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A antiga Fortaleza de Peniche, que funcionou como prisão política durante o período da ditadura em Portugal.
ReportagemPCP

A grande fuga de Peniche

A antiga Fortaleza de Peniche, que funcionou como prisão política durante o período da ditadura em Portugal. © Créditos: LUSA

Dias Lourenço, histórico do PCP, membro do Comité Central entre 1943 e 1996, responsável pelo jornal Avante!, foi protagonista de uma das fugas mais arrojadas da Fortaleza de Peniche, em Dezembro de 1954. A nado em águas geladas, contra ventos e marés, encontrou terra firme e forma de escapar das garras da ditadura. Uma fuga espectacular, que resultou do fiasco de outra. O primeiro director oficial do Avante!, deputado pelo PCP à Assembleia da República, tinha um número da sorte, que era também de azar: 17.

Pela sua longa militância no PCP, António Dias Lourenço considerava que o 17 era o número da sua sina. Tanto lhe dava sorte, como o contrário. Foi com 17 anos que se tornou militante, em 1932, o primeiro número oficial do Avante! foi publicado a 17 de Maio de 1974, dirigiu o jornal por 17 anos, 17 anos passou na clandestinidade, 17 anos esteve preso nas cadeias do Estado Novo.

António Dias Lourenço da Silva, que faleceu no dia 7 de Agosto de 2010, aos 95 anos, era ribatejano de gema. Nasceu em Vila Franca de Xira a 25 de Março de 1915, ao largo da Primeira Guerra Mundial, nos verdes e conturbados anos da I República portuguesa. Não sendo de família abonada, também não era propriamente pobre. A sua mãe, filha de pescadores varinos, era costureira. O seu pai era ferreiro de profissão. Ele, ainda criança, tornou-se torneiro mecânico, mais precisamente torneiro-frezador.

Em tenra idade, tornou-se operário nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), jóia da coroa da indústria aeronáutica portuguesa, que em 1922 permitiu a Gago Coutinho e Sacadura Cabral ficar para sempre na história da aviação, cumprindo a primeira travessia aérea do Atlântico sul a bordo de um hidroavião. Esses hidroplanadores, baptizados de “Lusitânia”, “Portugal” e “Santa Cruz”, eram produto das OGMA. Rezam as lendas de Alverca – onde ainda se encontram as OGMA e, desde 1971, o Museu do Ar – , que em criança Dias Lourenço terá trabalhado nas peças dessas aeronaves, após a epopeia de Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que conquistaram os céus, tendo sido elevados a verdadeiros heróis nacionais, que não eram do mar, mas eram do ar.

António Dias Lourenço era demasiado jovem para tão altos voos, embora já tivesse idade suficiente para trabalhar, como acontecia com milhares de crianças num país pobre, sempre a navegar à vista em sucessivas e profundas crises, lavrando o terreno da ditadura que se acercava. Salvo os privilegiados, à época as crianças tinham de crescer depressa. Cedo despertou igualmente nele a consciência política. Com apenas 13 anos já se encontrava ligado ao Partido Comunista Português, fundado a 6 de Março de 1921. Ele cresceu com o PCP, assim como o PCP cresceu com ele. Tornou-se militante do partido em 1932, com 17 anos.

No total Dias Lourenço passou 17 anos nas prisões da ditadura

Uma militância que levou até ao seu último fôlego. Apesar de operário, Dias Lourenço nunca descurou o ensino, por vezes de forma autodidacta, estabelecendo sempre pontes com a cultura. Era grande amigo de António Alves Redol, escritor ribatejano, intelectual, também ele natural de Vila Franca de Xira, um dos expoentes do neorrealismo português, junto com Soeiro Pereira Gomes, que daria nome à sede do PCP em Lisboa. Apesar de Soeiro Pereira Gomes ser natural de Baião (distrito do Porto), tinham em comum o amor pelo Ribatejo e, desde que emergiu o Estado Novo (1933), a luta antifascista nas trincheiras do PCP. Tornaram-se famosos os chamados “Passeios do Tejo”, que surgiram no início da década de 40, nas quais participaram estes três resistentes antifascistas, junto com Álvaro Cunhal e uma plêiade de intelectuais de esquerda.

