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ReportagemPartido Socialista

A fundação secreta do PS na Alemanha há 50 anos

A 19 de abril de 1973, 27 socialistas portugueses encontraram-se na pequena cidade de Bad Münstereifel, na Alemanha, às escondidas da PIDE. Mário Soares queria formar um partido. Viu a sua mulher votar contra ele e desconfiou que um dos participantes era espião. No fim, nasceu o Partido Socialista, aquele que na democracia portuguesa mais tempo esteve no poder.

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Jornalista

(Na Alemanha)

Nuno Godinho de Matos não podia extinguir a ansiedade que sentia ao aproximar-se do balcão da agência que representava a transportadora aérea alemã Lufthansa em Lisboa. Não era para menos: ia levantar bilhetes para se deslocar a uma reunião secreta de socialistas na Alemanha, algo que, certamente, lhe custaria a prisão caso a PIDE intercetasse o plano. Estávamos em abril de 1973 e a ilusão de uma abertura do regime sob a gestão de Marcello Caetano estava há muito dissipada. A oposição sabia que tinha de fazer pela vida para acabar com a ditadura.

O então aspirante a advogado estava na companhia do jovem jornalista Mário Mesquita. Tinham ambos 23 anos e eram dois dos elementos mais jovens do grupo que conspirava para se encontrar a dois mil quilómetros de distância. Ao espreitar para dentro do escritório, Godinho de Matos identificou Maria de Jesus Barroso, esposa do líder socialista no exílio, Mário Soares. Ela estava ali a fazer exatamente o mesmo que eles.

"Esperámos que ela saísse e só a cumprimentámos, discretamente, do lado de fora. Depois entrámos e dissemos que queríamos levantar os bilhetes para Colónia. Tinham escala em Paris e já estavam pagos pela Fundação Friedrich Ebert, os nossos parceiros alemães", conta Godinho de Matos, hoje com 73 anos. A agente de viagens pareceu desconfiar de alguma coisa.

"Nunca vi tamanho disparate", atirou, de acordo com a memória do advogado. "Oito pessoas a viajar para Colónia nas mesmas datas e todos com escalas diferentes. Uns vão por Paris, outros por Zurique, outros por Amesterdão. Não faz sentido, isto é deitar dinheiro fora, um disparate".

Respiraram de alívio quando receberam os cartões de embarque e perceberam que a agente não estava alinhada com as autoridades: "A nossa sorte é que a PIDE não estava a monitorizar os faxes da Lufthansa. Se o tivessem feito, teriam visto a lista de passageiros e facilmente compreenderiam que estava a acontecer alguma coisa suspeita", diz Godinho de Matos ao Contacto.

O que estava em marcha não era coisa pouca. Tratava-se da realização de um congresso na Alemanha para a criação de um partido de esquerda socialista com aspirações de chegar ao poder num futuro sistema democratizado e encabeçado por uma das principais figuras da oposição no exílio, o advogado Mário Soares, então com 48 anos.

Soares era o representante máximo da ASP, a Ação Socialista Portuguesa, uma associação política sem caráter partidário assumido, criada em Genebra, Suíça, em 1964, e que viria a ser o embrião do atual Partido Socialista (PS). Visto que a legislação do Estado Novo não permitia organizações políticas para além do partido único – a União Nacional, mais tarde Ação Nacional Popular -, a ASP estava remetida à clandestinidade.

Nunca passara de um pequeno grupo de amigos, formado por profissionais liberais, essencialmente advogados e jornalistas, com o núcleo duro concentrado em Lisboa, mas com ramificações em Coimbra, Porto e em várias cidades europeias, através dos opositores exilados.

© Créditos: Fundação Mário Soares

Essa realidade começou a alterar-se a partir de 1972, ano em que Soares participou em nome da ASP no congresso de Viena da Internacional Socialista, passando a encarar seriamente a criação de um partido. Os seus informadores diziam-lhe que se adivinhava um golpe militar em Portugal e o dirigente não queria ser apanhado desprevenido sem uma plataforma organizada para enfrentar a luta política.

