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Demolições em Portugal. "Partiram tudo... Meu Deus, não tenho nada"

A Câmara Municipal de Loures demoliu as habitações de Isilda e de outras sete famílias cabo-verdianas, que viviam de forma ilegal, no Bairro do Talude. Agora, estão por sua conta.

© Créditos: Ana Patrícia Cardoso

É a primeira vez que Isilda Carvalho vê o resultado da demolição da sua casa, no Bairro do Talude Militar, Catujal, em Loures. O Contacto acompanhou-a no retorno difícil ao lugar que construiu para viver cerca de sete anos com os filhos.

Sobrou muito pouco. Entre móveis destruídos, um colchão virado, a televisão partida a um canto ou carta dispersas do Pokémon, que pertenciam ao filho Kevin, 10 anos, a cabo-verdiana vai perdendo a esperança em resgatar alguma coisa. "Partiram tudo... frigorífico, tudo. Olha tudo partido, meu deus, não tenho nada", diz a mãe que vem procurar o ténis favorito do mais novo. Em vão.

Revira alguns pedaços de madeira. "Olha o casaco da minha filha, vou levar... comprei bem caro", lembra, enquanto segura uma das poucas peças que resistiram à força das retroescavadoras que por aqui passaram no passado dia sei de março.

Por estar a trabalhar no dia em que a equipa da Câmara Municipal de Loures veio para demolir as habitações construídas de forma ilegal, Isilda não pôde salvar os pertences indispensáveis. "Os computadores dos meus filhos... eles precisam para a escola, como vamos fazer? Elas [assistentes da Segurança Social] disseram que iam tentar arranjar, mas até agora nada!".

Com 47 anos, Isilda viveu entre Cabo Verde e Portugal desde 2004. Na altura, ficou sete anos, antes de voltar para São Tomé. "Tinha caducado a residência, não dava para vir, fiquei lá cinco anos. Voltei em 2016 e estou aqui desde essa altura. Na primeira vez, eu trabalhei, tive descontos, a minha Jamila, 13 anos, nasceu cá".

Procurou alternativas, mas sem sorte. "Antes de vir para aqui [Talude], andei à procura de casa, perguntei às pessoas, não havia nada. Como já tinha aqui uma plantação, é o que a gente faz, fiz uma pequena coisa, sabe como é que é", referindo-se a uma barraca construída com os materiais que vão encontrando por ali mesmo que, muitas vezes, sobram de anteriores demolições.

É este o procedimento padrão do Estado português que diz abrir a porta a migrantes internacionais, assina acordos internacionais e depois é assim que trata quem vem à procura de uma vida melhor.
Maria João Costa, Associação Habita!

"Por nossa conta"

As oito famílias que viram as suas construções deitadas abaixo pelo município tiveram de dormir na Casa da Cultura de Sacavém, durante três dias, até serem reencaminhadas para pensões.

Na prática, "não havia nenhum plano pós-demolições", garante Maria João Costa, da Associação Habita!, que tem acompanhado este caso - e outros semelhantes na área metropolitana de Lisboa. "As assistentes sociais apareceram para dizer que não tinham alternativas. As soluções apresentadas foram em cima do joelho, só ficaram na Casa da Cultura porque insistimos que não iam dormir na rua. E agora estão em pensões sem condições adequadas... Mães com bebés sem berços, sem espaço para lhes dar banho, têm de dormir na mesma cama, em camaratas, pensões sem máquinas de lavar. Isto não é solução digna", reclama Maria João.

© Créditos: Ana Patrícia Cardoso

Na prática, "não havia nenhum plano pós-demolições", garante Maria João Costa, da Associação Habita!, que tem acompanhado este caso - e outros semelhantes na área metropolitana de Lisboa. "As assistentes sociais apareceram para dizer que não tinham alternativas. As soluções apresentadas foram em cima do joelho, só ficaram na Casa da Cultura porque insistimos que não iam dormir na rua. E agora estão em pensões sem condições adequadas... Mães com bebés sem berços, sem espaço para lhes dar banho, têm de dormir na mesma cama, em camaratas, pensões sem máquinas de lavar. Isto não é solução digna", reclama Maria João.

Isilda não se vai abaixo. "Porque não posso, né? Tenho de aguentar". Mas não sabe o que fazer. "Colocaram-nos numa pensão e pagam pequeno-almoço e almoço. O resto é por nossa conta, querem que encontremos uma casa, mas onde está a habitação?".

