Desamor e violência
São actos que estão muito para além da falta de generosidade e anulam a dignidade com que os desencontros e o fim das relações têm de ser vividos.
© Créditos: Quadro "Amor", da pintora Paula Rego
O desamor é horrível. Dói tanto que é difícil encontrar as palavras certas para o descrever. Mas há pior. Refiro-me aos actos de desamor que encontram na violência o seu principal modo de expressão. São actos que estão muito para além da falta de generosidade e anulam a dignidade com que os desencontros e o fim das relações têm de ser vividos. O mais preocupante é que as histórias dessa violência estão por todo o lado.
Uma amiga disse-me: – Cala-te. Não fales disso, para não banalizares essas situações de sofrimento. E acrescentou: – Se tens pudor em contar histórias de violações, lembra-te que a violência nas relações é, apenas, uma outra forma de violação. Concordo com a comparação, mas não consigo estar calado. Por isso, o meu testemunho, embora indirecto, só pretende fazer reconhecer a voz de quem não tem, tantas vezes, voz. E não me venham com os estribilhos da reserva da vida privada. Muito menos me lembrem de que, entre marido e mulher, não metas a colher.
Por exemplo, neste Verão, irromperam pelas redes sociais várias histórias. Numa delas, um canalha armado em vítima, capaz de se vingar da mulher que o deixou, veio falar explicitamente da extraordinária prestação sexual dela. Não, não se tratou de publicidade enganosa. Foi mesmo uma canalhice que aumentou, ainda mais, quando ele tornou público o nome da mulher que, pelos vistos, não tivera alternativa a não ser deixá-lo. Que ele estava louco foi o que disseram os que gostam de espreitar nas redes sociais só para devassar a vida privada. O certo é que foi a mulher quem acabou por ver a sua vida devassada por obra do canalha.
Outro caso é o da história de uma menina bem. Mãe de dois filhos de um primeiro casamento, nunca trabalhou. Apaixonou-se, depois, por um ricaço sedutor que lhe prometeu a lua. Este, ao longo de várias décadas, isolou-a do mundo. Não a deixava trabalhar, limitava-lhe as visitas aos filhos do primeiro casamento. Instalou-a numa quinta, que transformou numa gaiola dourada. Já casada pela segunda vez, teve mais três filhos. O domínio do macho sobre a mulher passou a ser total. A ponto de ela ter deixado de poder ver os seus dois primeiros filhos, porque não faziam parte da família dele. Uns dizem que ela teve o que mereceu, pois quis vida boa, sem nunca ter de lutar pela sua autonomia; quando, no fundo, ela só deixou que se formasse à sua volta uma teia, da qual se foi tornando uma presa.
Talvez tivesse, sobretudo, medo de perder os filhos, se se atravesse a deixá-lo. Outros limitam-se a constatar que ele era mesmo um tarado, por isso, inimputável. Pode, ainda, dizer-se que, mais do que de desamor, se tratou de um amor doentio. O certo é que ela sofreu até à morte. E, mesmo que seja difícil comparar níveis de sofrimento, talvez a sua dor tivesse sido igual ou maior do que a da anterior mulher quando viu o seu nome e a sua vida expostos nas redes sociais.
Nenhum dos dois homens anteriores – o canalha e o tarado – bateram nas mulheres, que consideravam suas, com um único dedo. No entanto, a violência por eles perpetrada causou um enorme sofrimento. O terceiro caso configura uma situação do homem violento que se convence a si próprio: – Se não és minha, não serás de mais ninguém. Primeiro, ela rompe com uma relação que durou alguns anos. Ele, de início, conformou- se. Mas, depois, cresceu nele o ressentimento e a ideia de posse. Começou por lhe rodear a casa.
Passou a vigiá-la, ao mesmo tempo que lhe mandava flores. Muitas flores. Diariamente. Sem resposta, passou a dormir à sua porta, dentro do carro, para lhe apertar o cerco e mostrar que era ele a vítima obsessiva. Um dia, interpelou-a e chorou. Tudo para mostrar o seu sincero desespero. Ela, por compaixão, ouviu-o. Até que, num outro dia, quando ela ia a entrar em casa, ele forçou a entrada da porta. O álcool ajudou- o a dar esse passo. Ela não teve forças suficientes para lhe travar a entrada. Por isso, passou a viver cheia de medo. Sem conseguir arranjar uma alternativa, desistiu de procurar outras relações. Submeteu-se e, ainda hoje, não deixa que ninguém se aproxime dela.
Claro que todas as relações conjugais ou de namoro são, pelo menos em parte, relações de poder. E longe se está de poder pensar que só os homens transformam o ciúme em sentimento de posse. Porém, não há comparação possível em relação ao recurso à acção violenta, pois esta surge quase sempre do lado dos homens e quase nunca do lado das mulheres. E, claro, são múltiplas as formas de violência contra as mulheres e nem todas assumem uma dimensão física. A violência que inferioriza a opinião das mulheres só porque são mulheres continua à solta. Tal como é uma forma de violência a quantidade de tarefas informais atribuídas às mulheres, as quais dificultam o seu desempenho, por exemplo, em profissões liberais ou académicas.
Menos se sabe e se fala do modo como vivem os casais homossexuais as relações de desamor e de violência (as mortes de Carlos Castro, a golpes de saca-rolhas, e de José Manuel Costa, com 17 facadas, constituir-se-ão num padrão?). Só sei que é preciso falar do que vai por aí e é transversal a grupos e níveis sociais. É que quem não fala consente. E eu não quero consentir ou deixar o assunto para uma imprensa sensacionalista, que se limita a encarar estes casos como uma questão de voyeurismo. Ou os reduz ao estilo do correio sentimental, onde se continua, ainda por cima, a recorrer à linguagem obsoleta dos crimes passionais.
(Autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.)
Diogo Ramada Curto, historiador. Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).