo Salazar, IN-9A, cx. 305).
"Três anormais" © Créditos: Direção Geral dos Arquivos
Entregue às Franciscanas Missionárias de Maria em 1927, a Associação das Florinhas de Rua sentiu, com o andar dos anos, a necessidade de proceder à sua substituição. Foram várias as razões que pesaram nesse processo: as decisões a tomar pelas religiosas dependiam de uma complicada hierarquia, dispersa internacionalmente; o pessoal era todo estrangeiro, ignorando a língua portuguesa; constantes mudanças de pessoal, sem que este pudesse ser devidamente selecionado. Para além desses aspectos, havia razões de sobra para se proceder a uma reforma, que deveria começar pela construção de pavilhões no terreno que pertencia ao Ministério da Justiça, transformando o Instituto num verdadeiro centro de estudos. Neste, seria formado o pessoal destinado às casas do Estado, podendo também servir as alunas do Instituto de Serviço Social. Um dos pavilhões destinar-se-ia a albergar as crianças anormais das classes pobres que não dispusessem de recursos para educar os seus filhos.
Retrato de grupo de crianças e adolescentes no pátio da Assistência a Crianças Fracas, no Lactário, rua das Mercês, Freguesia de São Pedro, Concelho do Funchal. © Créditos: Direção Regional do Arquivo e Bibliteca da Madeira
O formato que se visava era o de uma casa semi-oficial, subsidiada pelo Estado, mas que continuava a pertencer à Associação das Florinhas de Rua. Também se considerava que não deveria depender de um único ministério, mas de vários: Interior, Instrução e Justiça. Este último já ali dispunha de internamento para algumas internadas das tutorias. Contudo, deveriam ser construídos pavilhões para epilépticos, outro para a recuperação de “incuráveis aleijados” ou que representassem “valores sociais nulos”, mas que mesmo assim deveriam ser aproveitados. Acima de tudo, pretendia-se fazer do Instituto, a breve trecho, um grande centro escolar de psiquiatria infantil. O médico Vítor Fontes era quem devia ficar à frente do Instituto, tendo como sua directora médica uma sua colaboradora, Custódia Alves.
Com a reorganização pretendida não se pretendia melindrar as antigas freiras. Apenas se procurava profissionalizar a assistência, assumindo-se a existência de uma relação estreita entre a defesa da moral cristã e a psiquiatria: “no ponto de vista moral é necessária a formação dum pessoal educado em bases de sólida e sã moral. As questões da Psiquiatria estão tantas vezes ligadas à questão de moral que é necessária uma casa de toda a confiança que possa dar o ensino como ele é exigido, nos sãos preceitos da moral cristã”.
No dossier organizado pela condessa de Rilvas, a última peça, datada de Julho de 1935, era subscrita por Vítor Fontes. Percebendo-se ser ele o mentor da ideia de que competiria a três ministérios ocupar-se das crianças anormais. A Justiça necessitava de estabelecimentos para recolher as “crianças delinquentes”. À Instrução Pública caberiam os “anormais educáveis ou atardados mentais”, competindo ao Instituto habilitar pessoal docente especializado. E ao Ministério do Interior interessava colocar “certos anormais físicos (cegos, surdos, estropiados) e os chamados grandes anormais (idiotas, imbecis, loucos, e epilépticos)”, respectivamente, em estabelecimentos de tipo hospitalar (centros de psiquiatria infantil) e colónias-asilos. Por detrás destas declarações, sente-se a importância dos saberes médico-legais e, entre eles, as vinculações à psiquiatria. Como já argumentou o investigador Tiago Pires Marques, é por esta altura que a figura do psiquiatra deixa de assumir contornos laicos e republicanos – bem presentes na figura de um Miguel Bombarda – para se submeter aos princípios da moral católica e do Estado Novo. O psiquiatra Luís Cebola lutou, em vão, contra tal submissão.
Vítor Fontes também se revelou, no mesmo relatório, como o mentor de toda a organização dos serviços de assistência às crianças anormais ou necessitadas, transcendendo, em muito, a simples Associação de Protecção das Florinhas de Rua. Isto porque, na sequência do decreto n.º 22369 de 30 de Março de 1933, Fontes concebeu a chamada Inspectoria destinada a coordenar, do ponto de vista das crianças necessitadas, as escolas primárias oficiais, asilos e tutorias. Eram cinco as secções desse organismo de controlo: a inspecção escolar de anormais em escolas oficiais e privadas; a clínica médico-psicológica, à qual competia classificar e decidir sobre a anormalidade das crianças observadas, dispondo de um laboratório de psicologia experimental; a formação de professores especializados; uma secção pedagógica, dividida por dois institutos para os rapazes (Instituto Aurélio da Costa Ferreira) e para as raparigas (Instituto das Florinhas da Rua, a funcionar como instituição particular), deveria ainda dispor de um Museu Escolar e Biblioteca da especialidade; patronato extra-escolar, a que competiria vigiar e proteger, através de visitadores, os indivíduos na sua vida profissional.
Alguns meses decorreram até que, em Novembro de 1935, foi elaborado o projecto de um decreto-lei para criar, junto do Ministério do Interior, uma Junta de Assistência Psiquiátrica e Higiene Mental, que reforçava uma perpectiva higienista. Nela participaram várias entidades: Governador Civil de Lisboa, director da Assistência Pública, director da Saúde Pública, delegado do Ministério da Justiça, um professor de Psiquiatria, um médico alienista nomeado pelo Governo. A Junta ficaria a funcionar no Governo Civil, podendo agregar outros vogais e funcionários a requisitar com habilitações na estatística e na arquivística. Os seus principais objectivos eram: estudar e propor as medidas necessárias ao desenvolvimento da assistência psiquiátrica, nas modalidades hospitalar, asilar, familiar e deambulatória; organizar a profilaxia das doenças mentais e promover a educação da população nos princípios da higiene mental; e, por último, animar as instituições criadas pela iniciativa privada com os mesmos objectivos.
O principal objectivo a alcançar era o de lançar um inquérito nacional para traçar o mapa das frequências, distribuição e causas das doenças mentais. Só com esta base seria possível elaborar um plano de assistência psiquiátrica, que deveria revestir uma dimensão profilática, para melhorar a saúde mental. Entre as suas outras funções, estaria também a instalação de dois núcleos destinados a doentes crónicos, em propriedades do Estado, a sul e a norte do país, que funcionariam como anexos agrícolas dos manicómios Miguel Bombarda e Conde de Ferreira, até serem convertidos em asilos-colónias autónomos. Outra das competências da mesma Junta estaria em colocar, em asilos gerais de velhos e inválidos, os alienados crónicos que não pudessem ir para os anexos agrícolas, nem tivessem família para os receber. À Junta caberia, ainda, criar um serviço de hospitalização psiquiátrica, até ser possível dispor de uma clínica psiquiátrica universitária (seguindo o parecer, para Coimbra e a região centro do país, de Elísio de Moura, contra o de Bissaya Barreto).
(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)
Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto
Colabora com o Contacto e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou "O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino" (Edições 70).