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OpiniãoAndamos todos ao mesmo

Ir ao café ver a bola: retrato de um país 

Supersticiosos, presunçosos, maldizentes, cépticos, entendidos, enraivecidos, trocistas, muito esclarecidos, pouco esclarecidos, bastante sofredores. Somos tudo isto a ver futebol. No sábado encontramo-nos todos outra vez. 

(Imagem ilustrativa).

(Imagem ilustrativa). © Créditos: LUSA

O supersticioso concentrado. Está em transe. Numa espécie de hipnose. Desta vez veio ao café, não tinha jantar feito, mas quando não vai ao estádio até prefere ver em casa. Sozinho ou com amigos que percebem tanto como ele. Que falam a mesma linguagem. Irrita-se com os comentários de quem não sabe ver um jogo e admite que fica irracional quando as coisas não correm bem. Veste a t-shirt da sorte, usa o velho cachecol que atrai bons resultados, segura o porta-chaves dos jogos importantes. E nunca come peixe em dia de jogos importantes. Sabe que é superstição, mas mais vale não chamar o azar e não quer que a equipa perca porque ele pediu um Bacalhau à Brás.

O perito presunçoso. Sabe muito sobre futebol e está convencido que sabe mais do que os outros. Consome a imprensa desportiva toda e ainda passa os olhos nas primeiras páginas dos estrangeiros. Quase vibra mais com o mercado de transferências do que com as finais da Taça e gosta quando os amigos lhe pedem conselhos sobre jogos online. Passa boa parte dos tempo ao telemóvel porque apostou que haveria três golos antes do minuto 25, apostou que o segundo classificado do campeonato turco chegava ao intervalo a perder, apostou que as subidas da série B da Bélgica iam ficar todas adiadas para a última jornada.

O céptico irritante. Há sempre um. Que já sabia que a equipa não ia ganhar. Fosse empate ou fosse derrota, ele já sabia. Estava-se mesmo a ver. Não jogam nada. Estão a dormir. É uma vergonha. E custou aquele tipo quase 40 milhões. E este devia ter ido embora no mercado de inverno. E aquele já está a pensar nas férias. Ninguém quer ficar junto do céptico irritante e nem é preciso ser um optimista militante para ficar enervado com toda aquela conversa. Muitas vezes são velhos. Para podermos dizer “raio do velho que não se cala, já me está a enervar com aquela conversa”. Quando há golos a nosso favor, apetece esfregar-lhos na cara e dançar à frente dele.

O doente em negação. Detesta os adversários com a mesma força com que ama o clube e já acabou relações porque uma namorada tinha um irmão de outra equipa e porque outra tinha um pai com quem não dava para conversar sobre futebol. Como se fosse possível falar com ele sobre bola. Tem uma tatuagem com o ano de fundação do clube, um filho que é sócio desde o dia em que nasceu e maus fígados quando perde. Já fez parte da claque e só saiu porque a mulher insistiu. “Mas ela que nunca me obrigue a escolher entre ela e o clube.”

O ignorante feliz. Vai ver a o jogo porque gosta do clube mas olha para aquilo tudo como quem olha para a seleção: gosta-se porque sim, porque está no sangue, porque não se consegue não gostar, mas não entende muito. Não tem ódios de estimação pelos adversários, não sabe o nome dos jogadores, não fica deprimido se a equipa perde. Entende o fenómeno, mas não vive o fenómeno. Quando vê um jogador a aquecer, fica sempre espantado com a capacidade dos amigos em avançarem logo dois ou três nomes de possíveis saídas. “Como é que eles fazem isto?” Já lhe explicarem o que é um trinco e um libero, mas ele só lá foi ver a bola, não se rala com o resto. E nunca quis ser treinador de bancada.

Há mais retratos possíveis. Muitos mais. Dos adeptos fervorosos aos pacíficos simpatizantes, há um largo espectro de opções onde nos podemos encaixar e onde podemos pendurar os nossos amigos, os amigos dos amigos e as pessoas que vemos no café a ver a bola – até o nosso pai ou a nossa irmã. Os mesmos que pedem mais cervejas quando se celebra ou que deixam as imperiais morrer no copo enquanto as coisas correm mal.

Podemos ser uma coisa apenas, ou podemos ser várias em simultâneo. Podemos passar a ver a tudo de forma diferente se toda a vida fomos doentes do Benfica e nos apaixonamos por uma doente do FC Porto ou se, em vez disso, casamos com a filha de um dos No Name Boys,que pediu o Hino do Benfica em vez da marcha nupcial para entrar na igreja.

Há quem não perceba. Quem não consiga mesmo entender. E há quem não goste. E quem lamente. E há todos os outros. Que podem ser várias coisas. Que, dependendo da forma como lhes corre a vida e do álcool que já beberam, podem sofrer a dor terrível de um campeonato perdido ao minuto 94 ou podem respirar fundo e pensar que amanhã há mais vida, mas hoje ninguém fale com eles.

Sábado à tarde vão-se encontrar. Vamo-nos encontrar. Até os que estarão sozinhos, para não dar azar. Quando estiverem no café, levantem a cabeça e olhem com atenção. Todos estes aqui descritos estarão lá. E os outros todos também.