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OpiniãoAndamos todos ao mesmo

Queimar tempo e amparar emoções nas urgências de um hospital

É aqui que nos desagua o lado mais frágil, na nossa doença ou na dos que nos são queridos, enquanto tentamos perceber, nas longas horas de espera, o número que nos vai calhar na lotaria da saúde e da genética.

Três homens fumam cigarros lá fora enquanto abanam as pernas e esfregam os braços. Está frio, mas um deles já disse várias vezes que não consegue estar sentado e os outros fazem-lhe companhia. Uma mulher acaricia a bochecha da adolescente que tem a atenção fixa no écran do telemóvel. A rapariga levanta o queixo devagar, desvia os olhos na direção da mãe, cansada e farta de estar ali, sorri e volta para o jogo.

Um pouco atrás está um homem a dormitar, cabeça tombada sobre os braços cruzados e pescoço certamente dorido pela posição. De vez em quando tenta ajeitar-se, já ensaiou até esticar as pernas sobre uma cadeira, mas regressa ao desconforto original.

Uma mulher troca mensagens através do telemóvel agora ligado a uma tomada com aspecto duvidoso pelo cabo de bateria que não estica o suficiente para ela se poder sentar. De vez em quando telefonam-lhe e responde sempre o mesmo: "ainda não tenho novidades, quando souber alguma coisa logo aviso". Está aqui há pelo menos três horas, tantas como as que eu levo nesta sala de espera.

Fora dos períodos agudos de maior afluência, as urgências de um hospital são bons locais para tentar ler as camadas de que podem ser feitas as emoções, quando as levamos aos extremos da empatia e do desespero, da dor e da angústia, da esperança e da paciência, da dúvida e do medo.

Todas estas pessoas, tal como eu, esperam notícias de quem está lá dentro, para lá das portas de correr guardadas por um segurança ensonado às quatro e meia da manhã. Não sabemos quando teremos novidades. Não sabemos quanto tempo mais aqui ficaremos, entre ambulâncias que vão chegando e alguns poucos doentes que vão saindo.

Das lágrimas aos sorrisos, nos abraços de despedida ou boas-vindas das chegadas ou partidas, os aeroportos também são bons locais para assistir na primeira fila ao teatro da vida real. Tal como os transportes públicos. Ou as salas de espera dos consultórios médicos. Ou os cafés e restaurantes. Ou as repartições de finanças e balcões da segurança social. Ou os estaleiros de obras junto dos quais se concentram os velhos a ver o andamento das máquinas.

Mas dificilmente haverá melhor casulo do quotidiano do que as urgências de um hospital. É aqui que nos desagua o lado mais frágil, seja na nossa doença ou na dos que nos são queridos, enquanto tentamos perceber, nas longas horas de espera, qual o número que nos vai calhar na lotaria da saúde e da genética.

Cada um passa por estes momentos da forma que melhor consegue – e dependendo do que o trouxe aqui, claro. É diferente esperar por um filho de 20 anos que fez uma entorse quando torceu um pé ou esperar por notícias de uma mãe de 80 que teve um enfarte. Esperar por um marido que cortou dois dedos num acidente de trabalho ou esperar por novas de um irmão que chegou a vomitar sangue, deitado numa maca empurrada pelos bombeiros.

É diferente esperar para saber alguma coisa ou esperar pelo momento em que alguém nos dará a notícia que não queremos receber, que nos recusamos a ouvir, que sempre quisemos adiar.

Apesar de já todos termos passado por isso e de ainda lá termos de voltar umas quantas vezes ao longo da vida, não sei como se pode tornar melhor a experiência da espera por notícias de quem gostamos nas urgências de um hospital. Ou que estratégias pode haver para queimar tempo e amparar emoções. Mas sei que nunca voltamos exatamente os mesmos. E nunca, mas nunca, queremos lá voltar em breve.

Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.