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Opinião

Clusterf**k, ou o estado a que isto chegou

Clusterf**k é aquela palavra que em inglês resume um grande caos, uma encrenca da grossa, mas com a verve britânica impossível de traduzir. A situação das universidades no Reino Unido é o exemplo de uma trapalhada atolada na lama, sem aparente solução. Uma crónica de Raquel Ribeiro.

Fonte: Redação

No início de setembro, milhares de alunos atravessaram o país, alguns pela primeira vez, para começarem a sua vida universitária. Assinaram contratos de arrendamento em residências. Alguns mobilaram casas e reconstruíram as suas vidas em plena pandemia, porque todos acreditaram que as universidades estavam preparadas para lhes proporcionar um modelo de ensino híbrido, fusão de aulas online e presenciais, com a mesma qualidade a que estavam habituados – e a que estavam habituados a pagar (9 mil libras/ano, cerca de 9.800 euros). "Esta crença deveu-se, em parte, à falta de transparência da Universidade sobre o que poderia realisticamente oferecer aos alunos", dizia uma associação de estudantes na semana passada. Depararam-se com pouquíssimas aulas presenciais e demasiadas gravadas, assíncronas, em fóruns online monitorizados por "exércitos" de tutores exaustos, agarrados a pequenos laptops em tele-trabalho, pouco preparados ou inexperientes neste tipo de aulas, que passaram todo o verão a tentar inventar a roda do ensino moderno.

Em simultâneo, o maior sindicato dos professores universitários, UCU, pedia aos reitores que assumissem a incapacidade de proporcionar aulas presenciais precisamente porque iriam expor alunos e professores ao covid-19. Que as universidades leccionassem apenas conteúdo online, insistindo na formação do staff para este modelo.

Virar professores contra alunos é algo a que reitores das mais prestigiadas universidades estão acostumados: não é por acaso que as mensagens vindas do senior management falam sempre de "resiliência", "adaptabilidade", de enfrentar os atuais desafios com "esforço" mas "coragem", e, pelo meio, enquanto nos pedem para sermos os "adultos na sala" diante de alunos atomizados e abandonados pela universidade que os devia proteger, também nos facilitam um curso de mindfulness para mantermos a sanidade à tona.

Mas os alunos, apesar da política do utilizador-pagador que contaminou o ensino, sabem-no: reconhecem o esforço dos docentes em preparar o mais difícil ano letivo das nossas vidas. E admitem que estes é que estão na linha da frente das suas queixas e frustrações, ao contrário dos reitores e vices, distantes da docência, gestores de topo como se as universidades se tivessem tornado em empresas cotadas em bolsa, com os seus salários milionários negociados ao cêntimo de cada vez que saltam de uma reitoria dos EUA ou da Ásia para "gerir" instituições britânicas, como jogadores de futebol no mercado das transferências, mas agora mais frustrados sem poder viajar e desfrutar dos pornstar martini em rooftops nova-iorquinos, para angariar financiamentos de origens duvidosas para as suas universidades.

O clusterf**k (ou o estado a que isto chegou) só pode tem um responsável: as universidades que entraram no jogo da sobrevivência estratégica do setor do ensino. “Setor” tem carga neoliberal e não de serviço público: diz que se paga a si próprio e que não precisa do estado, mas como todas as parcerias público-privadas depende mais do estado do que das festas de angariações de fundos sauditas. Isto porque as universidades britânicas compraram o sonho americano dos rankings, das propinas exorbitantes, dos campus milionários, do investimento em estates como se fossem imobiliárias para vistos gold, dos pacotes de dormitórios all-inclusive, como resorts turísticos na Costa del Sol. E com estes investimentos em colapso, a última bóia de salvação são as propinas que sacam aos alunos para manter o status quo. Sem elas é o colapso total do sector e algumas das mais importantes universidades do mundo estão nessa lista. Os alunos foram enganados e já avisaram reitores que muitos vão desistir ou interromper os estudos. Estamos todos à espera de saber se o estado vai finalmente intervir.

Houve reitores a pedir a alunos para se isolarem; alunos multados por exibir cartazes a dizer "F**k Boris" nas janelas dos dormitórios; alunos muçulmanos receberam sandes de fiambre no catering improvisado, pago ao preço da ubereats; alunos isolados sem acesso a testes de covid; alunos multados por quebrarem regras de distanciamento; chamadas de apoio SOS à saúde mental e suicídio; alunos a clamarem por aulas presenciais porque pagaram para isso, outros por aulas online porque têm covid-19; festas covid só para covid-positivos; alunos a regressar a casa em massa porque o ministro da Educação disse que talvez pudessem não voltar pelo Natal.

Ontem, três universidades anunciaram que vão reverter esforços e transferir todo o conteúdo online – depois de prometerem mundos e fundos a alunos que continuam a pagar 9 mil libras. O Guardian confirmava que 5 mil alunos e docentes têm covid-19. Muitos sentem que o Governo os usou como cobaias na imunização em massa porque são jovens e saudáveis. Já as universidades adotaram a política da sua própria sobrevivência à custa de uma geração endividada e agora traída por este sistema de ensino neoliberal. Eu já só espero que eles saiam dos quartos, venham para a rua, contra todas as regras. Se rebelem e não paguem.

Raquel Ribeiro, entre a América Latina e a Escócia

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo. Escreve às quartas-feiras.

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