A António Dias Lourenço se reconhece importância fundamental na reorganização do PCP, igualmente no início da década de 40. O próprio partido o inscreveu assim na sua história, fazendo-lhe devida justiça: “Teve participação activa na reorganização dos anos 40/41, nomeadamente no Baixo Ribatejo, onde integrou o respectivo Comité Regional, tornando-se funcionário do partido e passado à vida clandestina em 1942, assumindo a responsabilidade das tipografias e do aparelho central da distribuição da imprensa do partido. Foi ainda responsável por várias organizações, como as do Algarve, Beiras e margem sul do Tejo, tendo integrado também a direcção da Organização Regional de Lisboa”.

O primeiro número oficial do Avante! foi publicado a 17 de Maio de 1974.

O primeiro número oficial do Avante! foi publicado a 17 de Maio de 1974. © Créditos: DR

A António Dias Lourenço se reconhece importância fundamental na reorganização do PCP, igualmente no início da década de 40. O próprio partido o inscreveu assim na sua história, fazendo-lhe devida justiça: “Teve participação activa na reorganização dos anos 40/41, nomeadamente no Baixo Ribatejo, onde integrou o respectivo Comité Regional, tornando-se funcionário do partido e passado à vida clandestina em 1942, assumindo a responsabilidade das tipografias e do aparelho central da distribuição da imprensa do partido. Foi ainda responsável por várias organizações, como as do Algarve, Beiras e margem sul do Tejo, tendo integrado também a direcção da Organização Regional de Lisboa”.

Na clandestinidade nasceu o “Avante!”, órgão central do PCP e da luta antifascista, ao qual Dias Lourenço ficou para sempre ligado, não tivesse sido ele o primeiro director oficial do Avante!, cargo que ocupou até 1991, com o primeiro número “legal” saindo em liberdade para as bancas no dia 17 de Maio de 1974. Ainda hoje, a redacção do Avante! tem a sua secretária incólume. Em bom rigor, o primeiro número do Avante! foi publicado na clandestinidade no dia 15 de Fevereiro de 1931, na vigência da Ditadura Militar, que antecedeu a do Estado Novo.

Dias Lourenço seria o responsável máximo do Avante! entre 1957 e 1962, altura em que foi preso pela segunda vez (a primeira fora em 1949), quando já integrava o Secretariado, assim como a Comissão Política do PCP. Fora eleito para o Comité Central em 1943. Com pseudónimo, foi responsável por “O Camponês”, jornal clandestino ligado ao PCP (entre 1948 e 1949), foi jornalista de “O Diabo”, do “Sol Nascente”, “Mensageiro do Ribatejo” ou do “República”. Após a revolução de Abril, fez parte da Assembleia Constituinte (1975/76), pelo distrito de Setúbal, tendo sido deputado à Assembleia da República entre 1975 e 1987. Dias Lourenço integrou a Comissão Política do PCP até 1988. Foi membro do Comité Central do partido durante 53 anos (entre 1943 e 1996).

Era do regime um velho conhecido. No total, passou 17 anos nas prisões da ditadura. Como se sabe, e ele próprio reconhecia, a sina do número 17 atravessou-se em muitos momentos da sua vida.

Uma fortaleza encontra outra

Quando foi colocado na Fortaleza de Peniche, a 5 de Agosto de 1953, já havia passado pelas cadeias de Caxias e do Aljube. Em mente, como tantos outros camaradas, só tinha uma coisa: a fuga. Conta Joaquim Campino no seu livro Histórias Clandestinas, editado pelas Edições Avante, que não foi preciso muito tempo para saber dos planos em curso. Para fugir, havia sempre planos em curso. Campino já se encontrava preso em Peniche quando Dias Lourenço lá chegou. Tinham as camas lado a lado, primeiro na camarata 5. Nessa camarata, os prisioneiros já estavam a escavar um túnel, por baixo do chão, abrindo caminho por terra e rocha. Por azar, seriam transferidos para a camarata 4, pois a camarata 5 seria transformada em refeitório para os guardas, que passaram a fazer as refeições por cima de um túnel.

