Será o assédio uma marca omnipresente do sistema universitário?
Quando um homem acha que pode dispor do corpo de uma mulher pelo simples facto de estar numa posição de poder em relação a ela, é do grotesco que se trata.
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Por coincidência, mesmo no auge do debate sobre o assédio sexual e moral dentro das universidades portuguesas, António Guerreiro organizou um encontro sobre feminismo. Tratou-se da primeira de uma série de conferências, que teve lugar entre 14 e 15 de Abril, no Porto, no âmbito do programa de actividades da associação Mala Voadora, mais focada no teatro e nas artes plásticas. Vinte anos de experimentalismo na criação cultural, por parte desta associação, juntaram-se às vistas largas e maturidade intelectual do sempre jovem, porque muito crítico, Guerreiro.
Às diferentes vagas das lutas do feminismo, vêm agora somar-se perspectivas ainda mais fluídas e instáveis das diferenças sexuais e das tomadas de posição queer. As identidades não são fixas, por isso, impõe-se proceder à sua “desontologização”.
Na mesa final, sobre "O movimento #MeToo, os seus inimigos e as acusações de deriva puritana", impressionou-me a série de intervenções de Regina Guimarães. As suas pesquisas – com expressão cinematográfica de sentido militante sobre a vida nas prisões, territórios da desigualdade e da reprodução das injustiças, nomeadamente, em relação às mulheres ciganas – lembraram-me quão distante a universidade e muitos fóruns intelectuais estão da realidade social.
O assunto que está na ordem do dia tem, na sua base, o capítulo de um livro, corajoso e de conteúdo inédito, publicado pela prestigiada editora Routledge, da autoria de três investigadoras – Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom. A comunicação nas redes sociais favoreceu a circulação do mesmo, até se constituir em notícia de primeira página dos periódicos e abertura dos telejornais.
O capítulo foi publicado, em inglês, sob a forma de uma etnografia descritiva do centro de pesquisa em que as autoras desenvolveram as suas investigações, alimentando expectativas de uma carreira. Trata-se de um olhar sobre um sistema que é indissociável de desigualdades e hierarquias de poder, no quadro do qual aqueles que se encontram numa posição de dominação – em face dos que detêm posições precárias – se sentem autorizados a exercer formas de exploração intelectual ou sexual.
Nesse sentido, o assédio não se esgota nas práticas de violência, de abuso ou de violação, fundadas na fantasia de poder dispor do corpo dos subordinados para satisfação própria. O assédio também pode estar na prática sistemática de mandar calar os dependentes, na imposição das próprias ideias do presumido chefe de escola como único quadro de referências ou, até, na redução ao mínimo das margens possíveis de dissensão. Dito em linguagem chã: ou te calas, me obedeces e citas obsessivamente, ou não te quero, nem te promovo na minha universidade, departamento ou centro de investigação.
No seu capítulo, as três investigadoras tomaram como terreno de pesquisa a sua experiência no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, do qual o director emérito, entretanto suspenso, era o Professor Boaventura de Sousa Santos. Ao descreverem o funcionamento de um sistema de poder onde o assédio é moeda corrente, as autoras não puseram os nomes dos que assim agem sem escrutínio.
Concordo com o procedimento, não só por permitir a própria defesa e protecção legal das autoras, em posição vulnerável, mas também porque a realidade a que se reportam pode ser generalizada a muitas outras instituições congéneres. Claro que com uma diferença de acentuação, a qual tem de ser reconhecida.
Até à data de publicação do capítulo, Boaventura de Sousa Santos era o cientista social português de maior projecção internacional, logo, a autoconsciência que tinha desse mesmo estatuto – que terá pesado numa espécie de delírio de chefe de escola a quem tudo foi permitido dizer e fazer, ao longo de mais de quatro décadas – não se encontra noutros lugares. O que não significa que, em organizações congéneres, não existam as mesmas práticas de assédio. A grande diferença é que elas são exercidas de modo mais pulverizado e sórdido, por personagens de segunda ou terceira linha, que são capazes de escapar de modo bem mais eficaz aos radares do controlo e aos modos de escrutínio.
No encontro da Mala Voadora, no Porto, pude debater este mesmo assunto. Reconheço que o facto de o público e de alguns intervenientes não serem académicos criou modos de distanciamento que me ajudaram a ver melhor este caso, numa perspectiva que me parece estar mais ligada às velhas lutas feministas do que às novas vagas de respeito pelos pontos de vista de grande fluidez queer. Na impossibilidade de transcrever tudo o que foi dito acerca deste caso, ao longo de quase três horas de debate – com base nos movimentos “#MeToo”, de denúncia, que começaram nos Estados Unidos, nomeadamente em Hollywood – , limito-me a esboçar alguns aspectos.
