Tráfico de droga. As táticas da polícia
As drogas mudam, as rotas de tráfico também. Os traficantes apuram métodos, as polícias também. Não é por acaso que PJ está no sítio certo à hora certa. Há muito trabalho no terreno, muita investigação, o bom velho "faro", agentes infiltrados, informadores, vigilância e muita cooperação com outras polícias, nacionais e internacionais. O que antes era incomum hoje é de regra. Os traficantes parecem sempre um passo à frente. Às vezes não estão. O combate ao tráfico e o tráfico têm uma coisa em comum: são raras as coincidências. Alguns métodos da polícia nem na polícia reúnem consenso.
© Créditos: Gerry Huberty/Luxemburger Wort
Há dias foi desmantelada a maior rede de tráfico de droga a actuar em Portugal, o terceiro e derradeiro capítulo da Operação "Exotic Fruit", com ligações ao Brasil. Apesar da dimensão da rede, nada de novo para os polícias ou para os traficantes. A realidade é de tal forma prolífera, que já parece ficção. Quantas vezes já não ouvimos relatos, notícias de jornais e nas televisões, conferências de imprensa com cenários atestados de fardos de droga, molhos de notas, telemóveis e armas apreendidas? É como um interminável filme de acção, de série B, cheio de intervalos para publicidade, mas que parece não ter fim.
Na calada de uma dessas noites, uma lancha rápida, topo de gama, desliga o motor de alta potência, esconde-se no silêncio e na noite, prepara-se para atracar num ponto recôndito de uma praia algarvia. Junto à margem, uma lanterna dá sinal intermitente e apaga-se, sinalizando que a costa estava livre. Não estava. A distância segura, agentes da Polícia Judiciária esperavam só o momento certo. No mar, a Polícia Marítima fazia o mesmo. Em minutos, toneladas de haxixe – de origem marroquina – e alguns quilos de cocaína, no total uma pequena fortuna, foram apreendidos, os traficantes detidos, a conferência de imprensa marcada para o dia seguinte, para as informações adicionais, para as fotografias da praxe dos proverbiais fardos de droga que, quando são traficados por via marítima, estão normalmente dentro de uma rede de pesca, para o caso dos traficantes terem problemas com a polícia em alto mar, coisa que tiveram em terra.
Dois elementos da polícia durante um operação de combate ao tráfico de estupefacientes em 2014, em Portugal. © Créditos: Tiago Petinga/Lusa
No Porto, a Polícia de Segurança Pública deteve três indivíduos na posse de mil e 200 doses de heroína e mais de mil de cocaína. Perto de Leiria, em plena A1, a PJ interceptou uma carrinha-frigorífico, alugada e com matrícula espanhola, com 2,9 toneladas de haxixe, muitos milhões de euros acondicionados sem grandes cuidados, que viajavam para a Galiza. Esta detenção conduziria a PJ a uma casa em Sesimbra, onde acabaram por ser descobertas mais três toneladas de haxixe. Faz agora 14 anos, a PSP da Amadora anunciou uma das maiores apreensões de sempre de heroína neste concelho, no caso dez quilos, o equivalente a 600 mil doses. Foram detidos quatro traficantes que forneciam Mem-Martins, Agualva-Cacém, Rio de Mouro e Buraca. Nesta operação, a PSP confiscou também duzentas gramas de cocaína, cinco armas de fogo, cinco mil euros em 'cash', quatro carros desportivos e 187 peças de ouro.
Perto de Peniche, a Guarda Nacional Republicana, deteve um desses dias um estrangeiro que tinha em casa um laboratório de ecstasy. Algures em Tavira, Algarve, a Brigada Fiscal e a GNR foram obrigadas a luta corpo a corpo, para deter uma dúzia de traficantes, abordados numa lancha rápida. Transportavam 4,5 toneladas de haxixe. Aqui há tempos, a PJ encontrou no porto de Aveiro um navio proveniente do Suriname, com uma carga oculta de mais de quatrocentos quilos de cocaína sul-americana, avaliada em 14 milhões de euros. No Algarve, em resultado de uma operação conjunta da PJ com a Marinha e a Força Aérea, foi apanhada em alto mar uma traineira com seis toneladas de haxixe.
