Há um mini-Brasil na Costa da Caparica
A comunidade brasileira da Costa de Caparica é hoje uma das maiores de Portugal. Às portas de Lisboa, com praia e sol, os brasileiros não resistiram à Caparica. Com as flutuações inerentes à situação da origem e do destino, a Caparica transformou-se lentamente num mini-Brasil. Na imigração brasileira, como nas outras, como na emigração portuguesa, nem tudo é mau, assim como nem tudo é bom. Na Caparica não é diferente.
© Créditos: Rodrigo Cabrita
Há coisas que não vale a pena questionar. Uma delas é seguramente a razão pela qual na meteorologia se dão nomes como Armand ou Beatrice às depressões. O vento espalha o lixo nas ruas abandonadas da Costa de Caparica, varrendo-o do lado do mar, que no domingo passado estava de pequena vaga, mas nos dias anteriores tinha feito das suas. Era perfeitamente visível onde tinha chegado, deixando um rasto salgado no paredão, cheio de domingueiros energéticos, maquilhando o abandono que caracteriza a Caparica quando o Verão não a socorre.
Uns a dar ao pedal dentro de equipamentos reflectores de lycra, a barafustar com os incautos que caminhavam na ciclovia, jovens casais abraçados, velhos casais a distância profiláctica, solitários com o olhar perdido no horizonte, cães a arrastar os donos, corpos enferrujados a tentar executar abdominais nos rectângulos de betão frente à praia, senhoras em traje de missa, com a mala a tiracolo e o penteado a desarmar ao vento, grupos de jovens com o boné virado para as traseiras a perseguir uma bola, carrinhas de caixa-aberta, ao melhor estilo "Marés Vivas", "em modo cruising" pelo paredão.
A polícia marítima a dar avisos àquela malta que se põe a pescar nos limites do pontão, barcos de pesca em terra, ATMs e máquinas de ginástica geriátrica às moscas, senhoras sentadas nas esplanadas "sur mer", com o chá a arrefecer e o polegar enfiado entre as páginas de um Chagas Freitas.
Mamãs cansadas, papás com ar de tédio a fumar cigarros electrónicos amparando carrinhos de bebé, joggers com a t-shirt pendurada nos calções e o android colado ao antebraço, driblando adolescentes em esforço para despistar os pais, com sucedâneos de earpods, em estado hipnótico de Tiktok, entre o devagar e o parado, como se estivessem noutro mundo, algures entre a praia e um cenário de hotéis em decadência, com as esplanadas a meio-gás e as ardósias a assinalar irresistíveis promoções, do cozinho à portuguesa à caipirinha.
Havia uma boa quantidade de selfie sticks por metro quadrado, embora não tanto como os artefactos do glorioso, um must da estética de fim-de-semana, ainda para mais no rescaldo de uma vitória no reduto do dragão, mais ainda quando se está no perímetro d'O Barbas, que já não é o que era nem onde era, mas é como se fosse uma assoalhada transtejo do estádio da Luz, tendo de um lado um parque de estacionamento desertificado e do outro a vista para a velha praia do CDS, não confundir com o partido, que está para o país como as antigas bolas da Nivea para as praias.
A Caparica no Verão é a ilusão. No resto do ano, só ali mora a realidade. Aos domingos, quando há sol, a cidade enche-se de novo, com a sua maquilhagem de Verão. © Créditos: Rodrigo Cabrita
Na Costa, o domingo é um dia atípico, um travesti social do que é a Costa quando é Verão. Noutro dia qualquer de época baixa, é como se o lugar fosse percorrido por uma tribo de fantasmas de toalha ao ombro e chinelo no pé, barrigas king-size ao léu, peitorais peludos e bronzeados de camionista que se cruzam com espectros de tanga, sunga, fio dental, bodybuilders depilados à lâmina, matronas em biquini em cima de alpercatas com formato 'slide & splash', novos, velhos, menos novos, menos velhos, mais e menos conservados, mais e menos esculpidos, uma amálgama de turistas, de visitantes da diáspora, toda uma estirpe da Grande Lisboa e uma imensidão dos que vão para fora cá dentro, desfilando os subsídios de férias e as tatuagens que sobreviveram à juventude ou à guerra colonial.
