Do "serial killer pedófilo" ao "representante de Deus". Quem são os padres culpados?
Abusaram sexualmente de quase cinco mil crianças em Portugal. Os relatos de quem foi vítima destes abusos.
© Créditos: AFP
Os testemunhos recebidos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal revelam que a esmagadora maioria dos agressores sexuais das vítimas menores eram homens (97%) e padres (77%) de internatos religiosos, seminários e paróquias, autores de abusos recorrentes cometidos nas últimas sete décadas.
Esta comissão apresentou o seu relatório final, na segunda-feira, com base em 512 testemunhos validados e a investigação realizada aponta que mais de 4.800 crianças tenham sofrido abusos sexuais, desde 1950, até 2022, no seio da igreja católica em Portugal.
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Um número “absolutamente mínimo”, como alertou o coordenador da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, frisando que esta investigação deve continuar, com uma nova comissão. ~
Mais de 100 padres abusadores no ativo
Ao longo da investigação que decorreu no ano passado, foram enviados 25 casos para o Ministério Público para serem investigados, por ainda não terem prescrito.
Pedro Strecht acredita que haverá ainda mais de 100 padres abusadores no ativo, como apontou numa entrevista à SIC Notícias e que estes devem ser afastados pois constituem “um perigo real”.
Das denúncias enviadas a esta comissão sobre os abusos que sofreram em crianças (57,2% homens e 42,2% mulheres, agora com uma média de idades de 52 anos) na esmagadora maioria os abusadores eram padres de paróquias ou professores padres nos seminários, colégios religiosos com internato ou instituições de acolhimento, e em muitos casos conhecidos das vítimas e das suas famílias (47%), frequentando até a sua casa.
Era a “vontade de Deus”
Sacerdotes, com idades entre os 31 anos e 50 anos à data dos factos, merecedores do respeito pelas crianças e familiares e que surpreenderam as vítimas com o assédio sexual, usando muitas vezes a sua função religiosa para perpetuar os abusos, tidos como “desígnios divinos”, “a vontade de Deus”.
Era representante de Deus, por isso, não era pecado
“Sou o representante de Deus, por isso não é pecado”, “Anda cá moça, estás ao meu serviço. Estás ao serviço de Deus” e “Faz o que Deus manda” diziam os padres às crianças para justificar os abusos sexuais. Prometiam que os atos teriam um efeito benéfico, servindo para “purificar”, para “tirar os pecados” ou “tirar o diabo do corpo”, e também para melhorar a vida da vítima, escrevem os autores do relatório.
Em geral, o primeiro abuso ocorreu por volta dos 12 anos das vítimas e, na maioria dos casos, continuou a repetir-se. Nos relatos feitos à comissão independente, a maioria das testemunhas (58%) indica que, na altura, tinha conhecimento de que não era a única vítima sexual, que também outras crianças e adolescentes foram abusadas.
Após os abusos, “era-lhes expressamente pedido ou dada a ordem de ‘’segredo’”, pelos agressores.
A comissão independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, durante a apresentação do relatório final, dia 13 de fevereiro, em Lisboa. © Créditos: AFP
Seminários e internatos
A maioria das agressões sexuais foram cometidas pelos padres nos seminários, colégios e internatos religiosos. O espaço da igreja foi o segundo local mais comum, com muitos dos abusos a serem cometidos no confessionário e sacristia, ou na casa paroquial. Os agrupamentos de escuteiros foram outros locais relatados em vários testemunhos, entre eles o de M..
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M. foi abusado por um padre diocesano e dirigente dos escuteiros. “Esse serial killer pedófilo abusou de… pelo menos 100 [crianças]. Mais até, imaginem os anos que ele andou nisto até fugir para vendedor”, refere no testemunho enviado à comissão de estudo e publicado no relatório final.
M. conheceu este padre, que teria na altura cerca de 30-40 anos, na igreja paroquial e no agrupamento de escuteiros, que frequentava, tendo o sacerdote agredido sexualmente M. regularmente durante um ano e meio.
“Horrível. Esse homem de nome Padre X chegava-se a todos os rapazes escuteiros da zona e naquela época (anos 90). Quantos terão sido? Do meu agrupamento, penso que fomos todos [abusados] sem exceção pois mais tarde vários entre nós falámos disso, embora cheios de dificuldade. Se eu disse 50 é pouco: 100 é de certeza [o número] mais próximo até porque depois o psicopata foi para outro agrupamento mais perto de Lisboa”, recordou M..