"Resolvemos transformar a Ação Socialista num partido. Eu chamava a isso o nosso [violino] Stradivarius. Quando vier a liberdade, nós precisamos de tocar, precisamos de chegar ao poder. E para chegar ao poder e tocar, precisamos de um instrumento. O nosso Stradivarius havia de chamar-se Partido Socialista", disse Mário Soares, em 2008, no programa "O Caminho faz-se caminhando", da RTP.

Graças a Ramos da Costa, cofundador da ASP, também no exílio, Soares travara conhecimento com o chanceler alemão Willy Brandt, líder dos sociais-democratas do SPD (a mesma família política do PS). Os socialistas alemães passaram a ser os principais aliados da ASP, através da Fundação Friedrich Ebert, uma academia de formação política com créditos firmados no apoio a opositores socialistas em ditaduras um pouco por todo o mundo.

Em Portugal, a fundação Ebert financiava a face legal da ASP, a Cooperativa de Estudos e Documentação (CED), criada logo após as eleições para a Assembleia Nacional de 1969. Tinha sede num andar da Rua Duque d’Ávila, em Lisboa, e uma atividade política maior do que aquilo que transparecia: "Oficialmente, organizávamos programas culturais, colóquios e debates. À noite, a sede era usada para as reuniões clandestinas da ASP. Foi aí que debatemos e votámos se queríamos ou não a transformação em partido", lembra Alberto Arons de Carvalho, 73 anos, jornalista e político.

As intenções de Mário Soares, Ramos da Costa, Tito de Morais e de outros socialistas exilados foram recebidas com cautela pelo núcleo lisboeta. Pensavam que a constituição de um partido iria chamar a atenção das autoridades e enfurecer a máquina opressiva.

"Dois dos nossos militantes, o Salgado Zenha e o Jaime Gama, tinham sido presos. Não tínhamos qualquer sinal de que a ditadura poderia cair em breve e fundar um partido significava um aumento de repressão sobre nós e, consequentemente, risco acrescido de sermos detidos", afirma Arons de Carvalho ao Contacto.

Após votação presidida por Salgado Zenha, os oito delegados eleitos para representar o núcleo de Lisboa na reunião convocada para a Alemanha foram mandatados para contrariar Soares e votar contra o estabelecimento de um partido.

A cúmplice alemã

Por esta altura, os membros da ASP já estavam familiarizados com o nome de Elke Sabiel (ou Esters, apelido do ex-marido). A alemã de Hannover, crescida em Buenos Aires, Argentina, era, desde 1969, a responsável da Friedrich Ebert para Portugal e Espanha.

"Ao longo de uma década, viajei dezenas de vezes a Lisboa. Por vezes, fazia escala em Paris, onde residia o Mário Soares. Ele passava-me cartas ou informações para levar para a ASP em Portugal", diz Sabiel, 82 anos, ao Contacto.

"O meu único contacto em Lisboa era o Gustavo Soromenho. Entregava-lhe o que levava na mala, cartas e dinheiro, e saía do país". Para além dos seminários e colóquios, o dinheiro servia para a edição e tradução de brochuras sobre cooperativismo, partidos políticos, democracia e sindicalismo. "Uma das nossas prioridades era a formação de quadros. Depois, a ASP tinha de justificar os gastos e era tudo passado a pente fino na Alemanha", diz Sabiel.

A nossa sorte é que a PIDE não estava a monitorizar os faxes da Lufthansa. Se o tivessem feito compreenderiam que estava a acontecer alguma coisa suspeita.
Godinho de Matos

Sabiel diz nunca ter enfrentado problemas com a ditadura portuguesa: "Tínhamos ótimas relações com a embaixada em Bona e sempre me emitiram o visto sem perguntas", afirma. "Nunca me senti perseguida nem observada, ao contrário do que me aconteceu em Espanha. Aí, era sempre fotografada por estranhos à saída do avião. Já deviam ter uma sala cheia de fotos minhas. Os serviços centrais da fundação impediram-me de voltar a Madrid, pois provavelmente acabaria presa".