Na base deste caso, está uma questão de violência perpetrada mais facilmente contra as mulheres (mas que pode não se esgotar nelas) em contexto laboral. Isto é, na sua mais ampla expressão, este caso deve servir para reflectir sobre todas as situações de abuso dos que detêm o poder que, por se considerarem numa posição hierárquica de comando, operam de forma arbitrária, logo, grotesca. A este respeito, os casos mais extravagantes de Nero, Napoleão, Mussolini ou Hitler fornecem a matriz de tais comportamentos grotescos, pois impuseram formas de exercício do poder que tinham tanto de extravagante, na concretização dos seus caprichos, como de insólito. Quando um homem acha que pode dispor do corpo de uma mulher pelo simples facto de estar numa posição de poder em relação a ela, é do grotesco que se trata.
Vejamos, agora, que à escala das universidades – sobretudo em Portugal – existem outras formas do mesmo grotesco. Refiro-me à boçalidade – violenta, masculinizada, pornográfica e reles – de praxes que já levaram à morte e, com certeza, a inúmeras situações de violação. Não se venha agora dizer, com propósitos desculpatórios, que existem modos de consentimento em que os mais fracos, caloiros ou estudantes, aceitam tais práticas e cada um faz o que quer do seu corpo (tanto do ponto de vista da comida, da bebida ou do sexo).
A festa ou os rituais de passagem seriam, ainda por cima, momentos excepcionais que, só por si, autorizariam o grotesco da violência, das violações e dos mais diferentes abusos. Em minha opinião, a universidade não tem de tolerar esse género de rituais a bem do respeito por uma tradição inventada. Se enfia o barrete dessa bacocagem, criando feriados ou regulando o que está fora e o que está dentro dos seus muros, é porque não se importa de ser cúmplice desse espectáculo de violência e de pura disfuncionalidade – grotesca.
Outra das figuras do grotesco instalado nas universidades é mais difícil de reconstituir porque surge encrustada nos próprios dispositivos de controlo interno, isto é, conselhos e órgãos de gestão, mais comissões de ética e de controle. Como poderão estes órgãos funcionar como instrumentos de escrutínio e de erradicação do arbitrário quando quem neles se encontra são, na maioria dos casos, mero produto de um sistema de mandarinato e das clientelas que se apropriaram dessas mesmas instituições?
Uma hipótese que tem de ser colocada é a de saber que dentro dos muros da universidade se construiu um sistema que muito dificilmente pode ser posto em causa, pois os abusadores tomaram conta dos principais órgãos de controlo (em geral, são os mais medíocres cientificamente que se dedicam a tomar conta da gestão da universidade). Aliás, conforme se constatou a respeito de uma série de denúncias sobre situações de assédio na Faculdade de Direito de Lisboa, uma vez feita a investigação tudo ficou em águas de bacalhau...
O inventário dos modos de grotesco – logo de abuso e violência, dos quais a universidade é palco ou cúmplice – poderia continuar e teria que incluir o excesso dos egos de muitos professores. Resultado de um mundo medíocre e autorreferencial, com um verniz de internacionalização mas extremamente provinciano, como pode o sistema universitário criar simultaneamente tantos egos, tão desmesurados quanto frustrados? Para produzir um star professor quantos professores frustrados por não terem lá chegado, logo muito ciosos do seu poder administrativo, foram criados?
Para responder à pergunta acabada de formular vale a pena reflectir outra vez sobre o caso de Boaventura de Sousa Santos. A sua queda em desgraça, que agrada a muita gente interessada em defender e perpetuar o mesmo sistema universitário em que ele floresceu, esconde três outros aspectos. Em primeiro lugar, ela esconde um ataque cerrado às ciências sociais, que existe sob a forma de depreciação do seu valor, com supostas alegações de apelos ao que não serve para nada, não favorece o mercado ou o tecido empresarial, não tendo consistência quantitativa, nem correspondendo a modelos de escrutínio entre pares.
Em segundo lugar, a queda em desgraça do cientista social português de maior projecção internacional – apoiante dos movimentos da denominada extrema-esquerda, que assumiu perspectivas indigenistas e de militância anti-colonial – só pode satisfazer os meios mais conservadores que temem o facto de todas as ciências sociais serem apenas uma forma velada de marxismo.
O facto, também ele grotesco, do professor em causa se ter dado em espectáculo enquanto rapper e de ter assumido que os resultados das suas pesquisas eram indissociáveis das suas causas emancipatórias – ou seja, a confusão entre asserções científicas e pontos de vista ideológicos – gerara uma indistinção entre o professor, o homem, o cientista, o ideólogo e a presumida estrela. Com a queda em desgraça do homem ou professor-estrela, tudo o resto também cai, incluindo as suas posições ditas de esquerda (agora postas em clara contradição com as suas práticas abusivas).
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Em terceiro e último lugar, a queda em desgraça de um professor que era, em muitos círculos, reconhecido como uma figura carismática, só poderá agradar ao lado mais sórdido e cinzento do mesmo sistema, constituído pelas fileiras de professores administrativos que enchem as universidades. O balão que rebentou nas alturas enche de esperanças os que labutam no dia a dia, entregando-se às instituições como se fossem as suas casas e comportando-se nos seus jogos de poder, sempre, de forma impoluta.
Também os mais medíocres, diga-se de passagem, em tantos casos confundidos com os que se comprazem nos corredores do poder, ficaram vingados. Mas não será que estes últimos, cuja mediocridade nunca é assumida, são potencialmente tão abusadores quanto os professores que almejam a ser as estrelas lá nas alturas?