Abria a portinha (do confessionário) e aproveitava-se
"Sofri em silêncio… Nunca contei nada, fechei a sete chaves”
No telefonema que fez para a comissão de estudo, para dar o seu testemunho, F. chorou ao relatar que fora abusada, aos 10 anos, por um padre. Tudo acontecia no confessionário da igreja quando F. entrava para se confessar. O padre com cerca de 40/50 anos na altura, “abria a portinha e naquele espaço aproveitava-se”, lê-se no relatório final da comissão que apresenta vários testemunhos, todos sob anonimato. F. nunca contou a ninguém, nem ao marido, e já só em adulta desabafou com uma amiga. “É triste pensar que as pessoas sérias se aproveitavam de um ser indefeso. Sofri em silêncio… Nunca contei nada, fechei a sete chaves”, confessou, no telefonema.
O interior da igreja foi também o local onde D. foi abusado com “regularidade bem definida” ao longo de dois anos, por um padre. Tinha, na altura, nove anos quando o calvário começou, acontecendo “todos os meses do ano menos julho e agosto, sábado às 15h”, como relatou no testemunho.
O abuso terminaria quando D. “regressa a casa dos pais, emigrantes num país europeu”. O impacto dos abusos na sua vida foi “devastador”: “Nunca consegui ter uma relação íntima, não aceito ser tocado, impossível, vejo o sexo como uma coisa suja, não suporto ser beijado e não gosto de beijar ninguém”.
A mãe do padre disse-lhe a ele, na minha frente, que ele nunca mais me tocasse, ou ela iria matá-lo com as suas próprias mãos
No carro do padre, em sua casa e na sacristia da igreja, S., então com 10 anos, era vítima às mãos do padre, de cerca de 50 anos, em “todas as oportunidades” que o pároco encontrava. As agressões sexuais foram recorrentes durante um ano e deste abuso resultou uma “gravidez que foi interrompida”.
Foi a mãe do padre que descobriu tudo, conta S., hoje emigrante, no seu testemunho à comissão. “A mãe do padre disse-lhe a ele, na minha frente, que ele nunca mais me tocasse, ou ela iria matá-lo com as suas próprias mãos”, recorda.
“Sofri um recalcamento emocional e sexual"
No caso de G., os abusos sexuais do padre eram acompanhados de promessas de entrada da vítima no seminário e, também, de ofertas para ele e para a sua família. Dizia a G., então com 15 anos, que o padre justificava os abusos como "a forma de estarmos em união com o divino”. As agressões deste pároco, que teria uns 35 anos, ocorriam na casa paroquial e no seu carro, justificando-as também com o “celibato dos padres na igreja”.
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“O padre dirigia-se a casa dos meus pais e levava-me para acolitar na paróquia dele, que era vizinha da minha, e levava-me também a passear no carro”. No testemunho, G. recordou que o sacerdote lhe dizia que ficariam "sempre juntos" o "ajudaria a entrar no seminário e a mudar as mentalidades do cristianismo e que esse era o sinal da minha vocação”.
O padre pagava-lhe "livros, roupas, pulseiras, passeios e férias" a até chegou a oferecer mobílias aos pais de G.. O trauma foi grande e longo, como para muitas outras vítimas. “Sofri um recalcamento emocional e sexual e uma depressão grave aos 25 anos”, disse G..
Testemunhos de emigrantes
Muitas das vítimas viveram em silêncio a dor e sofrimento dos abusos sofridos em criança no seio da igreja, com 48% das vítimas que deram o seu testemunho à comissão a revelarem que tinha sido a primeira vez que relatavam estas agressões. Os testemunhos foram dados maioritariamente por pessoas residentes em Portugal (88%), mas também por portugueses emigrados. Entre estas vítimas, 20% tem atualmente menos de 40 anos.
No geral, os abusadores são pessoas que costumam revelar "características essencialmente autocentradas com traços de facilidade de relação, mas também de sedução e fácil manipulação do outro”, escrevem os autores do relatório.
A maioria dos agressores adultos sofrem de uma perturbação grave de personalidade, sendo também comuns vários fatores que podem desencadear a propensão para o abuso, como o alcoolismo, o consumo e a dependência de drogas, ou história um anterior abuso sexual na infância, entre outros.
Liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a comissão independente foi constituída pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pelo antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado Álvaro Laborinho Lúcio, pela socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, pela assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos.
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A comissão foi criada a pedido da conferência Episcopal Portuguesa mas a sua investigação foi feita com independência. Ao longo de 2022, a investigação trouxe a público os abusos sexuais na igreja católica, uma realidade desde sempre escondida e sobre a qual havia um desconhecimento total. Este estudo, permite traçar, pela primeira vez, um retrato destes abusos, das vítimas e agressores.