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Opinião

Dentro do elevador

Um professor ficou preso num elevador com os dois filhos. Mesmo nessas condições, não hesitou em dar uma aula virtual pelo telefone para mais de 300 alunos. Como é que chegámos aqui? Uma crónica de Raquel Ribeiro.

© Créditos: AFP

Em setembro, Jay Van Bavel, professor associado de psicologia e neurociências na Universidade de Nova Iorque (NYU), foi rapidamente buscar os filhos à escola. Tinha 10 minutos para os largar e sentar-se a dar uma aula virtual de Introdução à Psicologia para mais de 300 alunos. Deixara o computador com o link pronto.

Como muitas universidades, a NYU adoptou um “modelo híbrido” de ensino, com aulas síncronas e assíncronas, materiais pré-gravados, wikis, blogues e fóruns de discussão. Esta linguagem é novilíngua para docentes. Veio para ficar, até porque estas plataformas recolhem dados quantitativos sobre o que lecionamos. E os burocratas no topo das instituições neoliberais adoram “dados”: quantos alunos viram quantas aulas; quantos viram vídeos até ao fim; quantos abriram a plataforma; quanto tempo lá passaram; a que velocidade foram vistos os vídeos; em que parte do mundo foram visualizados (Japão, África do Sul, Roménia); de 0 a 10 quão satisfeito? Likes, polegares ou carinhas tristes: é a trip-advisorização da universidade. Diz que temos de nos adaptar: às vezes, o filho de 10 anos interrompe as aulas de Van Bavel, “e partilha as suas ideias sobre o cérebro e ilusões percetuais”. Ele diz que os alunos não parecem importar-se. Já se adaptaram.

Mas o elevador caiu três pisos, pai e miúdos presos lá dentro. Primeiro pânico: todos bem? Sim. Segundo pânico: há 300 alunos à espera de uma aula (síncrona). O professor não sabe quando vai sair do elevador: liga à segurança, já aí vem. Envia, por precaução, email à turma: “Como se 2020 não pudesse ficar pior, estou preso no elevador do meu prédio. A ajuda vem a caminho mas não posso começar a aula até ser salvo. Ligo-me via zoom quando estiver em segurança e fora daqui.” Parece que vai chegar um “bocadinho” atrasado. A filha de 8 anos tem medo. O miúdo de 10 goza com ela. Ela chora. O pai desespera.

O que teriam pensado os alunos que receberam aquele email? O prof fechado num elevador (emoji surpreso). Estará bem? Parece que sim, senão não enviava mensagem (talvez emoji gargalhando com lágrimas). Mas vai ser coisa rápida? (emoji preocupado) Se calhar a aula não vai acontecer: posso ir lanchar e ver Netflix (emoji pisca-olho). Ele diz que dará a aula, anyway, mesmo atrasado. Temos de aguardar. Temos mesmo? (emoji eyeroll)

Quando assinámos este contrato, em que o limbo em que 2020 se transformou normativizou situações insólitas e as nossas singulares reacções a elas? Num ano que não 2020, o professor só poderia dizer: estou preso no elevador, a aula vai ser adiada. Mas o professor e os alunos aguardaram pela resolução da situação para que tudo voltasse ao “normal”. Poderia durar tanto como 2020. Ou tanto como uma pandemia. Irresolúvel. Estaremos todos presos dentro do elevador?

Os filhos ficaram ansiosos, o professor preocupado pelos alunos. Sem wifi, dados fraquíssimos, recepção péssima, resolveu mesmo assim dar a aula ali mesmo. “Desesperadamente tentei obter acesso ao login da NYU para poder chegar ao link do zoom. Mas o Zoom tornou isto impossível no telefone. Pediam-me para fazer o download da app, e depois login. (...) Eventualmente, entrei na aula. Mas a internet era tão fraca que não conseguia falar com os alunos. Fiz logout e login outra vez usando o link no telefone. Teria de dar as aulas pelo telefone, sem vídeo e sem os meus slides.”

Tudo isto foi contado pelo próprio no twitter, num thread narrativo, misto de modelo híbrido de ensino e aprendizagem, hyperlink, neuro-científico, psicologizante, de ilusão perceptual. Os filhos calaram-se, talvez exaustos, a ouvir a aula, enquanto o pai explicava à turma “como temos muitos processos mentais que operam fora da nossa consciência”. Mais tarde, já refletindo sobre se dar aulas de um elevador é o futuro do teletrabalho, explicou: “Porque não cancelei a aula? Tudo me pareceu estranhamente normal naquele momento. Cada passo parecia seguir logicamente o passo anterior. Enquanto escrevo dou-me profundamente conta de quão absurdo isto foi.”

Uma coda: ainda em 2020 ou “dentro do elevador”? Van Bavel assinou um artigo em agosto intitulado “A academia precisa de um choque de realidade: a vida não voltou ao normal”. Nele discutia implicações da pandemia para a saúde mental e a “aparente normalidade” com que a Universidade neoliberal estava a tratar alunos e corpo docente. Um “business as usual” em que a fasquia das performances de alto nível em universidades topo de ranking (no ensino, investigação, publicação, apoio a alunos, pessoal administrativo) estava tão ou mais alta do que na era pré-covid. Pedia empatia, direitos laborais, apoio a pais com crianças, desaceleração das expetativas, instituições mais humanas.

Raquel Ribeiro, entre a América Latina e a Escócia

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo. Escreve às quartas-feiras.