Algo que nem a chateava muito; segundo a funcionária reformada da fundação Ebert, os portugueses eram de fácil trato, enquanto os espanhóis com quem lidava [dos grupos dirigidos por Felipe González e Tierno Galván] eram "muito arrogantes".

Quando Soares ponderou a organização de um congresso no estrangeiro, foi a Sabiel e à fundação Ebert que apontou baterias. A delegada para a Península Ibérica convenceu a instituição a pagar os voos dos participantes e a disponibilizar um espaço. O lugar escolhido foi a Academia Kurt-Schumacher, em Bad Münstereifel, uma estância de inverno localizada a 25 quilómetros de Bona, que reunia as condições pedidas pelo socialista português.

A academia Kurt-Schumacher da Fundação Friedrich Ebert em 1985, 12 anos após a fundação do PS.

A academia Kurt-Schumacher da Fundação Friedrich Ebert em 1985, 12 anos após a fundação do PS. © Créditos: DR

"Ele queria um sítio discreto, sem público nem imprensa, pois havia participantes que teriam de regressar a Portugal e ninguém podia saber que eles tinham estado ali. Aquele espaço era ideal porque o staff merecia toda a confiança e, como o encontro se ia realizar na semana de Páscoa, não havia mais nenhum grupo presente na academia". Seria o único congresso clandestino que Sabiel iria ajudar a organizar na sua carreira; mas a dificuldade logística que o envolveu valeu por centenas.

Foi muito difícil conjugar as escalas de todos sem levantar suspeitas. Felizmente, havia uma pequena agência de viagens dentro da fundação que ajudou a tratar de tudo.
Elke Sabiel

O encontro ficou marcado para entre 17 e 19 de abril de 1973, estendendo-se, segundo Sabiel, por mais dois dias, a pedido de Soares. Os 27 participantes chegaram de sete países diferentes: França, Bélgica, Suíça, Itália, Suécia, Alemanha e Portugal. Os exilados eram a maioria – entre os quais, os três fundadores da ASP, Mário Soares, Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais.

Do interior, chegaram 12. O maior núcleo era o de Lisboa, com oito delegados: Gustavo Soromenho, Catanho de Meneses, Nuno Godinho Matos, Roque Lino, três jornalistas do jornal República (Alberto Arons de Carvalho, Mário Mesquita e Raul Rego), para além de Maria Barroso, a mulher de Soares, que geria o Colégio Moderno. "Foi muito difícil conjugar as escalas de todos sem levantar suspeitas. Felizmente, havia uma pequena agência de viagens dentro da fundação que ajudou a tratar de tudo", diz Sabiel.

Os voos não sofreram qualquer percalço e todos chegaram a Bad Münstereifel à hora prevista. Sabiel só cometeu um erro: como não conhecia Maria Barroso, esqueceu-se de que era esposa de Soares e colocou-os a dormir em quartos separados. "Ele protestou e a situação resolveu-se prontamente. Ficaram com o melhor quarto", recorda Sabiel. "Foi ali que eu conheci a Maria Barroso, uma mulher muito observadora e com pensamentos orientados à esquerda democrática. Como era atriz, sabia dirigir-se à população, sabia como comunicar da mesma maneira com a mulher da cidade e com a mulher do campo".

A reunião histórica

Nem todas as figuras ilustres da oposição socialista puderam marcar presença na Alemanha. Jaime Gama e Alfredo Barroso estavam a cumprir serviço militar, enquanto Francisco Salgado Zenha, talvez o mais proeminente membro do grupo em Portugal, rejeitou viajar por ser contrário à formação do partido.

Já António Campos, pilar crucial dos socialistas no centro e norte do país, teve um motivo mais dramático para faltar. Na mesma altura que Godinho Matos e Mário Mesquita tentavam passar despercebidos enquanto levantavam os bilhetes na agência de viagens, Campos recebia em Oliveira do Hospital uma péssima notícia no exato momento em que se preparava para distribuir os cartões de embarque pelos delegados da sua região.

Mário Soares em campanha para as eleições para a Assembleia Constituinte, em Faro, março de 1975.

