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Psicólogos? Isso é para os outros, eu não preciso

Vou mas é para o ginásio. Ou então vou jantar fora. Ou vou viajar, passear, arejar a cabeça. Tirar uns dias a dois ou em família. Isso é que é dinheiro bem gasto, não é cá falar de problemas com um psicólogo. Não preciso disso. Certo? Errado.

Foram anos e anos disto. Uma vida a meter para dentro. Não é que eu seja um tipo amargurado ou acabrunhado, mas há coisas que não partilho. Nunca partilhei. Por que é que eu ia falar disso? Alguém ia tratar dos problemas por mim? Não, pois não? Sempre achei que não valia a pena estar a chatear os outros com os meus fantasmas. Não é do meu feitio. A vida logo há-de resolver, pensava eu. E se não resolver a vida resolvo eu. Cada um é para o que nasce e se calhar eu nasci para carregar estas cruzes.

Não me recordo quando é que ouvi falar de psicoterapia pela primeira vez. Não se chamava assim, na altura, lembra-se? "Devias levar o teu filho ao psicólogo, é tão calado", disseram uma vez à minha mãe. O meu pai atirou-se ao ar quando ela lhe disse. Havia uma colega na minha turma do ciclo que ia ao psicólogo. Mas ela tinha problemas. Não aprendia e gritava muito. Eu não gritava. Pelo contrário. Eu não tinha problemas, pelo menos daqueles, por isso o meu pai devia ter razão e eu não precisava.

A saúde mental é outra coisa. E se não cuidarmos dela de uma maneira, mais cedo ou mais tarde vamos ser obrigados a cuidar dela de outra. Ou então rebenta-nos tudo na cara. E é uma chatice para nós e para os outros à volta.

O meu velho é uma referência, sabe? Uma espécie de modelo. Para o bem e para o mal, é um exemplo. Pelo menos quando me convém. Entendo agora que só o dou como exemplo quando me dá jeito. Às vezes digo "não hei-de ser como o meu pai". Se ele fez assim, eu quero fazer assado. Na educação dos filhos, no dinheiro amealhado – sempre a contar trocos, caramba –, na relação com a minha mãe, até na política. O meu pai votou sempre à direita e orgulha-se, eu ponho a cruz nos da esquerda e gostava de o dizer à mesa. Para o provocar. Agora já me deixei disso.

Mas noutras coisas digo que quero ser como ele. E disse muitas vezes à minha mulher, quando ela vinha com essa conversa de eu fazer terapia. "O meu pai nunca precisou de ir ao psicólogo e está ali rijo como um pêro. Não tem problemas."

Que estupidez de coisa para se dizer. Olhe que hoje eu percebo, palavra de honra: claro que tem problemas. Tem ele, tenho eu, temos todos. E os do meu pai são bem complicados. Se calhar, se ele tivesse falado com alguém, se tivesse desabafado, se alguém o tivesse ajudado... se calhar tinha tido uma vida melhor. E nós todos lá em casa também.

O meu filho já tinha nascido quando pensei nisto a sério pela primeira vez. Fiquei muito assustado com aquilo de ser pai. É uma grande responsabilidade. Ficava a olhar para o bebé com medo que lhe acontecesse alguma coisa e não saía dali. Custou-me muito ir trabalhar, quando acabou a minha licença. Custa a todos, eu sei, mas cheguei a pensar pôr uma baixa. Andava uma pilha de nervos. E um dia a minha mulher desatou a chorar e disse-me para eu pedir ajuda, que ela já não aguentava mais.

Sabe o que é que eu fiz? Fui para o ginásio. E fomos passar um fim-de-semana fora. Pensei que era a melhor coisa a fazer ao dinheiro. Um psicólogo não é coisa barata e achei que o dinheiro era mais bem empregue a tratar da minha saúde e da nossa relação. Exercício físico e namoro. Era essa a cura.

Mas não foi. Claro que não foi. A saúde são muitas coisas. E vingar-me na passadeira e nos pesos e nas aulas de cardio ajuda à cabeça, mas não é tratar da cabeça. E sair para jantar fora a dois e passar uns dias num hotel também ajuda. Mas também não é a mesma coisa. A saúde mental é outra coisa. E se não cuidarmos dela de uma maneira, mais cedo ou mais tarde vamos ser obrigados a cuidar dela de outra. Ou então rebenta-nos tudo na cara. E é uma chatice para nós e para os outros à volta.

Foi o que aconteceu. Aquilo foi sol de pouca dura. Voltaram os silêncios, o aperto no peito, as noites sem falar. Não é que fique triste e enfiado num poço, mas só me apetece estar com os meus botões. E irritado. Fico muito irritado. Percebe o que eu quero dizer? Arregalo os olhos e tudo.

E pronto. Foi assim que cheguei aqui. A minha mulher diz que quer separar-se. Vai para casa da irmã durante uns tempos, depois logo se vê. Ainda não falámos sobre o miúdo, como é que vai ser. Eu estou assustado. Mas olhe, está-me a saber bem falar consigo. Se calhar já devia ter vindo há mais tempo.

Bom, diga-me lá, doutora: como é que funciona isto da psicoterapia? Como é que vamos fazer?

Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.

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