Na camarata 4, porém, já se gizava plano idêntico, tendo Dias Lourenço como impulsionador: construir um novo túnel até às muralhas, atravessando-as. Segundo os cálculos, dez metros de túnel. Foi necessário grande planeamento, muito material vindo do exterior, que as mulheres dos reclusos faziam entrar na fortaleza de Peniche. Escavavam em silêncio, sempre de olhos postos nos carcereiros de serviço, revezando-se a escavar e a vigiar os guardas, como uma contra-teia de vigilância. Mais de três meses de trabalho, cheio de percalços técnicos. Havia imensa logística de permeio, para começar, esconder a terra subtraída ao solo, esconder as roupas de “trabalho”, resolver imponderáveis que iam surgindo no caminho. Por sorte, tinham um camarada que tinha sido mineiro nas Minas de São Domingos, que os aconselhou em escavar no sentido ascendente, assim como a forma mais indicada para escorar um túnel.

António Dias Lourenço

António Dias Lourenço © Créditos: Cortesia do Jornal Tornado

Na camarata 4, porém, já se gizava plano idêntico, tendo Dias Lourenço como impulsionador: construir um novo túnel até às muralhas, atravessando-as. Segundo os cálculos, dez metros de túnel. Foi necessário grande planeamento, muito material vindo do exterior, que as mulheres dos reclusos faziam entrar na fortaleza de Peniche. Escavavam em silêncio, sempre de olhos postos nos carcereiros de serviço, revezando-se a escavar e a vigiar os guardas, como uma contra-teia de vigilância. Mais de três meses de trabalho, cheio de percalços técnicos. Havia imensa logística de permeio, para começar, esconder a terra subtraída ao solo, esconder as roupas de “trabalho”, resolver imponderáveis que iam surgindo no caminho. Por sorte, tinham um camarada que tinha sido mineiro nas Minas de São Domingos, que os aconselhou em escavar no sentido ascendente, assim como a forma mais indicada para escorar um túnel.

Quando se atingiu uma extensão de quatro metros, outro problema se tornou evidente: não havia ar. As chamas das velas consumiam o oxigénio. Vários tipos de ventiladores foram experimentados. O que teve mais sucesso, ideia de Dias Lourenço, foi um fole, como se usava na indústria do vidro na Marinha Grande. Chegados aos dez metros de comprimento, só encontraram uma conclusão: tinham feito mal os cálculos. Faltava ainda escavar uns bons dois metros, sem contar com as dificuldades que os esperavam para retirar as pedras da muralha. Perto do Natal de 1953, a muralha seria atingida, mas esta constituía ainda um obstáculo muito sólido, que exigia trabalho, ventilação, luz adequada. Nasceu então um projecto ambicioso de levar a luz eléctrica para o túnel, que quase deitou tudo a perder. Qualquer coisa correu mal nas ligações. Um curto-circuito deixou às escuras a Fortaleza de Peniche. Algo muito suspeito, mas aparentemente sem consequências de maior. À cautela, acharam melhor ficar quietos por uns tempos.

Duas semanas depois, retomaram a sua actividade “underground”. Um magnífico luar de Janeiro (1954) traí-los-ia. Um elemento que vigiava os guardas distraiu-se por momentos, desviando-se do abrigo da noite, tendo sido detectado. Gerou-se um autêntico corrupio para apagar as evidências do seu plano. No dia seguinte, tudo parecia tranquilo. Não estava. Os guardas acabaram por descobrir o túnel, programado para a evasão de dez prisioneiros do regime. Algo premonitório para o que aconteceria seis anos depois, em Janeiro de 1960, com a espectacular fuga de uma dezena de históricos do PCP, incluindo Álvaro Cunhal.