Com os detalhes inerentes a cada uma das operações, o desmantelamento de redes ou tentáculos de redes internacionais em águas ou território português são tão frequentes que quase banalizaram. Parecendo produto de ficção, dizem mais sobre a realidade do que se pensa. Toda a gente sabe, e a polícia melhor do que ninguém, que esta relação de forças entre as autoridades policiais e os pequenos, médios e grandes traficantes, é uma luta desigual, feita de vitórias, sempre pequenas. As redes de tráfico são uma "hydra", sem regras ou fronteiras. De uma cabeça que rola, uma infinitude renasce.
É uma tarefa impossível medir o alcance das operações contra o tráfico de droga, qual o seu impacto no mercado do crime. Nem mesmo as polícias estão em condições de afirmar se as operações mais mediáticas, como nomes de código enigmáticos como "Moçoilo", de cariz patriótico, como "Alma Lusa", algo místicas, como "Atlântida", peremptórias, como "Relâmpago", ou até no espectro da doçaria regional, como "Dom Rodrigo" têm real efeito dissuasor, efectividade nas feridas infligidas nas redes de tráfico que actuam ou que passam por Portugal, ou se não passam apenas de gotas de água num oceano de droga, onde os traficantes parecem ter a faca, o queijo, o dinheiro, a imaginação, a logística e a sofisticação tecnológica a seu favor. Seja qual for a dimensão do crime e dos criminosos, só uma coisa é certa: com raríssimas excepções, coincidências não há.
Operação de combate ao tráfico de estupefacientes nas zonas da Amadora e Sintra, na Amadora, em 2014. © Créditos: Tiago Peting/Lusa
Se em relação aos pequenos e médios traficantes, muitas vezes a PSP e a GNR tropeçam em mini-redes, embora também apresentem bons resultados de investigação desde que têm essas competências, no caso da PJ, que se ocupa das grandes redes de tráfico que actuam em Portugal, raramente há obras do acaso.
Mesmo com desproporção de meios, a polícia funciona em teia. Algo de que raramente se fala. Tanto para a polícia como para os traficantes, o segredo é fundamental. A diferença é que para uns pode significar a vida ou a morte. E para outros é apenas a alma de um negócio multimilionário.
O segredo tem regras
Se uma rede internacional de tráfico de droga estiver à procura de um parceiro de crime em Portugal, não é provável que recorra aos classificados. "Mas é provável que acabe por contratar um agente infiltrado da Polícia Judiciária". Palavras de um antigo Inspector-chefe da Direcção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes (DCITE), da PJ. O agente infiltrado não é uma figura consensual – em alguns aspectos, nem sequer legalmente -, embora não tanto como a figura do 'agent provocateur', que anda sempre no limbo do verídico e do lendário.
No caso do recurso a um agente infiltrado, os procedimentos são naturalmente sigilosos, mas obedecem a procedimentos na orgânica da Polícia Judiciária. Os departamentos ligados ao combate ao tráfico de droga têm de requerer um agente infiltrado a uma secção muito específica da PJ, que distribui estes "agentes especiais" para os vários departamentos, dependendo obviamente da tipologia dos crimes. Essa requisição tem de ser devidamente justificada e autorizada ao mais alto nível.
Tanto para a polícia como para os traficantes, o segredo é fundamental. A diferença é que para uns pode significar a vida ou a morte. E para outros é apenas a alma de um negócio multimilionário. © Créditos: Gerry Huberty
O melhor será esquecer aquelas versões romantizadas dos filmes de Hollywood. Os agentes infiltrados não são propriamente protótipos de 007 à portuguesa que andam por aí. A realidade portuguesa é bem diferente. Nesta, não convém confundir um agente infiltrado com um agente "provocador", que não tem enquadramento na legislação portuguesa. Discussões à parte, e já são antigas, nada disto ajuda o trabalho da polícia.
Portugal, até pela sua dimensão, oferece lucros no consumo no seu mercado interno, mas não é apetecível aos grandes cartéis da droga, que usam o nosso país como via de trânsito para mercados maiores. Tendo em conta isto, a PJ tem na sua estrutura dois raios de acção, com as suas naturais conexões, mas distintos. A fronteira terrestre, que é mais utilizada para o tráfico de heroína, sintéticos e haxixe, destinada ao mercado interno. E, claro, a marítima, por onde entra também o haxixe, mas também uma grande quantidade de cocaína, geralmente em trânsito para outros destinos. Em ambos os casos, recorda a nossa fonte, "a cooperação internacional é absolutamente fundamental".
