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OpiniãoEnsino universitário

Chefe, mas pouco

A recente série da Netflix, "The Chair" foca-se no departamento mais clássico, mais conservador e mais pedante da maioria das universidades anglo-saxónicas. Se fosse em Portugal, a série faria todo sentido na Faculdade de Direito de Coimbra.

© Créditos: Netflix

Na recente série da Netflix, "The Chair" (A Directora), Ji-Yoon Kim torna-se a primeira directora (mulher, não branca) do Departamento de Literatura Inglesa de uma importante universidade americana. Chama-se Pembroke University e, apesar de não existir na realidade, faz um compósito com Pembroke College: há um em Oxford e em Cambridge (Inglaterra), e um em Brown (Massachusetts, EUA), três das universidades do topo do mundo e onde, obviamente, Literatura Inglesa é leccionada ao mais alto e prestigiado nível.

Um aparte relevante para as universidades portuguesas: é que ao contrário de Portugal, onde disciplinas de Humanidades, como História ou Estudos Portugueses, são desprezadas pela maioria dos empregadores, Literatura Inglesa e História são duas das mais cobiçadas licenciaturas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Nesses países, muitos empregadores vêem em alunos que sabem ler, interpretar, contrastar, coligir, cotejar, disputar e debater (no fundo, o que se aprende estudando literatura(s) e história) uma mais-valia para empresas que querem investir, empreender, inovar.

Não é por acaso, então, que "A Directora" se foca no departamento mais clássico, mais conservador e mais pedante da maioria das universidades anglo-saxónicas. Se fosse em Portugal, a série faria todo sentido na Faculdade de Direito de Coimbra.

Kim tem de chefiar um departamento na transição entre a velha guarda (professores catedráticos à beira da reforma, salários altíssimos, mas que não "produzem" muito, nem são "populares", que dão as mesmas aulas da mesma maneira desde sempre) e os professores "problemáticos" (jovens e dinâmicos, dominam tecnologias, lêem clássicos de forma "subversiva", anti-canónica, mas que ainda não conseguiram um vínculo laboral permanente – nos EUA, o sistema do tenure faz com que milhares de professores trabalhem 5, 7, 10 anos para uma instituição no que se consideraria um "período experimental", podendo ser "dispensados" no final desse período se a Universidade assim o entender).

O problema é que o que na série deveria ser cómico é, afinal, a tragédia das universidades neo-liberalizadas, viradas para o lucro...

Chefe, mas pouco, Kim tem um director a quem responde na hierarquia, que lhe diz que a situação é insustentável: apesar do aumento das propinas e dos fundos doados pelos ilustres alumni da instituição, o dinheiro não chega; os antigos são um fardo e ela tem de fazer o trabalho "sujo" e livrar-se deles. Os antigos não recebem estrelas Tripadvisor, o feedback é curto, não construtivo, lêem chatos medievalistas, e os alunos aplicam o princípio do utilizador-pagador: se pagam mais querem melhor "serviço". Kim está no lugar impossível de respeitar o prestígio dos que ali trabalharam 40 anos – ou demiti-los; e corresponder ao que "os alunos querem" (estudos de género, raça, sexualidade) contra o currículo canónico e intocável da velha Literatura Inglesa.

O problema é que o que na série deveria ser cómico é, afinal, a tragédia das universidades neo-liberalizadas, viradas para o lucro, para o modelo de "serviço", para o sistema de pontos e "estrelinhas" que nada tem a ver com ensinar e aprender a ler, interpretar e debater.

A série ignora todo o exército invisível de precários que sustentam a universidade contemporânea (e, nos EUA, são eles que fazem o grosso de todo o ensino, incluindo desenho de currículo, correcções), pagos à hora, em salários part-time ou semestrais, renovados continuamente sem garantias, muitas vezes insuficientes para conseguirem sequer viver na cidade onde leccionam. E mesmo mostrando como "inevitabilidade" o processo de proletarização do ensino, a série trata com demasiada bonomia a multidão de managers, chefias, gestores, vices, sub-vices, adjuntos, lugares e lugarzinhos em centenas de categorias administrativas, sem qualquer relação com, de facto, Ensino, que o aumento exponencial de propinas e a máquina neo-liberalizante do trabalho universitário permitiu confortavelmente engrossar.

(Autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.)

Raquel Ribeiro, entre a América Latina e a Escócia

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e em Inglaterra. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. É professora de estudos portugueses na Universidade de Edimburgo.