Prostituição de rua e casas de toleradas
Como construir uma etnografia da prostituição de Lisboa durante o Estado Novo?
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A 9 de Maio de 1947, o capitão Eurico de Castro Zuzarte concluiu o seu relatório sobre a circulação de prostitutas na cidade de Lisboa. Fizera-o, na sua qualidade de inspector dos Serviços de Fiscalização do Secretariado Nacional de Informação e Cultura Popular, à frente do qual se encontrava António Ferro. Na base do relatório, estiveram queixas apresentadas por diferentes tipos de comerciantes, proprietários e inquilinos. Da Rua da Glória à Baixa, muitos eram os que se sentiam prejudicados pela presença de prostitutas, nas ruas, prédios ou nas imediações dos seus estabelecimentos. O propósito não era acabar com a prostituição, mas com a exibição das prostitutas pelas ruas, tendo em vista defender o bom nome da cidade, numa altura em que se multiplicavam as preocupações em atrair turistas. A Baixa parecia ser a principal área a controlar, mas a presença das prostitutas fazia-se sentir em todos os bairros mais frequentados, “já sem respeito de horas ou quaisquer conveniências”. Lisboa, de um modo geral, tinha “as suas ruas, em especial as principais, infestadas de prostitutas”, ANTT, Governo Civil de Lisboa, Correspondência recebida/expedida, n.º 126 (PT/TT/AC/GCL/E-B/003/0126).
A denúncia, fundada numa moral das aparências e do parece bem, reproduzia uma espécie de medo ancestral, que tinha mais de um século. Já em 1841 se classificavam as prostitutas que vagabundeavam pelas ruas, em oposição àquelas que se encontravam recolhidas e mantinham uma vida discreta. Igualmente, em 1864, para resolver o problema das prostitutas de rua, associadas às casas de passe, defendia-se as casas de toleradas – devidamente licenciadas pelas autoridades e onde residiam as “raparigas apatroadas”.
Segundo o capitão Zuzarte, seria melhor seguir os exemplos de Casablanca ou Badajoz, onde a prostituição estava confinada a um único bairro. Um confinamento que se impunha nas vésperas de Lisboa vir a ser palco das Festas Centenárias, para as quais se esperavam milhares de estrangeiros. As outras medidas propostas pelo capitão passavam por: impor pesadas licenças às casas de passe ou de pouca permanência (que considerava mais recentes e distintas das antigas casas de toleradas); organizar uma fiscalização por pessoal idóneo, digno e bem pago; e aplicar uma pesada multa a todos os que por palavras ou gestos pudessem ofender as mulheres, na assunção de que as prostitutas estavam por todo o lado.
Observador no terreno, Zuzarte contou 47 prostitutas pelas ruas de Lisboa, ao passear desde a Avenida Fontes Pereira de Melo e Rua da Assunção, percorrendo a Rodrigues Sampaio e a Eugénio dos Santos. Ao falar com estrangeiros que qualificou de categoria, mais gente marítima, ficou impressionado por os mesmos considerarem que Lisboa era o único porto em que o comércio de mulheres era exercido à vontade pelas ruas. Ainda por cima, era frequente que as mulheres desafiassem os homens, metendo-se com eles, puxando-os pelo casaco ou apalpando-os.
Um dia, pelas três da manhã, na Rua Augusta, Zuzarte assistiu a um cadete a ser atacado por quatro mulheres que o cercaram; sem conseguirem o que pretendiam, acabaram por lhe pedir dinheiro, para um café ou uma cerveja; uma cena considerada um vexame para o brio de português, ostentado pelo capitão.
É que as prostitutas suscitavam frequentes conflitos e cenas indecorosas, na sua prática de caça ao homem, que não podiam ser objecto de controlo, pois não se podia colocar um polícia ao lado de cada delinquente. Zuzarte reconhecia, assim, que o Estado não podia dispor de um aparato policial que controlasse tudo e todos, logo, teria de se recorrer a outros instrumentos de regulação e fiscalização que impusessem a ordem. Pior que tudo era que muitos homens se tinham habituado ao trato com as prostitutas, acabando por sujeitar mulheres, que nada tinham a ver com a prostituição, à sua curiosidade de gabirus, bem como a “chufas indecentes”, com propostas que seria indecoroso escrever no próprio relatório.