Malta do tunning com os fios de ouro a brilhar ao sol, PIB da nação, bandos de jovens a tirar radioagrafias às giraças em trajes menores, o ruído, a espuma nos copos da imperial, as criancinhas com penínsulas de gelado nas bochechas, os corpos a tostar em praias sobrelotadas, as bolas de Berlim, os parques de campismo a rebentar pelas costuras, os parques de estacionamento a privatizar os acessos.
Os bares de praia com a música no máximo, os toldos, os nadadores-salvadores, as zonas restrictas, os jogos de futebol à socapa, as bolas no lombo, as de Berlim, o peixinho na grelha, a areia a queimar a planta dos pés, a linha do velho Transpraia, as raquetas, os beijos, as leis da atracção e os castelos de areia, os barcos de pesca ao pôr-do-sol, a maré cheia, a maré vazia, os surfistas, os 'pedals', o kite-surf e o voleibol, os chapéus de sol a levantar voo, as gaivotas, os cães e os filhos dos outros, os puffs e o chill-out, as praias in, as praias pop, a territorialidade e os compartimentos sociais, as filas intermináveis de carros e de gente, preenchendo cada cantinho de veraneio que a Costa tem para oferecer.
Ler mais:Brasileiros do Luxemburgo estão a regressar à terra natal
O Verão, aqui, é a estação da ilusão. No resto do ano, é a realidade que a habita. É como se a multidão sazonal deixasse no deserto das suas ruas um plasma antropológico, multicultural, unido pelo famoso sol da Caparica. Fora de estação, as ruas ficam cheias de ninguém, deixando à evidência o que normalmente não se vê.
Cair na real
"Vivem nesta freguesia perto de 20 mil habitantes, dos quais cerca de 13 mil são eleitores", informa José Ricardo Martins, presidente da Junta de Freguesia da Costa de Caparica. Por junto, são os que ficam oficialmente quando se vai o Verão. No Verão, eles como que desaparecem na multidão. Aqui vive uma das maiores comunidades brasileiras em Portugal. Há praia, há sol e oportunidades que o Brasil, seja qual for a circunstância da sua procedência, não lhes deu. Sem a comunidade brasileira, reconhece o presidente, a Costa de Caparica estaria ainda mais deserta do que está. Ou, pelo menos, do que parece. "Por estranho, um dos problemas da Caparica tem a ver com a falta de habitações".
Noutro dia, ninguém diria, mas José Martins afirma-o, com todas as letras: "Temos aqui um grande problema, que é para os cidadãos brasileiros, como é para todos, que é o problema habitacional. Não é da Costa de Caparica, é da área metropolitana de Lisboa. Não só não temos habitação, como é 'pornográfico' o preço de arrendamento na Costa de Caparica. Uma pessoa que ganhe um ordenado médio – a rondar 1200, 1300 euros -, não consegue arrendar um T1 por 750 euros, que é o preço que pedem aqui. Com a escalada de preços da água, da luz e do gás, dos combustíveis, dos bens alimentares, são cada vez mais os que não conseguem suportar o custo de vida. Esta é a que eu identifico como a maior chaga social do país e da comunidade na qual eu estou inserido. Há muitas pessoas em situação de despejo, em situação precária".
No centro da Caparica, há imensas lojas de produtos e restaurantes brasileiros. Neste, a especialidade é o açaí. © Créditos: Rodrigo Cabrita
A comunidade da Costa de Caparica, elevada a cidade em Dezembro de 2004, é uma congregação de muitas comunidades imigrantes, sendo a brasileira a mais significativa. O presidente não sabe precisar os números, mas sabe da dimensão e da importância que esta comunidade, assim como outras, representam hoje para esta freguesia, que em tempos idos tinha na pesca artesanal e na agricultura de subsistência, feita em pequenas hortas dunares, as suas actividades principais, muito antes de ser uma atracção turística.
