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Brasileiras não se calam e usam a internet para lutar contra a discriminação e o machismo

O grupo "Brasileiras não se calam" denuncia casos de discriminação e machismo. As cinco mulheres aceitaram falar ao Contacto sobre o projeto que fundaram numa página da internet e nas redes sociais.

© Créditos: AFP

Nuno Ramos De Almeida

São cinco mulheres brasileiras residentes em Portugal. Quais são os vossos percursos de vida e como se conheceram?

Sim, somos cinco brasileiras e nos conhecemos em Portugal através do nosso ciclo de amigos. Algumas estão a estudar, outras a trabalhar, e cada uma contribui para o projeto de acordo com as suas possibilidades.

Qual a razão de manterem anónima a autoria da página?

A razão de nos mantermos anónimas desde o começo foi por já esperarmos receber algumas mensagens mais agressivas, como de facto tem acontecido. Já recebemos mensagens mandando-nos “voltar para nossa terra” e outras chamando-nos de “vacas golpistas”, “oportunistas”, de nos “vitimizarmo-nos”, mandando-nos parar com o projeto e dizendo que não devíamos estar a a reclamar.

Que situações de machismo, discriminação, racismo e xenofobia já viveram?

Já fomos seguidas pela rua por alguns homens que gritavam "brasileiras, brasileiras" quando perceberam nosso sotaque, já fomos seguidas por seguranças no supermercado, já nos levantaram a roupa em público, e também já nos tocaram em partes mais íntimas dos nossos corpos sem autorização em discotecas. Nos relacionamentos com homens estrangeiros também já fomos tratadas de forma diferente, mais objetificadas, sexualizadas, e desrespeitadas por sermos brasileiras.

Apesar dessas vivências foi uma frase dita num programa de televisão que se tornou intolerável para vocês, porquê?

Sim, a indignação sempre existiu, entretanto não esperávamos que fosse algo tão naturalizado na sociedade. Quando alguém se sente confortável para fazer comentários discriminatórios contra mulheres brasileiras num programa de televisão mostra o quão grave é esse problema, e foi por isso que decidimos fazer alguma coisa.

Quantas denúncias de de quantos países têm já as vossas páginas do Instagram e Facebook?

Publicadas já temos 179 denúncias, mas temos recebido muito mais que isso e estamos a publicartudo de acordo com as nossas possibilidades. Sobre os países a grande maioria tem sido de Portugal, mas também temos recebido denúncias que aconteceram em Espanha, Itália, França, Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, Japão, Escócia, República Checa, Austrália, Holanda, Dinamarca, China, Suíça, Noruega e Canadá.

Quais os casos que mais vos impressionaram e se já foram tomadas outras ações para além da denúncia?

Os casos mais chocantes são os de meninas de 12 anos sendo chamadas de "putas" na escola, ouvindo dos funcionários das escolas que o assédio dos colegas é culpa delas por serem brasileiras e usarem calças jeans para irem às aulas, os casos de violência física. Houve também um caso no hospital em que uma brasileira estava internada após realizar uma cirurgia e acordou com as mãos de um enfermeiro nos seus seios que lhe disse que as brasileiras têm umas "mamas deliciosas", o de outra brasileira que foi mordida num jantar de família e lhe disseram que ela "é mesmo boa", outra que foi atropelada por um carteiro e depois que ele percebeu que ela era brasileira disse "se soubesse que eras brasileira tinha passado por cima". Todos esses aconteceram em Portugal. Sim, algumas brasileiras quiseram abrir processos jurídicos contra os agressores e contam com o apoio de advogadas voluntárias, de forma gratuita.

Este estereótipo machista e xenófobo da mulher brasileira hipersexualizada existe sobretudo em sociedades em que houve escravatura ou é generalizado? Quais os mecanismos que ajudaram a construir este estereótipo?

Não sabemos responder exatamente a essa questão porque não somos investigadoras na área, mas algumas sociólogas defendem que esse estereótipo das mulheres brasileiras vem desde a época da colonização e também foi incentivado pelo governo brasileiro através de campanhas de turismo que encorajavam o turismo sexual no Brasil. Isso pode ajudar a entender porque esse estereótipo das mulheres brasileiras está presente em pelo menos 17 países diferentes (os quais recebemos as denúncias), e porque também é mais forte em países como Portugal, que escravizou e colonizou outros países. De qualquer forma acreditamos que esses fatores não podem ser utilizados para justificar o assédio contra as mulheres brasileiras porque não é aceitável estarmos em 2020, termos tanto acesso à informação, e esse tipo de violência contra nós continuar sendo perpetuada.