Para responder à última questão, será necessário levar mais fundo a interrogação sobre a universidade. A perspectiva que defendo é simples: a universidade é o local onde o ensino, nos seus mais diferentes níveis, deve ser feito no contacto com a investigação científica e rigorosa, bem como no respeito pela criatividade e inovação. As escolas, os laboratórios ou os projectos colectivos, a existirem, têm de ser tratados com pinças e nunca podem esmagar a liberdade individual. As ciências sociais e humanas são parte integrante desta concepção. As mais diferentes formas de organização, de que uma universidade necessita para responder a este desígnio, devem estar submetidas a uma tal concepção.
Todavia, mal vai a universidade quando se invertem os termos e os aspectos organizativos prevalecem sobre os do ensino feito em articulação com a investigação. Isto é, quando a figura do professor-administrador se impõe à do professor-cientista-criador-inovador, é porque está em curso o processo de instalação da mediocridade.
Não. Ainda não me esqueci da questão da gravidade do assédio moral e sexual. Nem estou a tentar diluir a questão com divagações acerca do sistema universitário. O problema é que me parece que a queda em desgraça do Professor Boaventura de Sousa Santos não deve ser transformada nem se esgota numa espécie de caça a homem. Pois o problema não fica eliminada com a queda do homem considerado o professor-estrela.
Aprendi a clarificar este aspecto no referido debate do Porto, em que participaram Regina Guimarães, Marinela Freitas e António Guerreiro. Eliminar o professor estrela, se tal for possível, pode não resolver nada, se não existirem mudanças num sistema favorecedor de abusos aos mais diversos níveis e de modos que revestem também uma aparência de legalismo ou de respeito pelo sentido institucional (como tantas vezes se repete, em jeito demagógico).
O balão rebentou nas alturas, o professor caiu em desgraça, uns tantos medíocres regozijaram-se, mas tudo ficou na mesma.
É, pois, com uma nota de profundo cepticismo que assisto à queda do professor-estrela, chefe de escola, como se referiu a si próprio, numa defesa em que promete vingar-se à luz do Estado de Direito. O balão rebentou nas alturas, o professor caiu em desgraça, uns tantos medíocres regozijaram-se, mas tudo ficou na mesma. É por isso que me agrada o ponto de vista etnográfico do capítulo de que partimos, pois, ao estudarem um caso que conhecem bem, as três investigadoras convidam toda uma sociedade a reflectir sobre o lugar da universidade e o modo como operam os seus diferentes organismos, dos laboratórios aos centros de pesquisa.
E, se todos os que fizeram vida na universidade são responsáveis ou cúmplices de um sistema que se foi construindo à luz de lógicas de mandarinato e de clientelismo – eliminando os instrumentos de escrutínio (por vezes, o que é ainda mais grave, construindo simulacros de legalidade e objectividade que são eles próprios balões cheios de ar) – , também é um facto que os egos gigantes de muitos académicos ali se instalaram sem consciência dos seus próprios abusos. A este respeito, tanto o professor-estrela, quanto os que alimentaram o mesmo sistema, nas posições de porteiros ou olheiros do grande chefe – homens ou mulheres mais ou menos abusadores directos dos desclassificados ou subalternos – , ter-se-ão comportado como numa autêntica seita.
À cabeça, o guru. Entre os seus dotes, a capacidade de estabelecer contactos entre o Sul e o Norte, bem como de viajar pelo mundo a espalhar a boa nova, em universidades e círculos políticos. Lá, na comunidade, havia que acumular capital simbólico, sob a forma de reprodução das ideias e de gestos que, impostos do alto, logo viriam fertilizar os que se encontravam mais abaixo, à espera de vez para subir na carreira. Sobretudo em ocasiões de festa ou convívio, o chefe dava-se em espectáculo. Grotesco, transgredia porque o seu poder permita-lhe essa distinção. Cantava, declamava poesia, apresentava a sua lengalenga rapper, porventura o equivalente de uma mascarada, e tudo o mais que é contado no capítulo.
Como escreveu Boaventura de Sousa Santos na sua resposta, só por vingança de quem foi expulso do grupo se pode pensar que o facto de se ter dado em espectáculo e ter sido tão generoso com as suas dádivas – no interior de um sistema académico que é também o do potlatch – pode ser considerado um modo de assédio, um abuso de poder ou uma cena grotesca.
Afinal, pasme-se, ele é que é a vítima, nada fez e não lhe cabe nenhuma responsabilidade de assédio. À vingança, responderá com um processo, até às últimas consequências... O ultraje é grande, logo, olho por olho! Não hesita em qualificar: tudo uma conspiração neoliberal! Ao fim de mais de quarenta anos à frente de um centro por ele criado, rodeado da gente que é a sua, os abusos, o assédio e as violências que lhe são atribuídos não passam de uma “difamação vil”. Coisas de loucos! Não seria melhor considerá-los, antes, as dádivas generosas de um chefe de seita?
(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)
Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto
Colabora com o Contacto e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou "O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino" (Edições 70).