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OpiniãoPolítica

Essa empresa chamada Governo

Cada vez mais os partidos das alternâncias governativas servem apenas os objectivos das multinacionais "donas disto tudo".

Certamente já deverão ter reparado, quando se acompanham eleições na América Latina, na profusão de partidos políticos que, aparentemente, rompem com o binarismo “conservador” vs “liberal” (republicano vs democrata estilo EUA, “conservador” e “trabalhista” estilo inglês, “la gauche” vs “la droite”, versão francesa).

Este binarismo é herdeiro das democracias europeias ditas burguesas – no caso da América Latina e dos EUA na esteira do republicanismo francês. E ele só existe devido à ilusão de alternativa na alternância que garante a manutenção do status quo na gestão da coisa pública, no acesso aos recursos, aos capitais, às terras, à riqueza. Um acordo tácito entre forças análogas que se alternam no poder desde as independências no século XIX.

Acontece, por exemplo, quando um candidato que militou num determinado partido deixa de ter base de apoio e então cria outro partido mais ou menos igual ou, se tem ambição de ser líder, junta-se a um movimento multipartidário, de partidos “amigos” (note-se: qualquer oligarca ou terratenente na América Latina pode criar um partido). Por exemplo, o presidente colombiano e prémio Nobel da Paz, Juan Manuel Santos, de quem talvez toda a gente se lembre como um moderado de centro, progressista, até, em certas matérias, foi ministro da Defesa do presidente Álvaro Uribe – para quem não se recorda, o pai moral da violência paramilitar dos últimos 20 anos na Colômbia. Ambos estiveram no Partido Liberal, criado nos anos 70, que até pertence à Internacional Socialista.

Parece contraditório mas não é. Se olharmos para o percurso político de Jair Bolsonaro, é mais ou menos isto: Partido Democrata Cristão (1988-93); Partido Progressista (1993); Partido Progressista Reformador (1993-95); Partido Progressista (1995-2003); Partido Trabalhista Brasileiro (2003-05); Democratas (2005); Partido Progressista (2005-16); Partido Social Cristão (2016-18); Partido Social Liberal (2018-19); Independente (2019-presente). Sem dúvida, “progressista” é a palavra que não contávamos ver mais vezes associada ao percurso político de Bolsonaro (democrata e trabalhista também não).

A palavra-chave é “aparentemente”: só aparentemente estes partidos rompem com o binarismo, porque no fundo eles são extensões, mutações, reorganizações do modo como o poder político serve o capital ou, dito de outra forma, como o capital se organiza para garantir, através dos seus “comandos” e “executores”, a gestão dos recursos.

Parece que estas coisas só acontecem lá na América Latina – um continente em constante convulsão, em que a força das bases populares por vezes parece romper esta ordem vigente (desde o século XIX, insisto), seja através de uma eleição mais encostada à esquerda (Lula, Boric, Petro), seja do apoio ao cruzamento aparentemente contraditório entre conservadorismo e progressismo (Castillo, López Obrador, até Ortega). Digo “parecem” porque quem gere os recursos tem muita força, e essa força, tantas vezes, como estamos agora a ver no Peru, traduz-se em tanques nas ruas e repressão indiscriminada sobre massas populares, neste caso, indígenas.

Mas isto não acontece só na América Latina porque “eles” ainda estão a “aprender” sobre a democracia. Pelo contrário, acontece também na Europa das chamadas “democracias consolidadas”. Precisamente porque é este o jogo das nossas democracias.

O mandato de Liz Truss como primeira-ministra do Reino Unido não foi curto porque ela foi “incompetente”, ou porque decidiu dar as maiores borlas fiscais aos ultra ricos em 50 anos, ou até porque decretou “despesa pública descontrolada” (como disse a Iniciativa Liberal, comparando-a a Sócrates), quando decidiu dar uns trocos em cheques para os cidadãos pagarem a conta da luz e do gás.

O orçamento aprovado pelo ministro das Finanças de Truss, Kwasi Kwarteng, levou ao maior colapso da libra esterlina em 37 anos. Kwarteng foi analista financeiro da JPMorgan Chase e do fundo de investimento Odey Asset Management, que aposta na queda da libra e das obrigações do tesouro britânicas nos mercados de capitais.

Horas após o anúncio do orçamento, Kwarteng esteve numa festa-champanhe com líderes de fundos de investimento, onde fez, disse fonte anónima ao Financial Times, “um briefing pós-orçamento para pessoas que provavelmente investirão no Reino Unido”. O Financial Times e o Times revelaram que Crispin Odey, o milionário líder da Odey Asset, ex-chefe de Kwarteng e também financiador dos Tories, beneficiou da queda da libra, e que os seus fundos estiveram 145% em alta em 2022. Ao Financial Times, Odey disse que as suas apostas contra obrigações do tesouro eram uma “galinha dos ovos de ouro”, mas que não tinha privilégios devido à proximidade com Kwarteng: “Existe uma ideia meia tola de que há alguém por trás de cada reviravolta.” “Tudo o que faço é ouvir rumores de vez em quando”, disse.

Kwarteng esteve apenas cinco semanas no cargo de ministro das Finanças. Mas cumpriu a sua função: garantir que os que ele serve se pudessem servir do colapso da libra e da subida dos juros pagos pelos trabalhadores britânicos.

Truss, Kwarteng, Boris Johnson ou Rishi Sunak são, de facto, do mesmo partido, Conservador, mas isto é porque não precisam de criar outro(s). Não haverá tantas disputas e tensões na gestão dos interesses do capital britânico como ainda há nos países latino-americanos. Até ver, claro. É por isso que se diz que o Reino Unido é uma “democracia consolidada”. Portugal também.

Assim, os militantes dos partidos da alternância servem os interesses das consultoras, dos financiadores milionários, das multinacionais para onde trabalham antes de ser eleitos. Depois, trabalham durante algum tempo para essa empresa chamada Governo. Para voltar a entrar na dança entre conselhos de administração, a alta finança, escritórios de advogados. Mas, como os Bolsonaros e Uribes, não passam de agentes ao serviço de oligarcas e terratenentes.

(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)

Raquel Ribeiro, entre a Europa e a América Latina

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e no Reino Unido. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. Deu aulas em Oxford e Edimburgo. É investigadora do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova da Lisboa.