Militares da coluna de Salgueiro Maia. "Esquecem-se que éramos rapazes e que arriscámos tudo"
É o encontro sagrado. O Contacto acompanhou o almoço do dia 25 de Abril dos militares da coluna de Salgueiro Maia. 49 anos depois, prestam homenagem ao homem que os guiou até à Liberdade e ao dia em que tudo mudou para o país.
Militares da coluna do Maia junto à estátua de homenagem ao capitão de Abril. © Créditos: Contacto
São 49 anos que separam os "rapazes dos tanques" (nome atribuído em livro pelo jornalista Adelino Gomes e o fotógrafo Alfredo Cunha) dos homens que se reúnem em Santarém, no dia 25 de Abril, para prestar homenagem ao capitão Salgueiro Maia, que os guiou no dia mais importante da democracia portuguesa.
O almoço anual é uma oportunidade de voltar a um tempo onde jovens entre os 21 e os 25 anos da Escola Prática da Cavalaria de Santarém (alguns ainda a terminar a tropa) aderiram ao Movimento das Forças Armadas (MFA) e seguiram o capitão Maia até Lisboa para tomar a capital.
A coluna do Maia decidiu, este ano, 'fugir' ao almoço institucional organizado pela Câmara Municipal e reunir-se num restaurante escalabitano para estar "mais à vontade", diz ao Contacto o ex-militar madeirense António Gonçalves, que faz parte da organização.
Veio da ilha da Madeira para encontrar os amigos e é um fervoroso defensor da memória do que viveram juntos. "São estes os homens que fizeram a revolução. A malta esquece-se que éramos rapazes e que arriscámos tudo", diz, antes de abraçar mais um camarada.
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Aí, entre camaradas e famílias, viram-se fotografias dos tempos do Regimento da Cavalaria, brindou-se aos que já partiram, anunciaram-se os planos para a comemoração dos 50 anos, em 2024, e recordaram-se muitas memórias do dia histórico.
A mais vezes repetida envolve o alferes Fernando Sottomayor, o único militar presente em Santarém que não fazia parte da coluna. Durante a conversa com o Contacto, muitos camaradas vêm abraçá-lo, dizendo sempre o mesmo: "Sem este homem não teria havido 25 de Abril! É um herói".
Poucas vezes destacado nos acontecimentos do cerco ao Terreiro do Paço, Fernando teve um papel chave no sucesso da revolta militar. Foi ele quem recebeu a ordem para disparar contra Salgueiro Maia. Recusou-se e disse aos seus homens: "Ninguém dispara sem eu dar a ordem". Foi preso e levado para o quartel, sendo considerado o último preso político do Estado Novo.
Blindado do Regimento de Cavalaria de Santarém no Terreiro do Paço durante a Revolução dos Cravos, Lisboa, 25 de Abril de 1974. © Créditos: LUSA
É saudado por todos pela forma como desafiou ordens superiores, mas não sente particular orgulho do que se seguiu ao 25 de Abril. "Logo no 26 comecei a perceber o que se ia passar". Sottomayor condena a politização que se fez da tomada de poder pelos militares. Viveu vários anos fora do país. Mas não abdica da celebração em Santarém com aqueles que já se tornaram seus amigos.
O banho de sangue que quase aconteceu
Quem também se recusou a acatar uma ordem foi José Manuel Sampaio, o homem que "se fingiu de surdo" a uma ordem do capitão Maia. José era rapaz novo a terminar a tropa quando começaram os rumores de que iria haver um movimento militar.
Na madrugada de 25, quando ouviu o discurso de Maia, já sabia que participaria das ações. Ainda por cima, lideradas "pelo Salgueiro Maia, que era respeitado por todos. Ele impunha respeito, tinha um caráter único, toda a gente o ouvia. Também vinha para os copos e divertia-se connosco, mas era um homem muito admirado. Não poderia ter sido outro a guiar os militares", diz ao Contacto.