Esta tentativa de homens disporem do corpo das mulheres sem sua autorização, exercido sobre as mulheres brasileiras, que se podem encontrar mais fragilizadas longe das suas famílias e amigos, enquadra-se numa cultura genérica machista da violação ou tem outras componentes relevantes?

Não. Obviamente só pelo facto de sermos mulheres já estamos mais vulneráveis a sofrer de machismo, feminicídio, e outros tipos de violência, entretanto podemos perceber claramente através dos relatos que algumas dessas situações de violência acontecem especificamente por sermos mulheres brasileiras. Em alguns dos relatos os agressores declaram verbalmente, de forma explícita, “você é brasileira”, o que para essas pessoas parece justificar um tratamento diferenciado e agressivo exclusivamente por termos nascido no Brasil.

Há algum paralelo entre a construção destes estereótipos sobre a mulher brasileira e as anedotas sobre portugueses nos Brasil?

Em relação às mulheres brasileiras e a essas anedotas não temos percebido nenhum paralelo. O que temos percebido é que devido a toda violência que alguns brasileiros vêm sofrendo em Portugal alguns acabam por ficar com medo de vir para cá e outros reagem também de uma forma mais agressiva em relação aos portugueses e a Portugal. Temos deixado claro na página que esse não é o objetivo do nosso projeto, que denunciamos sim essas situações mas que o intuito é combater a xenofobia e tentar fazer com que essas pessoas sejam responsabilizadas, e não generalizar todos os portugueses. Acreditamos que para conseguirmos mudanças precisamos nos unir e não combater a xenofobia fazendo o mesmo. Temos recebido o apoio de muitas mulheres portuguesas na nossa luta, o que nos tem dado esperança de continuar a acreditar que a mudança é sim possível, e recentemente fizemos uma publicação com algumas mensagens de apoio dessas mulheres portuguesas para as mulheres brasileiras que vivem em Portugal. Nossa luta não é contra todos os portugueses ou contra Portugal, e sim contra as pessoas que nos discriminam e assediam.

O estereótipo da mulher brasileira como "fácil" parece ser comum em vários países para onde as brasileiras emigraram. No Brasil, esta ideia da mulher tem de estar sempre disponível existe em todos os meios sociais ou verifica-se mais em relação às mulheres pobres ou negras?

Sim, achamos que no Brasil as mulheres não sofrem violência por serem brasileiras, mas que existem sim problemáticas que são sofridas especificamente por mulheres que são negras. De acordo com a nossa perceção no Brasil há sim uma maior objetificação, sexualização e colonização dos corpos das brasileiras que são negras. O que mais uma vez pode ser um problema relacionado com a colonização, quando muitas mulheres índias e africanas foram escravizadas e violadas pelos colonizadores e assim, querendo ou não, infelizmente, estavam a disposição desses homens. A visão que temos é que lamentavelmente, em decorrência disto, no Brasil as mulheres negras continuam sendo mais violentadas que as mulheres brancas, só que agora pelo nosso próprio povo.

Como mudar esta situação e em que é que a vossa ação pode ajudar a contribuir para esta mudança?

Acreditamos que o primeiro passo é falar sobre o problema e aceitar que ele existe. Não é possível mudar uma realidade que não é vista ou que é ignorada. Negar a existência da xenofobia em Portugal não vai fazer com que esse problema deixe de existir. Só entendendo e discutindo o problema é que podemos pensar em maneiras de os resolver, que é o que temos tentado fazer. Além de relatar os casos e alertar para que eles existem percebemos que só isso não era suficiente, e então montamos uma rede de apoio voluntário para ajudar mulheres brasileiras que vivem em Portugal, de forma gratuita, de acordo com os pedidos que fomos recebendo pelos relatos. Criámos o site "Brasileiras Não Se Calam" com vários projetos que oferecem apoio jurídico e psicológico, grupos de apoio, aulas de inglês e ioga, e um banco de dados dessas mulheres brasileiras que estão a procura de emprego em Portugal e que não conseguem.

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