Como nos respectivos interrogatórios que se seguiram, sob os auspícios de agentes da PIDE, ninguém “abriu a boca”, aplicou-se uma decisão salomónica, especialidade da casa: um castigo colectivo de um mês no isolamento, no “Segredo”, como os prisioneiros lhe chamavam, um cubículo onde não cabia mais do que um homem. Quatro paredes exíguas e sujas, com chão de cimento e uma porta “de madeira grossa, reforçada com cintas metálicas, sempre fechadas com fechaduras e ferragens exteriores” – descreve Joaquim Campino. Foi no “Segredo” que Dias Lourenço teve uma ideia: fugir do “Segredo”. O plano: abrir um postigo na porta, com o tamanho suficiente para se escapar. Não era coisa que muitos outros prisioneiros não tivessem já pensado. Por alguma razão ainda ninguém o tinha conseguido.

Este plano era especialmente tortuoso para o autor, pois implicava ter de passar muito tempo no pior sítio para se estar. Teria, portanto, de dar boas razões para o devolverem ao “Segredo”, desconhecendo que ele também tinha um, junto com uma faca de sapateiro, que nem os mais experimentados presos sabiam como havia ele conseguido dissimular já que, à entrada do cubículo dos infernos, os prisioneiros eram despidos e revistados. Admitindo que Dias Lourenço conseguia abrir um postigo na porta, admitindo que depois de sair o conseguia disfarçar, havia ainda a questão do posto de guarda, em frente à porta, a escassos 50 metros de distância. Era de todo útil que esta fuga se concretizasse no turno “do guarda Samuel”, um “velhote” que, para além de ver mal e de ser inofensivo, também gostava de vinho tinto.

© Créditos: DR

Com a sua faca de sapateiro, Dias Lourenço trabalhou afincadamente. Mas, por estranho que pareça, não passou tanto tempo no “Segredo” quanto queria. Os guardas estavam em maré de grande repressão. A lista de espera para o “Segredo” era imensa. Dias Lourenço teria de fazer mais uma das suas para lá regressar. O que não foi necessário. O acaso fez isso por ele. Sem querer, foi apanhado uma noite a escrever um bilhete para enviar para o partido. Um guarda irrompeu pela camarata e apanhou-o em fragrante. O guarda não chegou a ler o que estava escrito. Dias Lourenço arrancou-lhe o papel da mão e, acto contínuo, engoliu-o. O guarda ficou furioso e a pena só podia ser uma: “Segredo”. Dias Lourenço tinha deixado o postigo camuflado. E, para o abrir definitivamente, só faltavam alguns cortes. Quando estava a ser arrastado pelos guardas, olhou sorrateiro para Joaquim Campino, como se fosse um olhar de despedida. Fuga ou morte.

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Só passados dois dias, os outros prisioneiros tiveram notícias, que os guardas fizeram questão de espalhar. O senhor Dias Lourenço tinha morrido afogado. As suas roupas tinham dado à costa. Seria, na verdade, a versão mais lógica dos acontecimentos. Mas não foi assim. Quem deu à costa foi um homem quase a desfalecer, de tanto nadar nas águas geladas do mar de Dezembro (1954), revoltas e com a maré a desfavor.

Os que ficaram na Fortaleza de Peniche hesitaram. Sabiam que, deles, Dias Lourenço era o melhor nadador, sabendo que entre tantos outros, era o mar o seu pior inimigo. Só mais tarde as informações chegaram clandestinamente a Peniche. Dias Lourenço tinha aberto o postigo, tinha-se escapado por ele, tinha voltado a colocá-lo antes de fugir, tinha cortado três cobertores às tiras para fazer uma corda, que não tinha comprimento suficiente para os 16 metros de altura das muralhas. Mesmo que tivesse, a corda não aguentou o seu peso e ele saltou para o mar. Soube-se mais tarde que foi ajudado por pescadores, que o socorreram e lhe proporcionaram transporte para o Bombarral. Onde chegou um homem livre. No que na clandestinidade era possível.

*Autor escreve ao abrigo do antigo AO.