Os números da imigração são sempre complexos, sempre voláteis. Têm muitas variáveis e nem todas de carácter oficial. Toda a gente sabe disso e o presidente também. Dir-se-ia, não oficialmente, que o número de cidadãos brasileiros que se fixaram na Costa de Caparica, com todas as flutuações possíveis e imaginárias, rondará os seis mil, acrescidos de um número impreciso, ainda assim, calcula-se, inferior a um milhar de pessoas em situação documental precária, digamos assim. Este cálculo já era difícil em circunstâncias normais, "quanto mais após dois longos anos de pandemia".
Para além disto, há o determinismo geopolítico, que faz do mar um imenso cobertor transatlântico. Cobrindo-se a cabeça, destapam-se os pés. Traduzindo: a comunidade brasileira na Costa de Caparica flutua consoante a situação económica e social da origem e do destino. O grande crescimento da comunidade brasileira na Caparica ocorreu nos anos antecedentes a 2012, ano que marca uma viragem de um propalado ciclo de crescimento em Portugal para um invariável ciclo de crise, ocorrendo no Brasil um ciclo de crescimento quase inaudito na sua democracia.
Nessa altura, emigrava-se para o Brasil e os brasileiros na diáspora regressavam em grande número. A comunidade brasileira da Caparica diminuiu nesse período, voltando a crescer significativamente desde 2017, coincidindo com a queda vertiginosa do Brasil para um poço que parece sem fundo, onde a classe média brasileira imergiu para se juntar à imensa maioria dos pobres. Com Lula da Silva atrás de grades, Dilma Rousseff deposta à lei do 'impeachment', o sinistro mandato de Michel Temer mais não foi do que uma amostra do que estava para vir. Jair Bolsonaro foi eleito a 28 de Outubro de 2018. Na Costa de Caparica a comunidade brasileira começou de novo a crescer, algo que só a pandemia (especialmente mortífera no Brasil) travou.
Agora como antes, "a grande percentagem dos imigrantes brasileiros são pessoas jovens e empreendedoras, no pequeno comércio, bens e serviços. A nossa principal dinâmica são os bens e serviços, ligados ao turismo". Em muitos casos, um eufemismo de sazonal e incerto. Apesar destas oscilações e das inerentes situações de precariedade, "a maioria, sobretudo aqueles que vieram antes de 2012, são já cidadãos portugueses. Ou seja, têm dupla nacionalidade. Grande parte deles já estão recenseados cá". Quantos serão, actualmente? "São muitos, isso sei".
Na Costa, há referências do Brasil a cada esquina. O rei Pelé não podia faltar. © Créditos: Rodrigo Cabrita
Por uma questão de sobrevivência populacional, a Costa de Caparica apurou os seus mecanismos de integração. "A integração é relativamente fácil. A Comissão Social de Freguesia, que funciona desde 2016, funciona muito no sentido da integração de todas as comunidades. O Centro Paroquial de Nossa Senhora da Conceição é o nosso 'braço armado', a mola real dessa integração, seja nas lacunas, nas necessidades, quer na orientação desses cidadãos. Nós aqui não oferecemos o peixe, damos a cana para que se aprenda a pescar". A par da brasileira, outras comunidades aqui se radicaram. "Há muitos cidadãos do Bangladesh, da Índia e do Paquistão, da Síria e, mais recentemente, da Ucrânia", explica José Martins. "Mas a maior comunidade da Caparica é, sem dúvida, a brasileira. E tem uma característica: ajudam-se muito uns aos outros".
Também não vale a pena tapar o sol com a peneira. "Temos aqui alguns problemas sociais que se fizeram notar, primeiro por causa da pandemia, agora por causa da crise. Neste período, apoiámos 6.517 em situação muito difícil. Mas também é verdade que uma larga percentagem destas pessoas não é brasileira. E nem sequer imigrante".
Um Brasil a cada esquina
Por entre ventos e marés, um pouco por toda a Costa de Caparica, seja no centro ou ao longo das sua linha de praia, é evidente a aculturação brasileira, óbvia a sua presença em todos os sectores, nas mais diferentes actividades. O amarelo canarinho e o azul tornaram-se omnipresentes. Nas mercearias há mandioca, mococa, canjica, rapadurinha, chimarrão gaúcho, farofa, fubá, massa para tapioca, pequi. Quando o tempo o permite, há forrós na Feirinha, junto aos Bombeiros da Caparica, ginásios de "malhação", aulas de capoeira.
