Eles querem que o bacalhau seja rei no Luxemburgo
Na semana passada, a Confraria Gastronómica de Sabores Portugueses declarou 2023 o ano luxemburguês do bacalhau. E, numa noite no Mullerthal, tentaram renovar uma tradição culinária – e a forma como o resto do mundo olha para um peixe. "Isto é só o começo", prometem.
Os membros da Confraria Gastronómica dos Sabores Portugueses declaram 2023 o ano do bacalhau. À frente, Jorge Rodrigues, o confrade-mor. © Créditos: Anouk Antony
Isabel Ferreira parecia um furacão. Faltavam três horas para o início da cerimónia e agora é que era, nada podia falhar. O evento era o terceiro capítulo da Confraria Gastronómica de Sabores Portugueses, um grupo fundado há 10 anos para promover a lusa culinária em terras do Grão-Ducado. Aconteceu na passada sexta feira, num antigo moinho de água tornado restaurante, no Mullerthal.
Nunca os confrades se tinham apresentado ao resto do mundo com tamanha visibilidade. Desta vez, não iam apenas entronizar os novos membros. Nem iam deixar a cerimónia e a degustação em portas fechadas. Desta vez, o objetivo era mostrar ao resto do mundo a versatilidade de uma tradição portuguesa. E declarar, no Luxemburgo, 2023 como o ano do bacalhau.
Então Isabel ia recebendo telefonemas daqui e emails dali, metade da atenção posta na sala à sua volta, a outra no mundo que estava para chegar. "Oh Jorge, preciso que leves os músicos", pedia ao telefone ao confrade-mor da associação, Jorge Rodrigues. "Oh Jorge, vai-me buscar os convidados." "Oh, Jorge" – e ele a desdobrar-se em boleias e recolhas no aeroporto. De Coimbra viria um grupo de fado da cidade, os Encantos do Mondego.
De Ílhavo, nove membros da Confraria do Bacalhau, para apadrinhar a cerimónia. De Mortágua, uma cozinheira e consultora gastronómica, que se juntaria a um chef luso-luxemburguês na reinvenção do petisco. Era um jantar, sim, para 120 pessoas. Mas, visto de fora, um outro fenómeno parecia passar-se. No Op der Millen, em Medernach, estava em marcha uma pequena revolução.
Joana Martins e Kevin Oliveira ocuparam-se com a invenção de receitas que pudessem atualizar uma história muito antiga. O bacalhau é uma tradição ancestral portuguesa. © Créditos: Anouk Antony
Minutos antes de tudo começar, adensava-se o caos. Desistências de última hora, marcações com o mesmo imprevisto. Isabel Wiseler, eurodeputada luxemburguesa de origem portuguesa, afinal não vinha – o trabalho na Comissão de Direitos Humanos do Parlamento dava-lhe pano para mangas. Mas, por telefone, ia desfiando memórias dos pratos que comia desde infância. A ideia de trazer o gosto do bacalhau para os pratos luxemburgueses surpreendia-a.
"É como se, do lado oposto, tentássemos exportar o kachkéis para o mundo", dizia. O queijo fundido que se produz no Grão-Ducado, defendia, é o equivalente ao peixe salgado e seco dos mares do Norte. A referência havia de arrancar um par de gargalhadas.
A entrada que marcou o tom do jantar: tártaro de bacalhau com tapenade de tomate cereja confitado, alioli de açafrão, tinta de choco, redução de salsa e croutons de broa de milho. © Créditos: Anouk Antony
O jantar acabaria por se revelar um sucesso. Figuras da comunidade portuguesa juntar-se-iam aos convidados luxemburgueses e todos eles haveriam de elogiar o repasto. Tomás Azevedo, primeiro-secretário da Embaixada Portuguesa no Luxemburgo, representava o corpo diplomático nacional e elogiou a ideia que se propunha à mesa.
"Se formos ver bem as coisas, o bacalhau representa bem a vocação internacional do povo português, porque é um peixe que vamos buscar a águas distantes e nem sequer existe nas nossas. E depois assenta-lhe como uma luva a alcunha de Fiel Amigo. Gera oportunidades de fazer amizades à volta da mesa, sem dúvida."
O jantar começaria com um brinde de vinho do porto e a entronização de novos confrades – entre eles, José Campinho, diretor do pólo lusófono do grupo Mediahuis, ao qual pertence o Contacto. Vinham os pratos e vinha música, cantada pelos fadistas de Coimbra. A noite tornar-se-ia intimista, com os silêncios a deixarem ecoar os tons do centro de Portugal. Antes de todas as outras canções, ouviu-se Zeca Afonso dar o mote à festa – e fez todo o sentido. Cantava o poeta: "Traz outro amigo também."