Mário Soares em campanha para as eleições para a Assembleia Constituinte, em Faro, março de 1975. © Créditos: DR

"O meu filho mais velho foi atropelado por uma motorizada e ficou entre a vida e a morte. O [jornalista] Eduardo Maia Cadete era quem tinha os bilhetes e ficou comigo na clínica, não podendo entregá-los a meia dúzia de participantes de Coimbra e de Aveiro", recorda o engenheiro, de 84 anos. "Fiquei triste, mas o mais importante naquela altura era ficar ao lado do meu filho, que acabou por sobreviver".

Campos estava profundamente envolvido nas movimentações para a fundação do PS e alinhado com o grupo dos exilados. Em Paris, reunira com Soares e Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista, para tentar convencer o último de que "um golpe militar – e não um levantamento popular – seria a melhor maneira de derrubar a ditadura".

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Já no início de 1973, tinha-se deslocado com outros camaradas a Vigo, em Espanha, para entregar a quem estava no exterior as atas da primeira reunião dos militares portugueses em Évora, semente do levantamento que iria resultar no 25 de abril e documento fundamental para antecipar o iminente derrube da ditadura. "Foi a mulher do António Macedo que passou a fronteira com as atas escondidas debaixo da roupa", recorda Campos que, na posse desta informação, estava entre os que reclamavam urgência na formação de um partido.

Tinha montado uma rede secreta com Ramos da Costa para recolher do comboio Sud Express, na estação de Alfarelos, informação dos seus camaradas refugiados na Europa. Foi aí que, segundo ele, recebeu indicações do histórico fundador da ASP para organizar um encontro dos elementos no interior de forma a reverter a decisão do núcleo de Lisboa em opor-se à transformação em partido.

"Reuni em minha casa, em Oliveira do Hospital, cerca de meia centena de membros da ASP e votou-se favoravelmente à passagem para partido. Elegeu-se ainda Jaime Gama como secretário-geral até à legalização do Partido Socialista no estrangeiro", conta Campos, que identifica esse momento na sua residência como a original fundação do PS, algo que minimiza a frustração por não ter podido integrar o lote de fundadores na Alemanha.

De Coimbra, seguiram apenas o médico Fernando Valle e o escritor António Arnault – que viria a presidir a algumas das sessões no congresso de Bad Münstereifel e, seis anos mais tarde, já em tempos de democracia, a criar o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

O alentejano Desidério Lucas do Ó teve uma deslocação muito mais tranquila. Residia perto de Frankfurt (a menos de 200 km de Bad Münstereifel) desde 1960, tinha uma boa reputação na comunidade portuguesa e já era filiado nos socialistas alemães do SPD. "Eu não me aproximei da ASP, eles é que se aproximaram de mim", diz ao Contacto Lucas do Ó, 81 anos, de volta ao seu Alentejo.

"O Tito de Morais era uma espécie de caixeiro-viajante quer andava pela Europa a recrutar pessoas para a causa socialista. Alguém lhe contou que eu era conhecido da comunidade portuguesa, que tínhamos fundado um centro operário português e que dominava o idioma alemão. Ele abordou-me, ficou em minha casa e convenceu-me das virtudes da via socialista democrática para sair da ditadura. Connosco, na Alemanha, não era difícil. Nós conhecíamos a miséria do regime comunista na Alemanha de Leste e não queríamos nada com essa alternativa".

Do Ó, que se formara na Alemanha em filologia, criou um núcleo da ASP em Frankfurt, com aproximadamente 100 membros. Em sua representação, foi convocado para integrar a histórica reunião em Bad Münstereifel, na Semana Santa de 1973. "Foi interessante, acima de tudo, para ficar a par do que estava a acontecer na política portuguesa, porque eles tinham muito mais informação do que eu. Mais do que o Soares, impressionou-me a capacidade intelectual de pessoas como o Mário Mesquita, o António Arnault ou o Jorge Campinos, extremamente inteligentes e com um passado antifascista", diz o ex-imigrante. "Os dias foram passados em discussões políticas. Ficávamos fechados numa das salas da academia e só saímos uma noite para jantar num restaurante".