No Verão, todas as sextas-feiras são dias de festa no Bar Eléctrico, junto à praia, com música e alegria ao vivo e a cores, como o brasileiro gosta. Há campeões de jiu-jitsu à porta dos bares, advogados pendurados em andaimes, engenheiras a servir à mesa. Há de tudo, agricultores, pedreiros, pintores, pescadores, mecânicos, electricistas, uma quantidade de fitness huts e de personal trainers, uma legião de moto boys.
A maior parte dos brasileiros da Caparica são de Minas Gerais, como é o caso de Lorena Machado, que tem 24 anos, casou com 17 e vive na Costa de Caparica há cinco. Aqui ela quer ficar para sempre. © Créditos: Rodrigo Cabrita
Há tempos, quando a comunidade brasileira crescia a olhos vistos, ao nascer do dia acumulavam-se os "chapas" na praça central da Costa de Caparica. Os "chapas" são os recém-chegados, mão-de-obra para o que der e vier, a galera do biscate. Isso já não acontece. Os brasileiros, como toda a gente, não são excepção à regra da crise. Há empresários e empregados, todos a tentar sobreviver. Há histórias de sucesso, histórias de feijão com arroz, e histórias tristes, de desespero, de clandestinidade e fome, de exploração. Nada que muitos portugueses não conheçam num desses admiráveis mundos novos para onde partiram, carregados apenas com a saudade, em busca de vida melhor.
A maioria dos brasileiros da Caparica é proveniente do estado de Minas Gerais, como é o exemplo da "rainha das unhas". A rainha das unhas cumpre esta semana 24 anos, sendo que está há cinco em Portugal e é casada há seis. Lorena Machado é de Belo Horizonte (capital de Minas Gerais). "Casei com 17 anos, lá no Brasil. Os meus pais tiveram de assinar". Lá no Brasil, um amigo emigrado na Costa de Caparica falhou-lhes deste lugar junto ao mar, com as suas ondas de oportunidade. E lá veio o jovem casal, com a proverbial mão à frente e a outra atrás. A vida lá era relativamente estável. O marido trabalhava num banco e ela estava prestes a "arrumar" um emprego. A decisão de mudar assustou-os um pouco, mas tanto como se assustaram à chegada.
De repente, a sua vida piorou. O marido teve de ir para a restauração. "Foi um bocado puxado". Ela especializou-se em estética. "De início trabalhei num salão de beleza, onde aprendi muito". Daí ao sonho de abrir o seu próprio espaço só não foi um ápice porque a pandemia não deixou. O seu negócio fez um ano em Agosto. "Graças a Deus, está a correr tudo muito bem". Se continuar assim, "para o ano já tenho o meu Cartão de Cidadão". Uma certeza, talvez própria da idade, a Lorena tem: "Já não saio daqui. Eu amo a Costa".
Theo Pedrada é um dos tatuadores mais conceituados de Portugal e um dos residentes mais antigos da Caparica, onde vive há três décadas. Faz viagens mensais ao Luxemburgo, para tatuar. © Créditos: Rodrigo Cabrita
Theo "Pedrada" é um dos residentes mais antigos da Costa da Caparica, onde vive há três décadas, um dos tatuadores mais conceituados de Portugal. É natural de Espírito Santo, um dos estados mais pequenos do Brasil. Tem 48 anos. Já passou mais tempo em Portugal do que no Brasil. "A minha mãe vivia no Canadá fazia muitos anos".
Ele vivia no Brasil. Mas, quando fez 18 anos, a mãe, que já tinha emigrado para Portugal, desafiou-a fazer o mesmo. Ele, depois de pensar muito no assunto, veio ao seu encontro. Foi uma lógica de 'swell' a que o trouxe a Portugal e a que o tornou residente da Costa de Caparica. "Na altura, eu fazia surf". Morou em Lisboa seis meses, mas assim que pôde mudou-se para a Caparica, onde cresceram as suas raízes.