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As voltas da versatilidade
Na cozinha do Op der Millen o ambiente era metade de nervosismo e outro tanto de festa. Os chefs convidados para trabalharem no evento representavam bem a mensagem que a Confraria queria passar. De Portugal tinha chegado Joana Martins, formadora e consultora gastronómica.
Do Luxemburgo vinha Kevin Oliveira, com raízes lusas e a experiência das cozinhas do Grão-Ducado. Os dois uniram forças para dar conta dos 60 quilos de bacalhau que se gastaram no evento. Nessa sexta-feira, houve cozinha a quatro mãos no Mullerthal.
Ambos cresceram com o gosto da tradição, mas agora sabem que é preciso dar-lhe a volta, modernizar os conceitos. Deixaram para a receção aos convidados as apresentações típicas – havia pataniscas, bolinhos e croquetes de bacalhau na mesa. Quando os comensais se sentaram, aí sim, deram a volta ao jogo. E o primeiro prato que apresentaram não foi nada menos que uma surpresa.
Empratado com uma apresentação espetacular, chegou um tártaro de bacalhau. Vinha cru mas marinado no ponto, e era acompanhado por uma tapenade de tomate cereja confitado, um alioli de açafrão, uma redução de salsa, tinta de choco e croutons de broa de milho.
Horas antes, Hugo Coelho, grão-mestre da Confraria do Bacalhau, de Ílhavo, falava da necessidade de criar um novo design para os pratos portugueses – e nomeadamente para este. "Somos ricos em sabor, mas a nossa gastronomia precisa de se tornar mais visual. Há hoje uma série de chefs a trabalharem para valorizarem a imagem dos nossos pratos e isso é um sinal animador", dizia. A volta que Joana e Kevin tinham dado ao tártaro parecia assentar como uma luva na sua teoria.
Isabel Ferreira, da Confraria Gastronómica dos Sabores Portugueses, numa roda-viva para promover o bacalhau no Luxemburgo. © Créditos: Anouk Antony
Depois da entrada, vieram duas versões de bacalhau, servidas no mesmo prato. De um lado, um bacalhau com crosta de alheira e puré de feijão branco, invenção de Kevin Oliveira. "Foi um prato que apresentei na final do Concurso Nacional das Profissões em Portugal, no qual representei a Região Centro", contava. Apesar de ter nascido fora do país, haveria de regressar às origens para estudar gastronomia – e foi ali que se afirmou antes do regresso ao Grão-Ducado.
Na outra metade do prato era apresentada uma versão com assinatura de Joana Martins: o bacalhau à merceeiro.
Um lombo frito no ponto, com batatas finas às rodeladas, uma cebolada de pimentos e cebola e, no fim de tudo, uma colher de queijo da serra. "Criei este prato num restaurante que abri em Mortágua e tornou-se num sucesso imediato", contava ela. "Além disso, mostra a versatilidade do ingrediente. Podemos brincar com ele, ter uma abordagem tradicional ou moderna, e vai funcionar sempre." Se o objetivo da noite era prestar homenagem ao produto, a missão estava cumprida.
O produto do mar distante
Longe vão os tempos em que os bacalheiros se amontoavam no porto de Aveiro carregados de postas que haviam de ser simultaneamente secas e salgadas. "Hoje não há mais de dez embarcações na frota portuguesa em Ílhavo", confessava João Simões, antigo membro do conselho de administração do porto de Aveiro e membro da Confraria do Bacalhau. "Mas não deixa de ser verdade que somos fortes no consumo, na transformação e na exportação deste produto", continuaria.
Hugo Coelho, grão-mestre da mesma organização, meteu a colher no tacho: "É um símbolo de Portugal, das diásporas portuguesas e do mundo que fala português. É um produto da lusofonia."
À esquerda, o bacalhau com crosta de alheira e puré de feijão branco. À direita, o bacalhau à merceeiro. Inovações para um prato de tradição. © Créditos: Anouk Antony
A ironia de não existir este peixe em águas portuguesas não lhe retira, para os especialistas, portugalidade. Álvaro Garrido, professor de economia da universidade de Coimbra e especialista da história do bacalhau diz que o consumimos desde a Idade Média e que a aventura de ir pescá-lo à Terra Nova data pelo menos do século XVI. A cura de sal e sol é técnica bem lusitana, tal como o seu transporte nas epopeias que levaram o fiel amigo ao redor do globo.
Numa noite de março, o peso de toda essa história acabaria por desaguar num moinho luxemburguês, onde gente de muitas origens teve a oportunidade de perceber quão moderna pode ser a cozinha dos antigos. E, como dizia Jorge Rodrigues, confrade-mor da associação luxemburguesa, o objetivo é agora deixar o peixe escapar-se das redes portuguesas para que elas cheguem ao mundo e às diásporas. "Isto é só o início da conversa", prometeu ele.