Aliás, nenhum outro quis assumir o comando das operações em Lisboa, conta. "Vieram muitos oficiais de altas patentes juntar-se em Lisboa e o Maia dizia logo: 'Agora, é o tal e tal que dita as ordens', mas eles recusavam, não queriam assumir a responsabilidade e viam a influência do Maia nos acontecimentos. Ele tinha esse poder", lembra.
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Ainda assim, no momento de maior tensão no cerco ao Quartel do Carmo, onde estava refugiado Marcelo Caetano, valeram os momentos de hesitação de Sampaio para não se escalar a violência. "O Maia estava a ficar nervoso, estávamos ali há horas e eles não se rendiam".
Antes, já tinha sido disparada uma rajada de tiros das G-3 contra o edifício. E nada. Maia deu a ordem a Sampaio para colocar um blindado mais acima apontado ao quartel. Pelo megafone, deu a ordem de disparo "da máquina". "Eu disse aos que estavam comigo: não vou disparar. E não o fiz. Acho que foi o melhor, a atitude mais sensata, porque aí os outros teriam razões para abrir fogo e haveria um autêntico 'banho de sangue'".
O General António de Spínola acabaria por chegar ao Carmo, a pedido do chefe de governo Marcelo Caetano, para a transição dos poderes. Mais tarde, Maia perguntaria a Sampaio porque não disparou. "Naquela altura não havia telefones, ele falou pelo megafone e eu disse-lhe que não tinha ouvido. Nunca lhe contei a verdadeira razão".
Sampaio não chegou a ir para a guerra e faz questão de relembrar que "o 25 de Abril aconteceu por causa de África. Esquecem-se disso. Estávamos fartos, toda a gente estava farta, o governo estava podre, já se sentia que ia cair".
Acabou por deixar a vida militar, rumou ao norte e afastou-se. Só anos mais tarde soube do destino pós-abril de Maia. "É o que me deixa mais triste, um homem como aquele, a quem devemos tanto, ser tratado como foi: posto de lado. Como fomos capazes?"
A camaradagem
O furriel João Carmona relembra o "calor" durante o caminho para Lisboa naquela madrugada. Era a excitação, o empolgamento e algum medo também. "Eu só pensava: será que me vou safar desta?", conta.
Voltando atrás no tempo, lembra sobretudo a presença de Salgueiro Maia e como isso influenciou tudo o resto. "Era uma pessoa justa, íntegra, dura, disciplinadora, toda a gente gostava dele. Era a personificação de um camarada. E eu acho mesmo que um dos sucessos do 25 de Abril foi a camaradagem entre nós. Éramos como uma família na Escola Prática".
O rescaldo da revolução já não é descrito com tanto entusiasmo. "Pode interpretar-me como um reacionário - mas não sou. Gostei muito do 24, do 25, mas não gostei do 26 de Abril. Não era o que se estava à espera, quando os poderes e os partidos tomaram conta de tudo", relembra.
Hoje em dia, "não se fazia um 25 de Abril com o espírito atual, tinha que ser com o espírito de antes. Mas isto está tudo tão politizado", diz, deixando também a ressalva de que, em 1974, conquistaram "muita coisa, nunca nos podemos esquecer. E temos de lutar por isso".
"O que o meu marido mais queria era um país mais justo"
A prosa é interrompida pela chegada de Natércia Maia, viúva de Salgueiro, que se junta ao grupo para homenagear o marido. São vários os ex-camaradas que lhe pedem uma fotografia ou um abraço e lhe contam peripécias vividas com o capitão. Natércia está consciente do impacto do marido.
"Independentemente do 25 de Abril, se é possível, o Fernando era um homem diferente - com as suas qualidades e defeitos -, olhava a vida de outra forma e toda a gente sabia disso. Encontrava sempre soluções qualquer que fosse o problema", descreve.
Mas o que se seguiu ao 25 "não foi bonito". "Ele [Salgueiro] ficou muito magoado. Costumava dizer: 'tratam-me como se fosse um traidor à pátria, então julguem-me".
O que o Salgueiro iria achar do Portugal de hoje? Para Natércia, iria pensar o mesmo de há 50 anos. "O que ele queria, e lutou para isso, era um país mais justo".