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Arrendar casa é um inferno, mas ainda há bons senhorios

Com a habitação em valores recorde, há proprietários que optam por não apertar mais o cinto a quem já não consegue fazer furos. Recebem menos dinheiro, mas chateiam-se muito menos.

O preço das casas em Portugal continua alto, o dinheiro continua caro, as rendas continuam a subir e o descontentamento e descrença do cidadão comum com os valores da habitação continuam em níveis (muito) elevados. E, claro, os senhorios tornaram-se alvo fácil para descarregar o desespero de quem precisa de uma casa para viver e não tem como pagá-la.

Haverá quem ache que os proprietários se puseram a jeito para isto e se tornaram todos uma cambada de gananciosos que querem enriquecer rapidamente à custa de famílias em crise e com salários baixos. E haverá quem ache que é apenas o mercado a funcionar, afinado pela melodia económica da lei da oferta e da procura: havendo quem esteja disposto a pagar, haverá sempre quem esteja disposto ou arrendar pelo mais alto valor possível. E todos querem a sua parte, quanto maior melhor.

Todos? Nem tanto. Apesar de poderem cobrar valores muito mais altos pelas casas que arrendam (e possivelmente com filas à porta de gente disponível para pagar), há também senhorios que optam por não apertar mais o cinto a quem já não consegue fazer mais furos.

São os tais de que se fala nas notícias, de que já todos ouvimos histórias, que sabemos que existem... mas, na verdade, não conhecemos nenhum de carne e osso. Desconfiamos, até, que sejam mitos urbanos.

Pois bem, eu tenho a sorte de conhecer um: o meu. Eu tenho um senhorio desses.

Proprietário de várias casas em Lisboa e nos arredores da capital, o Sr. António prefere ter inquilinos de longa duração que paguem menos mas estimem as paredes, do que ter um entra e sai de gente que paga mais mas são tiros no escuro e probabilidades de dores de cabeça.

A primeira vez que ele me disse isso eu estava meio entupido com a ideia de lhe pedir uma redução no valor. A primeira filha vinha a caminho, as janelas precisavam de ser substituídas e a zona da cidade já se prestava a valores mais altos. "Se vocês ficarem aqui vários anos é um descanso para mim", respondeu. "E não há dinheiro que pague isso."

Há dias enviei ao Sr. António uma mensagem com umas imagens que vi nas redes sociais. Faziam parte de um artigo sobre proprietários como ele, dos que podem cobrar valores superiores pelas casas mas, ainda assim, pedem menos dinheiro em troca de mais confiança e segurança.

Ele sabe que se tornaram raros. E sabe que, fazendo jus à velha máxima de que o que é notícia é o homem morder o cão e não o cão morder o homem, estes casos de quem não estica rendas até o mercado aguentar e o inquilino estrangular ganham destaque na comunicação social.

"Há senhorios que não sobem rendas há anos: 'Sinto-me a fazer o correto'", lia-se numa das fotografias. "Prefiro uma pessoa certa, que trate bem da casa e mantenha uma boa relação com os vizinhos", estava escrito sobre outra. E na terceira: "É um investimento feito. mas é o lar destas pessoas e isso impede-me, eticamente e humanamente, de ver apenas números”.

Aquilo não acrescentava muito em relação ao que eu sei que ele pensa e ao que ele sabe que eu agradeço. Mas estas coisas não devem passar em claro e quando nos cruzamos com gente em condições podemos bem dizer que somos gratos pelas voltas que a vida deu para as colocar no nosso caminho.

Suponho que eu seja um bom inquilino, dos que muda lâmpadas da escada do prédio, alerta para problemas de sujidade e envia desejos de boas festas. Mas o mérito não é meu. É do Sr. António. E de alguns outros como ele que há por aí. Eles existem.

Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.