Os socialistas ficaram na academia quase em regime de isolamento e pouco passearam em Bad Münstereifel, uma localização improvável para a fundação do partido que governa atualmente Portugal com maioria absoluta. A pacata cidade da Renânia do Norte – Vestfália, no noroeste do país, tem 17 mil habitantes e é mais conhecida pelas suas glórias medievais, as termas e a floresta vasta e primitiva.

Em 2021, conheceu um dos capítulos mais trágicos da sua existência, quando cheias violentas causaram mortes e destruíram partes do casco histórico. Quase nenhum morador sabe que ali nasceu o PS. Se fosse cenário para um livro, Bad Münstereifel acolheria mais naturalmente um conto de fadas do que um ensaio político.

"A cidade era pequena, mas muito acolhedora", recorda o escritor Liberto Cruz, 88 anos, um dos participantes e fundadores. "Saí de Rennes em 16 de abril e dirigi-me a Paris, num Renault 16, dando posteriormente boleia a Jorge Campinos [vindo de Poitiers], Francisco Ramos da Costa [de Paris] e Fernando Loureiro [de Berna], em direção à Alemanha. Fomos acolhidos na Fundação Friedrich Ebert, dotada de ótimas instalações onde dormíamos e tomávamos as refeições. Os temas abordados nas reuniões foram diversos e muito animados, mas delas sobressaiu sempre Mário Soares pela firmeza e pela convicção das suas afirmações".

Salvo honrosas exceções, os 27 participantes conheciam-se bem e estavam afinados nos pontos cruciais. "Queríamos transformar Portugal numa democracia e, dentro dela, lutar pela igualdade social", diz Godinho de Matos. "Na altura, éramos marxistas democráticos, se é que isso existe e é possível. Ninguém repudiava o contributo de Marx para a transformação do pensamento político, pelo contrário, respeitávamo-lo. Mas éramos também unânimes no repúdio ao exemplo dado pela União Soviética e pela cortina de ferro, que nada tinha a ver com o marxismo. Era uma ditadura extrema e ninguém era próximo dessa solução".

Soares queria assim demarcar-se inequivocamente dos comunistas e, consumada a constituição do PS, mostrar que havia mais opções à esquerda. "O que mais me marcou foram os novos horizontes e perspetivas do Mário Soares", sublinha Arons de Carvalho.

"Ele tinha uma visão muito otimista sobre o fim da ditadura e a necessidade de ter uma alternativa organizada, com escala internacional e queria que o PCP não fosse visto como o único partido da oposição. No fundo, ele queria mostrar aos líderes internacionais que havia mais opções para Portugal que não o Partido Comunista e ter um partido pronto para a luta política quando a ditadura caísse".

Elke Sabiel prestava toda a assistência necessária, mas não assistia às reuniões, mantidas à porta fechada na sala da biblioteca da fundação. "Correu tudo bem. Lamento apenas que nenhum dirigente da fundação nem do SPD tenha visitado os socialistas portugueses durante o congresso, apesar da minha insistência", diz.

As conversas giravam em torno do conteúdo programático e ideológico, com forte incidência nos prós e nos contras da transformação da ASP em partido. Tudo decorreu sem polémicas, até ao momento em que Desidério Lucas do Ó foi chamado à parte por Soares e Tito de Morais, num intervalo das sessões. "Eu estava habituado a tomar notas num bloco e nas reuniões escrevia o que se estava a dizer. Eles perguntaram-me porque é que eu estava a apontar tudo. Desconfiavam que eu era informador da PIDE", recorda Lucas do Ó.

"O Tito de Morais até me queria expulsar, o que me custou muito, pois ele conhecia-me e até já tinha ficado a dormir em minha casa. O [Fernando] Loureiro é que me veio salvar". O alentejano permaneceu no congresso, mas nunca ultrapassou a desconfiança demonstrada: "Essa pedra ficou para sempre no meu sapato", lamenta.