Num mercado imobiliário altamente inflacionado, a possibilidade de arrendar uma casa a um preço justo na região da capital é praticamente nula.

"Nós temos vontade, nós queremos encontrar, mas como? Nós ligamos e sabe como eles querem as coisas? Duas ou três rendas, caução e fiador português! Nós não temos esse dinheiro", conta ao Contacto.

"Mesmo estilo de barbaridade"

Maria João não quer isolar o Talude como "um caso único", aliás, muito pelo contrário, faz questão de lembrar que este processo "não é novo nem exclusivo da Câmara de Loures. As Câmaras de Lisboa, Almada ou da Amadora também já o fizeram, não podemos esquecer. Na Amadora, há pessoas que saíram para trabalhar, voltaram para ver que não tinham casa e estão há sete anos sem solução". "É este o procedimento padrão do Estado português que diz abrir a porta a migrantes internacionais, assina acordos internacionais e depois é assim que trata quem vem à procura de uma vida melhor", lamenta a ativista.

As Câmaras "recorrem sempre como o mesmo estilo de barbaridade, acompanhadas pela PSP, polícia de choque, bastões, para quê? Para enfrentar famílias, pessoas desarmadas, crianças". No Talude, não levaram avante mais violência "porque começaram a chegar os meios de comunicação", garante.

A Habita! acompanhou todo o processo. Estas pessoas "foram avisadas com uma semana de antecedência, sem os procedimentos formais, um papel nas portas que nem estava datado, uma fotocópia, nem era um edital. Algumas foram à Câmara para perceber quais as alternativas, como podiam fazer e não foram sequer recebidos", explica Maria João.

Não seremos condescendentes com situação de ilegalidade

Sobre todo o processo, Sónia Abrão, vice-presidente da Câmara Municipal de Loures, deixou claro em reunião ordinária nesta terça-feira. "Se há coisa que não podemos deixar que aconteça é a construção de novas barracas no concelho. Por isso, assim que detetamos uma nova construção, tomaremos todas as diligências para que as pessoas percebam de uma vez por todas que aqui em Loures fiscalizamos o nosso território". Deixou ainda um "agradecimento aos serviços de fiscalização, à Polícia Municipal, a todos os técnicos".

Segundo a vice-presidente, "estas demolições foram acompanhadas de todos os procedimentos legais obrigados, desde a colocação de editais, a sinalização à Segurança Social, que é quem tem a competência para situações de emergência social que vai pagar seis meses de renda assim que encontrem casa", adiantando que, "neste momento, a Câmara não vai realojar nenhuma família e continua firme na sua convicção de responder a quem, efetivamente, tem direito à habitação por cumprir os requisitos do regulamento". "Não seremos condescendentes com situação de ilegalidade no concelho de Loures", acrescentou Sónia Abrão.

Maria João identifica neste processo um grande problema: a falta de comunicação entre as instituições. "As Câmaras fazem demolições, a Segurança Social está encarregue do apoio às famílias, mas não há articulação entre as duas. O que acontece? A responsabilização por estas pessoas perde-se pelo meio e acabamos aqui".

"Ministério do Despejo"

Representantes de vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, nomeadamente do Talude (concelho de Loures), do Segundo Torrão (Almada), do 6 de Maio (Amadora) e Montemor (Loures), manifestam-se à porta do Ministério da Habitação.

Representantes de vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, nomeadamente do Talude (concelho de Loures), do Segundo Torrão (Almada), do 6 de Maio (Amadora) e Montemor (Loures), manifestam-se à porta do Ministério da Habitação. © Créditos: Lusa

Na segunda-feira, 13 de março, vários moradores que ficaram sem casas de quatro bairros da região de Lisboa manifestaram-se em frente ao Ministério da Habitação. "O que é que eu vejo? O Ministério do Despejo", gritaram os manifestantes.

A ministra da Habitação, Marina Gonçalves, acedeu a receber um grupo composto por moradores, dois elementos da Habita! e um missionário comboniano.

A ministra pediu que lhe fosse enviada "uma lista das várias dezenas" de pessoas afetadas por demolições e despejos nos quatro bairros e tomou "boa nota de todos os casos", lê-se em comunicado do Ministério da Habitação. A tutela garante ainda "averiguar junto de todas as entidades competentes o ponto de situação de cada um dos casos" que lhe foram reportados.

"Isto não nos garante que as pessoas vão ter realmente soluções concretas, mas saudamos o facto de a ministra estar disponível para receber essa lista e analisá-la", disse aos jornalistas Rita Silva, da Habita!.