Para ilustrar o modo como a Baixa estava a ser invadida por prostitutas, Zuzarte multiplicou, no seu relatório, os dados factuais. Certa noite, à 1.20, na Rua Augusta entre o Rossio e S. Nicolau, constatou a presença de 32 mulheres, que beneficiavam de uma espécie de trânsito livre, a partir da uma da manhã. Tratava-se de um cenário lamentável que, em sua opinião, não se via há quarenta anos. Claro que havia meretrizes sujeitas à fiscalização policial, com uma “patroa” a dirigir a casa e impondo a sua disciplina, mas estas viviam em casas próprias e só ali exerciam o seu triste mister. Estas casas de toleradas vieram mesmo a ser proibidas de exibir qualquer sinal exterior que as pudesse identificar, mas tal não obstava a que continuassem a ter freguesia certa. O que Zuzarte mais elogiava neste modelo era o facto de corresponder a uma prática de prostituição recolhida e controlada, que não se confundia com a situação aberrante e escandalosa que se passava bem à sua frente.
Por que razão não se voltava, então, a recuperar o modelo da prostituição discreta e recolhida – perguntou Zuzarte? As casas de toleradas discretas, de onde as prostitutas só podiam sair uma vez por semana, no seu dia de folga, mais as saídas diárias de uma ou duas horas, em casos que a “patroa” julgasse justificáveis, estavam no centro desse modelo, indissociável de referências morais e de uma obsessão pelo controlo. A vantagem estava em sujeitar as prostitutas ao olhar da patroa – concebida como uma espécie de colaboradora da polícia – na certeza de que as mesmas mulheres se portavam, regra geral, bem fora da casa que lhes dava abrigo; sabendo-se, ainda, de antemão que a patroa seria inflexível, se elas praticassem o seu mister por fora, o que implicaria prejudicar o seu próprio interesse.
Com base nesse modelo de recato e vigilância, por submissão à patroa-colaboradora, Zuzarte descreveu uma espécie de tipo-ideal da prostituta. Primeiro, começava por trabalhar na rua, depois, quando começavam as dificuldades, recolhia-se a uma casa de toleradas. Nesta última, usufruía de mesa, aliás, bem substancial, e quarto, mais 50% da receita cobrada pelos serviços, pertencendo outro tanto à patroa. Esta situação, quase ideal, era contrariada pelos adiantamentos feitos às prostitutas ou dívidas por elas contraídas. Por exemplo, para pagar uns vestidos a prestações, a patroa acabava, quase sempre, por guardar a parte de leão das receitas, ficando a mulher impedida de sair de casa até conseguir pagar as suas dívidas.
O modelo da prostituição de rua, bem como o seu alastramento, incluindo a existência de situações de clandestinidade, que escapavam ao controlo policial, correspondera, segundo Zuzarte, à instituição das casas de passe. Isto é, foi quando estas se instituíram e passaram a pagar licenças e contribuições pelo aluguer de “quartos para visita” ou “pouca permanência”, que se multiplicaram, em número considerado incalculável, por toda a Lisboa, as prostitutas de rua. Sendo uns legais, outros clandestinos, numa gama de quartos pobres, modestos, regulares e de luxo. Por exemplo, estes últimos eram mobilados em estilo rigoroso, dispondo de casa de banho privativa, “apartement” e permitindo escolher a mulher por catálogo fotográfico. Os preços praticados no aluguer dos quartos oscilavam entre uns míseros 2$50 e os 80$00, sendo 10$00 o preço normal. Acrescentando-se que qualquer casal que lhes batesse à porta seria bem recebido, “só havendo alguma hesitação quando a fêmea tem marcado o aspecto de menor”. O pormenor não era um dado neutro, uma vez que revelava não só consciência clara acerca da pedofilia e abuso de menores, mas também um modo de associar à prostituição de rua, com os seus modos de escapar ao controlo policial, a responsabilidade por tais práticas.
Teria sido através da difusão dessa prática de aluguer de quartos que tudo teria começado a mudar. A mulher passou a procurar o seu cliente na rua e a levá-lo para as casas de passe. A ponto de aquelas que ainda esperavam o cliente discretamente em casa, ao fim de duas ou três horas sem cliente, acabavam por ir dar uma voltinha a ver se tinham sorte. A ajudar à festa da prostituição de rua, estiveram, ainda, alguns comerciantes pouco escrupulosos que viram na frequência das suas casas pelas prostitutas um modo de aumentar os consumos. Foi o que sucedeu em leitarias, casas de chá, pastelarias e restaurantes que se converteram em agências de prostitutas.
Dobrado de etnógrafo, o capitão Zuzarte reconstituiu a linguagem utilizada da prostituta de rua que vagueava para “engatar um”, para depois o receber ou ir “fazer o cabrito” na referida casa de passe. A repressão da polícia que as multava e levava para a esquadra afigurava-se inútil. Impondo-se, isso sim, atacar o caso das ruas de Lisboa pejadas de prostitutas: nos seus “poisos” ou estabelecimentos comerciais, pelas ruas onde vagueavam e nas casas de passe.