O momento alto ficou reservado para a tarde de 19 de abril. Após todas as argumentações, os socialistas estavam prontos para irem a votos e decidirem ali se continuavam a ser membros de uma associação ou se passavam a ser os fundadores do PS. "O [António] Arnault estava a presidir e começou pelo lado direito dele, onde estavam concentrados os elementos de Lisboa. Um a um, os primeiros votaram contra, causando frustração crescente a Mário Soares. Até que chegou a vez da sua esposa, Maria Barroso", narra Godinho de Matos.

"Ela manteve o compromisso que tinha feito com o núcleo e também votou contra Soares. Ele não se conteve e bateu com os papéis na mesa. Pensava que ia perder a votação. 'Se os camaradas do interior acharem que não há razões para constituir partido, não os vamos forçar a isso', disse ele".

Contudo, os votos dos exilados que se seguiram fizeram pender a balança para o lado de Soares. No final, 20 votos a favor, 7 contra. Os últimos vieram todos do núcleo de Lisboa, com exceção do de Arons de Carvalho, que alterou o seu sentido de voto após escutar as justificações de Soares. "Percebi que nós, em Lisboa, não tínhamos a informação toda e que por isso era legítimo mudar o meu sentido de voto. Soares, ao contrário de nós, sabia que o regime estava no fim e que era preciso criar uma alternativa", diz o primeiro líder da Juventude Socialista.

Às 18h, nascia o Partido Socialista e o seu primeiro símbolo – um punho esquerdo erguido a partir um punhal, que representava as doutrinas totalitárias. "Esta resolução foi tomada por 20 votos a favor e 7 contra, estes com a declaração de que, embora de acordo com o princípio, apenas discordavam da oportunidade da data. Finda a votação, todos os congressistas aplaudiram, de pé, esta ocasião histórica […)", lê-se, na ata fundadora.

Resolvemos transformar a Ação Socialista num partido. Eu chamava a isso o nosso Stradivarius. Quando vier a liberdade, nós precisamos de tocar, precisamos de chegar ao pode.
Mário Soares

Uma máquina de poder

No ano que se seguiu – e que antecedeu o 25 de abril de 1974 – a passagem para partido não provocou alterações significativas na forma de o grupo operar: os exilados desdobravam-se em contactos internacionais e os internos continuavam a operar na clandestinidade com a CED como fachada.

Ao sair da Alemanha, Arons de Carvalho parou em Paris para visitar o pai, um comunista exilado. Contou-lhe o que acabara de acontecer. Depois, já em Lisboa, ficou encarregue de receber os telefonemas semanais de Fernando Loureiro, a partir da Suíça, uma vez que esse país era o único que permitia telefonar para Portugal sem passar pela telefonista dos serviços centrais.

As chamadas eram efetuadas a uma hora certa e para um café previamente combinado, para evitar suspeitas. O jornalista cumpriu religiosamente o combinado até à véspera do 25 de abril, data em que Loureiro se atrasou e Arons de Carvalho abandonou o café: "Eu já sabia o que estava programado para o dia seguinte e até foi bom porque, como não o podia dizer diretamente, tinha receio de provocar um mal-entendido prejudicial", diz.

Depois da Revolução dos Cravos, a 28 de abril, Mário Soares regressou do exílio e pôs a máquina do PS a funcionar. "Abrimos a primeira sede logo a 27 ou 28 de abril, numa antiga livraria debaixo das escadarias da Universidade de Coimbra", sublinha António Campos, que, a partir de então, foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da estrutura partidária.

"Distrito a distrito, concelho a concelho, fomos construindo o maior partido português. Recordo-me que o nosso primeiro objetivo era eleger o Soares nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, e que logo acabámos por eleger 116 deputados".

Desde então, o partido nascido em Bad Münstereifel foi o que mais tempo esteve no poder em Portugal. Cerca de 53% do período democrático foi com o PS no poder. Desde 1995, três em cada quatro dias foram de governação socialista.