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Tal como a cooperação da PJ com as outras forças policiais nacionais, autoridades aduaneiras, Brigada Fiscal, Polícia Marítima, os sucedâneos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Marinha e a Força Aérea portuguesas. Há cerca de 15 anos, deu-se outro passo fundamental, dotando a PSP e a GNR de competências para investigar o pequeno e médio tráfico de droga. Este é igualmente um assunto de poucos consensos, embora a própria PJ entenda ser este o modelo adequado, já que no pequeno e médio tráfico a polícia tem de actuar da base para cima, enquanto no grande tráfico, para a qual é a PJ que está vocacionada, é nas cúpulas que se tem de actuar.
Para assegurar consonância e partilha de informações – outra questão sem quorum -, existem as chamadas Unidades de Coordenação e Intervenção Conjunta (UCIC), que reunem com regularidade todas as forças intervenientes no combate ao tráfico de droga, planeando ao detalhe as operações, evitando os "atropelos" frequentes de um passado não assim tão longínquo. No passado ficou também uma certa tendência das polícias nacionais e congéneres estrangeiras não partilharem informações. O que mudou radicalmente a partir de 1992, quando Portugal e Espanha juntaram as suas assinaturas ao Acordo de Schengen.
A partilha de informações é hoje uma instituição. O que só facilita a organização de operações conjuntas, até porque a PJ está em contacto permanente com outras polícias, nomeadamente a espanhola, a inglesa e a francesa, tendo estas oficiais de ligação em Portugal e vice-versa. Com o Brexit, a relação com a polícia inglesa exigiu mecanismos de adaptação.
Em todo o caso, quando se assiste às famigeradas detenções, geralmente as de maior dimensão, igualmente as mais mediáticas, estas são fruto de muito trabalho e de muito planeamento, muitas vezes entre forças policiais de vários países. Muitas vezes, não é do interesse das polícias fazem as detenções a meio do circuito, interessa, sim, seguir o trânsito do crime até ao destino final, para desmantelar por completo uma organização criminosa. "Muitas vezes a droga é seguida através de vários países", explicou o nosso interlocutor.
Crimes & Cruzamentos
Em território nacional, a Polícia Judiciária tem as suas armas e os seus métodos próprios. No combate ao grande tráfico, são fundamentais as "operações especiais". Entre estas, as denominadas "operações encobertas", através das quais agentes infiltrados da PJ, na pele de intermediários do crime, recolhem informações sobre proveniências e chegadas de droga a Portugal. A vigilância electrónica é outro dos meios que permite chegar às redes de tráfico. Geralmente, através da "marcação" de viaturas, cujas características possam indiciar prática de tráfico. "Os agentes da PJ fazem o balizamento dessas viaturas e não lhes perdem o rasto". Quando houver indícios que o permitam, não convém esquecer as escutas telefónicas – mais uma discussão polémica para acrescentar ao rol -, que em boa parte dos casos se revelam muito úteis, mesmo que no limite não venham a constituir prova.
Depois, clássico dos clássicos, os informadores. No que se refere ao tráfico de droga, a PJ, como todas as polícias nacionais e estrangeiras, tem nos informadores grandes "fontes" para apanhar os fios à meada, saber de locais de armazenamento, saber os sítios onde está previsto a droga chegar, para saber em que navio, em que avião, em que lancha, por que meio vão chegar a Portugal e onde. E, dependendo da posição hierárquica desses informadores, quem está a orquestrar o crime e quem são os solistas.
Na PJ, como se não bastassem os braços-de-ferro legais, há quem defenda, ainda que sob um coro de detratores, a criação de uma base de dados internacional de informadores. Uma espécie de central de "gargantas fundas", às quais as diferentes polícias pudessem aceder. Problema: os criminosos podiam igualmente ter acesso a estas, sabendo-se que muitos dos melhores 'hackers' se encontram no lado negro desta equação.
Essa base de dados, admitindo que seria hermética, seria de grande utilidade no combate ao tráfico de droga e não só. A criação de uma rede de informadores internacional não seria possível sem as diversas polícias criarem as respectivas redes nacionais. Um problema, multiplicado ao infinito. Evitar-se-ia, por exemplo, algo que é em simultâneo pouco frequente e não assim tão raro: um informador cruzar-se com um agente infiltrado, sem um saber o que o outro é. Por vezes, um informador trabalha com diversas polícias. Sem não há cruzamento de informações, o mais provável é que se cruzem os problemas.