Nessa altura, já viviam alguns brasileiros na Costa, mas nada que se compare à comunidade que aqui se formou. Na sua perspectiva, também alguns aspectos migratórios mudaram. "Dantes as pessoas vinham para trabalhar, para fazer o seu pé de meia, para melhorar a sua vida. Hoje vêm por causa da criminalidade e da situação em que se encontra o Brasil. Vem muita gente que tem boa vida e trabalho estável no Brasil, mas conseguem trabalhar de cá. Mudam-se porque procuram um lugar mais calmo e mais seguro para viver". Parecendo que não, "faz toda a diferença".
Theo Pedrada começou a tatuar por brincadeira há 25 anos. Trabalhou nas obras, trabalhou nas pescas e depois trabalhou na noite, tornando-se DJ. Algo que se tornou incompatível com a saúde e com a família. Foi nesse momento que a "música virou hobby e a tatuagem profissão". Foi a tatuagem que lhe permitir expandir o seu negócio, que hoje está situado numa das casas mais bonitas e bem recuperadas do centro da Caparica, defronte para o mar.
Em cima, tem o atelier de tatuagem, onde recebe clientes de toda a parte do país e do mundo, que a sua fama já chegou longe. Em baixo, um bar. As tatuagens obrigam-no a viajar todos os meses, para a Suíça e para o Luxemburgo, onde é uma espécie de tatuador convidado durante uma semana. Theo Pedrada tem duas filhas, uma de 12, outra de 24 anos, que nasceram em Portugal e, tal como ele, são portuguesas. O Brasil ele nunca esquece. Mas ultimamente não gosta do que vê.
"O sorriso do brasileiro é sempre para o alto. O português ri diferente. Esconde o ouro", diz Carla Silva, que é designer de formação, modista e agente imobiliária. Já lá vai o tempo em que também foi faxina. É da grande São Paulo, orgulhosamente do subúrbio, de Carapicuíba, que foi uma tribo que se fez cidade. "Em São Paulo morei em três lugares diferentes e nunca conheci um vizinho". Essa foi só uma das razões que um dia a fizeram emigrante.
Carla Silva era designer no Brasil. Na Costa da Caparica é modista. Por causa da violência e da situação social no Brasil, veio para Portugal com uma filha pequena. Não está arrependida. © Créditos: Rodrigo Cabrita
O seu debute, porém, foi por razões do coração. "Vim para Portugal a primeira vez em 2007, devido a um relacionamento que eu tinha na época com um português que conheci em São Paulo". Veio para fugir do Carnaval brasileiro, que ela tinha o hábito de ir 'pular no Carnaval' do Maranhão, e acabou por pular numa das ocasiões mais deprimentes do ano civil português: precisamente o Carnaval. "Veja bem: fui ao Carnaval junto ao Mosteiro de Alcobaça. Tinham lá umas tendas a tocar Ivete Sangalo e tal. Um frio do cão, uma coisa horrível". Uma experiência, a todos os títulos, "arrepiante".
Em Lisboa, onde ficou um ano, à excepção de um estágio de restauro no Museu do Traje, as coisas não correram mal nem bem. Deu, pelo menos, para conhecer uma das paixões da sua vida: a Costa de Caparica. "Vinha para cá de férias, para a praia. Adorei este lugar". O lugar que era Portugal estava outra vez em maré de crise, as oportunidades escasseavam. Em 2008, Carla Silva, formada em moda, com 20 anos de trabalho como designer, regressou ao Brasil, que caminhava para uma fase de crescimento e de maior estabilidade social. Mas o tempo passou. E o ciclo mudou. Em 2014, Carla casou. Aos 38 anos teve a sua filha. O seu casamento deu em "desquite", mas a vida seguiu. Não era a sua, era a situação do Brasil que a preocupava. Para resumir uma história longa: "Cenário político complicado, violência, violência contra a mulher. Entrei naquele vórtex maluco da paranóia da violência".