A Fundação Ebert continuou a apoiar fortemente os socialistas na transição para a democracia: projetos na área sindical, poder local e cooperativismo. Nasceram assim as fundações José Fontana (sindicatos que iriam dar origem à UGT), Antero de Quental (autarquias) e Azevedo Gneco (cooperativas) e o think tank Instituto de Estados para o Desenvolvimento.

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Também ajudaram a fundar e a financiar o jornal A Luta, alinhado com o PS, para além da organização de várias visitas de sociais-democratas alemães a Portugal e de dirigentes do PS à Alemanha. No 20º aniversário da fundação do PS, convidaram os 27 fundadores a regressarem a Bad Münstereifel.

Hoje, apenas seis continuam vivos. O Contacto falou com quatro deles, não conseguindo ouvir os testemunhos de José Neves, por motivo de doença, e de Rui Mateus, afastado do partido após a publicação de "Contos Proibidos – Memórias de um PS desconhecido", de 1996. Mateus reside atualmente na Suécia.

Arons de Carvalho foi líder da JS, deputado pelo PS em vários mandatos e secretário de estado da comunicação social em dois governos. "A fundação do partido teve relevância na projeção internacional e na legitimidade redobrada. Desafiou-nos a organizarmo-nos melhor. Fez com que na JS passássemos a imprimir clandestinamente um boletim chamado 'Esquerda'. Deu-nos maiores dinâmicas e responsabilidades", afirma.

Nuno Godinho de Matos tornou-se advogado de grandes casos e administrador do Banco Espírito Santo. Foi contra os acordos do PS com o PCP e Bloco de Esquerda para a formação da chamada "geringonça", mas entretanto diz ter percebido ter sido uma medida necessária para afastar Passos Coelho do poder. Também se arrepende por ter votado contra a criação do partido em Bad Münstereifel.

Liberto Cruz foi escritor, ensaísta, conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris e diretor da Fundação Oriente. "Regressei a casa, a Rennes, sozinho, no dia 19 de abril ao cair da noite, mas iluminado pelo dia ímpar que acabara de testemunhar", recorda.

Desidério Lucas do Ó regressou a Portugal em 1976 e tornou-se professor de inglês e alemão em Faro. Cedo entrou em divergência com o partido que ajudou a fundar e afastou-se. Diz nunca ter precisado do PS.

"Deixou de ser um partido socialista quando o Soares disse que tinha de pôr o socialismo na gaveta. Hoje, são só listas de amigos. Se vir o estrato social, são todos do mesmo meio abastado, quase todos advogados. Não há trabalhadores, ninguém que trabalhe das 8h às 21h, e consequentemente, ninguém que represente o eleitorado português", acusa.

António Campos recorda-se de Soares ter chamado, já nos anos 80, especialistas da fundação Ebert para o ajudarem a fazer um programa, quando o PS estava na oposição. "O alemão mostrou-lhe um mapa daqueles da escola primária e disse-lhe que o país devia viver do sol e da praia, do turismo. O Soares deu dois pinotes na cadeira e perguntou-lhe se era assim, com um turismo para pobres, que os seus netos iam um dia poder receber o salário que os alemães ganhavam. Tive de ir pô-los ao avião", diz.

Esteve sempre ligado ao âmago do partido, mas hoje diz-se desiludido, ao ponto de não marcar comparência no jantar de aniversário a realizar hoje, em Lisboa: "Vou publicar num jornal uma carta para o António Costa a explicar-lhe a história do partido e quão distanciado este governo está das suas bases fundadoras. Os valores e os princípios não têm nada a ver com os nossos".

Elke Sabiel acompanhou a situação portuguesa até finais da década de 1980, altura em que já estava muito mais concentrada nos países do bloco de Leste, especialmente na Roménia, país no qual foi representante da fundação Ebert de 1994 a 2004. A sua ficha no KGB tinha cerca de 200 páginas. Recebeu a notícia da morte de Mário Soares, em 2017, com profunda tristeza.

Em Bad Münstereifel, a academia da fundação Ebert foi vendida e transformada, em 2015, numa clínica de reabilitação de dependências. A placa que assinalava a fundação do PS desapareceu nas mudanças e quase não há vestígios da ocasião histórica de 1973.