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Comissão dos Direitos Humanos

"Câmaras nas fardas de polícias também deviam proteger cidadãos"

Um projeto de lei prevê equipar os agentes da polícia com câmaras. A Comissão de Direitos Humanos assume uma posição crítica em relação ao conceito.

Exemplo de 'bodycam' usado pela polícia alemã.

Exemplo de 'bodycam' usado pela polícia alemã. © Créditos: Martin Schutt/dpa-Zentralbild/dp

A polícia luxemburguesa vai ter câmaras nas fardas (bodycams) em breve. Inicialmente, 1.682 agentes serão equipados com estas câmaras, medida que representará um investimento de seis milhões de euros para os próximos cinco anos. Mas a Comissão de Direitos Humanos tomou uma posição crítica sobre o projeto de lei 8065.

"Só conheço as bodycams de filmes americanos", introduziu Gilbert Pregno, presidente da Comissão Consultiva dos Direitos Humanos (CCDH), na abertura da conferência de imprensa na quarta-feira.

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Ao contrário das câmaras que monitorizam o espaço público, as bodycams também filmam em espaços privados, por exemplo, quando a polícia é chamada a intervir num apartamento. Em termos de direitos humanos e proteção de dados, isto configura um cenário muito diferente. "Não queremos uma situação ao estilo chinês", declarou Gilbert Pregno.

Prevenção e preservação de provas

As câmaras deverão ter um efeito preventivo e preservar as provas quando os agentes da polícia são atacados. "Uma das razões pelas quais os polícias estão equipados com bodycams é porque são filmados no desempenho das suas funções", explica Max Mousel, jurista na Comissão dos Direitos Humanos.

A lei declara, portanto, que "o governo vê as bodycams como um meio de proteger os agentes de ataques verbais, físicos ou legais por parte do público". Em princípio, a Comissão de Direitos Humanos não tem qualquer problema com isto. "O trabalho da polícia não se tornou mais fácil nos últimos anos", sublinha Gilbert Pregno. É importante poder provar, em caso de litígio, que os oficiais respeitaram as regras. As bodycams são uma "proteção para a polícia".

Proteção para a polícia ou contra a polícia?

Na perspetiva da organização, as bodycams poderiam fazer muito mais. "O sistema de câmaras deve também servir para proteger os cidadãos da má conduta da polícia". Este é um objetivo que foi estabelecido no texto da lei, mas que é tratado com pouca atenção. "A proteção do cidadão é apenas mencionada [de passagem] no texto da lei, acho isto espantoso", explica Gilbert Pregno.

A lei também carece de regras claras sobre como proceder quando as imagens mostram que outras pessoas para além dos agentes da polícia foram afetadas. "O assassinato de George Floyd só foi tornado público porque os transeuntes filmaram a cena, as gravações das bodycams não tiveram qualquer importância", exemplifica Gilbert Pregno.

Nos últimos anos, foram divulgados alguns vídeos no Luxemburgo nos quais alguns agentes da polícia alegadamente se comportaram de forma imprópria.

Também aqui, a Comissão de Direitos Humanos não tem nada a apontar. "Se o agente da polícia puder ser filmado, o vídeo pode então ter o mesmo valor probatório em tribunal que o vídeo da bodycam do agente da polícia", calcula Gilbert Pregno. Mas estas gravações muitas vezes não mostram todo o evento e, para o responsável, as bodycams devem mudar isso.

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Os incidentes devem ser filmados

O projeto de lei em discussão, contudo, apenas regula a utilização de câmaras pela polícia. Determina como e quando os agentes podem gravar imagens e sons das suas intervenções.

"Segundo a lei, a câmara deve ser ativada em situações em que um incidente tenha ocorrido ou seja provável que ocorra", explica Max Mousel. A lei não especifica em que se traduziria um incidente deste tipo. "Isto deixa muito espaço para interpretação", atira.

No futuro, os polícias poderão gravar as suas intervenções em imagens e sons: "O polícia carrega num botão e filma", elabora Gilbert Pregno. "É da responsabilidade dos polícias decidir se houve ou não um incidente", diz Max Mousel. Segundo ele, isto leva a uma incerteza jurídica para a polícia e a um risco de arbitrariedade para os cidadãos.

Incerteza jurídica para a polícia

Também não é claro como proceder nos casos em que um agente da polícia não tenha ligado a câmara quando o deveria ter feito. "Parece que o uso de câmaras não é uma obrigação", indica o jurista. Além disso, não se sabe se o agente da polícia arrisca quaisquer consequências neste caso. Segundo o especialista, há muitas perguntas a que a lei não responde.

Os cidadãos não têm a possibilidade de ordenar ao agente da polícia que desligue a câmara ou mesmo que a ligue. Max Mousel explica que se pode imaginar que a bodycam é automaticamente ligada em certas situações, "por exemplo, quando o oficial saca da sua arma".

De facto, os agentes são obrigados a informar as pessoas quando a câmara está a ligada. A Comissão dos Direitos Humanos congratula-se com este facto. Mas há exceções: "Não sabemos em termos concretos que casos são. Por conseguinte, pode acontecer, em determinadas circunstâncias, que os cidadãos sejam filmados sem o seu conhecimento. Nesse caso, o objetivo de prevenir a violência não faria sentido. "Para que as bodycams evitem agressões, o agressor deve estar consciente de que está a ser filmado", explica Mousel.

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Equilibrar a proteção do cidadão e do agente

A Comissão dos Direitos Humanos insta os legisladores a encontrar um equilíbrio entre a proteção do agente policial e do cidadão. Este não é o caso no texto atual, que também carece de clareza sobre outro ponto: "Quem pode aceder aos dados? Atualmente, não se pode excluir que as gravações sejam manipuladas posteriormente ou que certas sequências sejam eliminadas. "Sobre este ponto, a lei refere-se às regras internas da polícia", explica Gilbert Pregno. Seria preferível, contudo, que o acesso aos dados fosse regulamentado por lei.

Há outro ponto em que os ativistas dos direitos humanos argumentam que as bodycams se destinam principalmente a proteger os polícias: não existe qualquer procedimento para que as pessoas filmadas tenham acesso às gravações. "Exortamos o governo e o parlamento a assegurar que as pessoas em causa tenham acesso explícito e efetivo aos dados", conclui Max Mousel.

(Artigo originalmente publicado no Luxemburger Wort e adaptado para o Contacto por Maria Monteiro.)