Ler mais:O Luxemburgo tropical que existe no Brasil
Um dia, estava atracada no típico mar de trânsito da avenida do Estado, uma das mais importantes artérias de São Paulo, sob um calor abrasador. "Estava com a minha filha, na cadeirinha atrás. Tinha um carro pequenininho, um Fiat Uno, todo preto, com vidro preto, para ninguém ver. Uma mulher com um filho corre perigo, porque os bandidos escolhem exactamente esse perfil para assaltar porque está frágil. O trânsito todo parado, aquele calor do inferno, eu vi um assalto pelo retrovisor. Uns meninos a enrolar a camiseta no cotovelo para partir o vidro. Eles assaltavam no trânsito, como um arrastão na estrada. Cheguei na minha mãe e disse, eu vou embora daqui. Estou a ficar em pânico".
A sua mente só tinha um destino: a Costa de Caparica. Ainda assim, "foi um projecto de oito meses. Organizei tudo, não vim à sorte". Contratou um advogado para resolver as questões de emigração, alugou uma casa do outro lado do Atlântico. "Queria morar na praia. Sabia que a Caparica tinha muitos brasileiros, ia sentir-me mais à vontade. Eu vim para cá justamente para fugir da violência. Não queria criar a minha filha naquele caos". E, no entanto, "eu adoro São Paulo. A este fenómeno nós chamamos paranóia delirante".
Vendeu tudo o que tinha, e veio para Portugal com a sua filha, então com um ano e onze meses. Aguardavam-na dificuldades inerentes à velha equação do emigrante: sem documentos não havia trabalho, sem trabalho não havia documentos. "Sobrava para a gente a faxina e a restauração. Com uma filha nos braços, tive que me virar". A primeira sensação que teve, que ainda persiste, é de "que tudo parece pequeno e antigo".
A segunda foi a sensação térmica, que não é propriamente um gosto adquirido. Depois, aquela coisa que os portugueses teimam em dizer que não existe: "Nem vou falar do preconceito, da xenofobia, da misoginia, que eu senti na pele. Imagina uma mulher sozinha, com um bebé e preta..." Talvez seja algo que esteja impregnado até à medula. Ou que prevaleça um certo desconhecimento transformado em preconceito sobre o que é o Brasil real, com o espelho nas notícias e nas telenovelas. "A sexualização da mulher brasileira, muito por causa do Carnaval. E a glamourização da riqueza, sobretudo do Rio de Janeiro. E depois tem a violência e a pobreza, que grassa nos noticiários da Record". Adiante: "adorei a comida portuguesa". E, já agora, "nunca encontrei tanta Carla na minha vida".
Vista de longe, quando se está em época baixa, a Caparica parece uma cidade-fantasma com um imenso mar de cenário. © Créditos: Rodrigo Cabrita
O projecto de abrir o seu atelier teve de esperar. Carla transformou-se numa agente imobiliária ao serviço da sobrevivência. "Vendi casas com a minha filha ao colo. Ela cresceu dentro de uma agência imobiliária". Acumulava este trabalho, que não tem dia nem hora, com as limpezas, que lhe davam um dinheiro-extra. A sua vida só começou a estabilizar quando a Paroquial de Nossa Senhora da Conceição encontrou vaga para a sua filha. Em 2018 deixou a faxina para cumprir o seu sonho.
Abriu um pequeno atelier num centro comercial da Caparica, mesmo junto à 'boulevard' das praias. O trabalho no imobiliário, "graças a Deus", nunca deixou. Mesmo quando se instalou a pandemia, não se deixaram de vender casas. Nessa altura, ela passou a dar aulas de costura online. O seu atelier retoma agora o fôlego, assim como a comunidade brasileira da Costa de Caparica. "De uns dois anos para cá está a aumentar a crescer de novo". Pena que este crescimento traduza exactamente o inverso do Brasil. "Estive lá em Abril passado e fiquei chocada". Carla procurou, procurou e não encontrou vestígios da classe média. "Agora, ou você é pobre ou você é rico". O mais estranho é "que dentro da cabeça da classe média que caiu na pobreza as coisas não mudaram. Dói no bolso, mas na mente está igual. Assisti a isto dentro da minha família".
Como avalia o Brasil de hoje? "Ai Jesus amado. O Brasil entrou num retrocesso de mais de 20 anos. Eu venho do subúrbio e da pobreza, mas hoje vejo o povo em estado de miséria. A minha mãe tem 74 anos e quer sair do Brasil. É muito triste quando uma pessoa dessa idade quer sair do seu canto".
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)