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Opinião

Cinco minutos é curto

Diz-se à pessoa que se está com saudades e depois, sem um verdadeiro adeus, cortam o telefonema. E aí fica-se com uma sensação avassaladora de impotência.

© Créditos: Gerry Huberty

Jessica Lopes

Cinco minutos é o tempo que uma chamada telefónica de uma prisão de Lisboa pode durar. Deixem-me dizer-vos que cinco minutos não é nada. Mal dá tempo para algumas palavras de encorajamento, para tentar recompor-se e dizer frases coerentes. Não se fala de nada, não é uma conversa real. Diz-se à pessoa que se está com saudades e depois, sem um verdadeiro adeus, cortam o telefonema. E aí fica-se com uma sensação avassaladora de impotência com a voz chorosa da pessoa na cabeça.

A chamada telefónica chega inesperadamente. Nunca se sabe quando. Não se pode tomar a iniciativa de contactar, é preciso esperar pela chamada. Isto também significa que em cada chamada que recebemos, o coração para. Não se pode silenciar o telefone. Não se pode correr o risco de perder uma chamada. Mas também temos de regressar de alguma forma à vida, com o pensamento constante de que, enquanto seguimos em frente, um amigo está encarcerado.

Alguém de quem eu gosto foi preso no fim do ano passado. Prisão preventiva. Sob o peso desse luto, quando o choque inicial começa a assentar é que se percebe o que está a acontecer, começam as preocupações com as implicações mais amplas da situação. Dado o excesso de prisão preventiva em Portugal, é pouco provável que seja a primeira ou última pessoa a passar por esta angústia. Inicialmente não se sabe por onde começar com tantas perguntas e com toda a complexidade do sistema judicial para perceber. Quais são os direitos e deveres do recluso e dos seus amigos e familiares? Quanto tempo duram as investigações e quanto tempo se pode ficar preso sem julgamento? Tenho um diploma universitário e no entanto encontro-me perdida num sistema pouco transparente e cheio de jargão. Sinto-me como uma criança a tentar decifrar burocracias complexas e absurdas.

Depois há a família. Neste caso uma família migrante, não lusófona, para quem isto é ainda muito mais difícil de perceber. Aqueles que cumprem aquilo que os cientistas sociais chamam de "pena secundária" - pois são afetados financeiramente, socialmente e emocionalmente pelo encarceramento de alguém que lhes é próximo.

Depois da negação e da confusão vem a raiva. O que sabe realmente sobre as prisões em Portugal? O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos denunciou o mau estado das prisões no final de 2019, quando as prisões portuguesas contavam 12.867 detidos, apelando a Lisboa que tome medidas urgentes para que os detidos possam usufruir de condições de detenção em conformidade com as normas europeias em matéria de direitos humanos. Não só as prisões estão superlotadas, mas o uso excessivo de prisão preventiva contraria a ideia de um sistema de justiça democratrico e fundado na dignidade humana.

Nesse contexto já difícil, juntou-se a pandemia da covid. Pois os muros da prisão não impediram a entrada do vírus nos estabelecimentos, o que apenas tornou a situação ainda menos digna. Em novembro de 2020, 81 funcionários, 297 reclusos e duas crianças filhas de reclusas estavam infectados. Os estabelecimentos tornam o isolamento e distanciamento difícil e põe a saúde dos reclusos em risco. O vírus também dificulta as visitas. "Estou numa selva. Venham-me visitar se conseguirem. Tenho tantas saudade.", chega-nos através de uma carta enviada desde o Estabelecimento Prisional de Lisboa.

Que sabemos nós realmente sobre as prisões? A Angela Davis afirma no seu livro "Estarão as prisões obsoletas? "(2003) que "as prisões libertam-nos da responsabilidade de nos envolvermos seriamente com os problemas da nossa sociedade, especialmente aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global". No Luxemburgo também, ainda ha poucos meses, o portugues David Andrade de Oliveira fez uma greve de fome para chamar a atenção para as más condições dos reclusos neste período de pandemia na prisão de Schrassig. O Grão-ducado também tem a maior percentagem de estrangeiros presos com cerca de 74,4% de reclusos que não têm nacionalidade luxemburguesa.

O tema central dos nossos "sistemas de justiça" são a punição e cuja estrutura monolítica é a prisão. Há provas abundantes de que o atual sistema de punição e prisão é ineficaz. No entanto, o Luxemburgo está em vias de construir um novo estabelecimento em Sanem que permitirá acolher mais 497 pessoas, e as prisões portuguesas continuam a não respeitar as normas europeias, o que sublinha a urgência de, enquanto sociedade, criarmos ou imaginarmos uma alternativa a este sistema destrutivo e obsoleto que não só mantém as vidas dos presos em suspenso, mas também a de todos os que gostam deles.

Enquanto estou ansiosamente à espera de um telefonema, para poder dizer tudo o que não consegui dizer da primeira vez, leio e releio a carta. Faz-me voltar a Davis: “as prisões são concebidas para converter a população em espécimes num jardim zoológico - obedientes aos guardas, mas perigosos uns para os outros.”.

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