Breviário das drogas em Portugal
O consumo de drogas em Portugal começa com o haxixe, forma resinosa da canábis. Mas é a história da heroína, com início nos anos 80, que está ligada ao médio e grande tráfico. Havia nessa altura, dois cartéis internacionais de tráfico de grande dimensão a actuar em Portugal, ambas indianas, que traziam a heroína do Paquistão, através da costa oriental de Moçambique. Nessa altura, a PJ desferiu um golpe profunda em nessas duas redes de tráfico, julgando que tinha cortado o mal pela raiz. Não foi assim. A raiz do problema é de mercado. Enquanto houver procura, haverá tráfico.
A seguir aos cartéis indianos, surgiram as pequenas redes cabo-verdianas que começaram a trazer a heroína para Portugal, directamente da Holanda. A meio da década de 80, os hábitos de consumo mudaram radicalmente. A heroína começou a ser fumada. Em consequência, o haxixe começou a deixar de ser considerada uma droga de transição, já que muitas pessoas se iniciavam directamente na heroína. O haxixe, aliás, começou a ser considerada uma coisa de quarentões, talvez por influência de "Os Amigos de Alex", que estava em cartaz.
O mercado da heroína alargou exponencialmente em Portugal. No início da década de 90, organizações kosovares – bastante violentas -, tomaram conta das redes de tráfico em território português. E, quando o mercado nacional já era muito apetecível, foram os cartéis turcos que tomaram o domínio, não só em Portugal, mas em toda a Península Ibérica, até ao final dos anos 90. Após longos meses de investigação, com o recurso a agentes infiltrados, acabaram por ser desmanteladas as principais redes turcas de tráfico, com a detenção de vários dos seus elementos e a apreensão de uma quantidade até então inimaginável de heroína: 500 quilos. Também isso mudaria. Houve uma quebra no consumo de heroína em Portugal, dando lugar ao consumo de outras drogas, sobretudo a cocaína.
Na primeira década século XXI, a maior parte da heroína que era traficada para Portugal era proveniente do Afeganistão. Esta e as drogas restantes, excluindo o haxixe, que vem de Marrocos, vinham do chamado Triângulo Dourado (Laos, Myanmar e Tailândia, com um vértice alternativo no Camboja).
No final da década de 2010 tinham-se imposto em Portugal três grandes rotas: a rota dos balcãs, operada por traficantes turcos; a chamada “Rota do Norte”, através da Rússia, operada por grupos criminosos da Tchetchénia e com ligação às máfias russas. E a "rota do sul", do mediterrâneo, por sua vez operada pelas organizações kosovares. A rota normal da cocaína também mudou nessa altura, tendo como origem África. Por estranho, a cocaína proveniente da América do Sul, o maior produtor do planeta, não tinha Portugal como destino frequente.
O grande problema para a PJ surgiu com a mudança de consumos em Portugal, onde aumentou exponencialmente o consumo de drogas sintéticas e, por consequência, as redes de tráfico destas substâncias. O ecstasy surgiu em finais de 1998, mas em Portugal o boom foi já em pleno século XXI. O tráfico de drogas sintéticas não tem as mesmas características do tráfico de heroína, cocaína ou mesmo de haxixe. Não operavam em Portugal grandes traficantes, mas um conjunto imenso de pequenos e médios traficantes organizados.
As polícias europeias afirmam todas o mesmo: ao contrário do que se possa pensar, é mais fácil actuar nas grandes organizações de tráfico do que nas médias e nas pequenas. Então como agora, a maior parte da droga sintética que chega a Portugal chega pela rota holandesa, embora a maior parte dos laboratórios estejam situados na Alemanha. Actualmente, segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, há perto de 900 drogas psicoactivas novas, em larga maioria sintéticas, a circular pela Europa, Portugal incluído. Quase todas potencialmente perigosas, em alguns casos mortíferas.
Não se sabe muito ainda das rotas, mas conhecem-se os destinos. Em Portugal, por exemplo, houve recentemente um enorme surto de drogas sintéticas como a Alpha-PHP e a Alpha-PVP (segunda geração da Alpha-PHP), também conhecida por "Flakka", nos Açores e na Madeira. Muitas destas drogas novas que circulam no mercado são desconhecidas, não sendo por isso criminalizáveis. Para qualquer polícia, em qualquer parte do mundo, não há inimigo pior.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)