Zuzarte propôs, então, uma série de medidas concretas contra as casas de passe e as suas implicações. Primeiro, as mulheres não podiam andar pelos referidos poisos, desacompanhadas de um homem sério, sob o risco de os proprietários serem multados ou mesmo verem os seus estabelecimentos encerrados por um curto prazo. O encerramento era, aliás, considerado justo, pelo facto de estar em causa “uma actividade bem contra a economia moral da Nação”.
Depois de cinco dias, durante os quais as prostitutas nos seus poisos seriam postas a par da vigilância pessoal, passar-se-ia a prender qualquer prostituta que vagueasse pelas ruas de Lisboa. Ficariam presas de 3 a 15 dias, consoante o grau de reincidência, e numa quarta vez seriam remetidas para uma casa de correcção.
Para efeitos de “saneamento social e de prestígio do bom nome da nossa moral”, retirar-se-iam as licenças às casas de passe. Esta era a medida mais radical, destinada a impedir que a casa de passe fomentasse, propagasse e incitasse à prostituição (por vezes admitindo um homem acompanhado de duas mulheres) e suscitasse a prostituição clandestina. Mas a principal solução estava em recuperar o antigo modelo das casas de toleradas, responsabilizando a patroa “que só poderia permitir o exercício da prostituição às mulheres que fizessem parte do cadastro da sua casa”. Impedindo, com multas coercivas, que as casas de toleradas admitissem desconhecidas e funcionassem como casas de passe. Só através deste conjunto de medidas se acabaria com a prostituição de rua, levando a que as mulheres que atacavam em público buscassem meios honestos de ganhar a vida ou, então, que se acolhessem às casas de toleradas. É que, pelos menos estas últimas, embora pudessem ser alvo de censura à luz da boa moral, sempre eram palco de uma vida “suportável”.
Como já é possível de constatar, o relatório do capitão Zuzarte apresenta-se como uma mina de informações. À sua volta, foram chamados a pronunciar-se outras figuras do Estado Novo, como o próprio António Ferro. Neste sentido, trata-se de um documento – mais um – com base no qual será possível abrir uma brecha na compreensão demasiado centrada nos domínios da alta política e das instâncias oficiais do salazarismo. Como outrora muitos inquisidores, Zuzarte também foi obrigado a dobrar-se de etnógrafo e, sem nunca sair do seu papel meio-policial, meio-reformador, recolheu uma informação única sobre Lisboa vista a partir do seu amplo mercado da prostituição.
O olhar parcial de Zuzarte, assumidamente exterior a esse mercado, não é diferente daquele que Eduardo Malta apresentara duas décadas antes, num livro com pretensões literárias, no qual descreveu a ida às putas de um grupo de jovens escritores e artistas (No Mundo dos Homens, 1937). Em ambos os casos, adopta-se, como ponto de vista, um único ângulo: o do reformador e zelador da ordem pública (no caso de Zuzarte); ou o da boémia dos jovens intelectuais (no livro de Malta). O olhar das prostitutas, os seus itinerários e os condicionalismos em que trabalhavam só muito marginalmente são referidos por Zuzarte – a respeito do ciclo da dívida e, logo, da escravização pelas patroas a que ficavam sujeitas as mulheres das casas de toleradas, bem como o modo, tão despudorado quanto desesperado, com que as prostitutas de rua atacavam os homens em público, nem que fosse por uma cerveja ou um café.
Acerca de uma etnografia que, de tão parcial e limitada, nunca chega a penetrar no mundo dos que sofrem ou são vítimas de abjectas injustiças, e se reduz a reconstituir a perspectiva de intermediários e testemunhas, Mario Vargas Llosa escreveu uma lúcida página (Historia secreta de um romance, trad. António José Massano, Dom Quixote, 2002, p. 65). É que também ele compreendeu que – pelo menos do ponto de vista literário – existiam limites para penetrar nos submundos dos desclassificados e do sofrimento. Estes tanto podiam ser os da Casa Verde ou das prostitutas de Piura, dos mundos mafiosos e extremamente violentos de exploração da borracha, ou o das irmãs da caridade católica que procuravam com boas intenções, nos confins da Amazónia peruana, educar as raparigas, mas acabavam apenas por favorecer o processo da sua destribalização, enviando-as sem querer para as cidades, como criadas de servir ou prostitutas.