Portugueses. Sabe-se lá quem somos
Se pensarmos bem, já não nos falta quase nada para sermos alguma coisa.
© Créditos: José Sena Goulão/Lusa
Não sabemos se é falsa a tristeza, se falsa a alegria, mas é inegável que gostamos de carregar o peso do mundo como se não tivéssemos problema algum. Sorrimos em traje de luto, gostamos da lágrima, de moelas, do queixume e de imperiais.
Somos contacto e solidão, indivíduo e povo, o golo que não entra, o quase que foi, o esteve tão perto, o fica para a próxima. Somos a terra que não temos e o mar que tivémos. Somos a vírgula da frase, gentrificados até ao tutano, decididamente grandes enquanto parecemos pequenos, pequenos quando nos julgamos grandes.
Somos o inverso das coisas, o tudo o e o seu contrário, inverso até do inverso, subtraídos em todas as nossas decantações, os maiores no desta é que é, os ases da desilusão, da melancolia, do passo maior que a perna.
Somos padeiras de Aljubarrota a contar os trocos para o azeite. Somos crise, somos crianças grandes, adultos na infância. Somos Fátima, fado, família, inventámos o estalido de boca para sinalizar o enfado, baptizámos de Salazar um instrumento para rapar os restos dos tachos, somos engenheiros bioquímicos de leste a passear em andaimes, somos corpos estendidos em praias.
Somos velhotas com bigode à espera de energia eléctrica, somos rugas, somos sombras de oliveiras, migas com entrecosto, o maior centro comercial do mundo, a maior árvore de Natal do mundo, a maior ponte do mundo, a maior feijoada do mundo, o recorde absoluto de uma coisa qualquer.
Somos material de Guinness, somos esforço, somos trânsito, somos buzinas e vinho tinto, pais nossos e avés marias, somos raspadores compulsivos, apostamos nos casinos online, fazemos filhos e empréstimos, jogamos à sueca, emigramos, retornamos, somos santas de azulejo à porta de casa, somos betão sobre betão, somos bairro, somos ilegais, nascemos em África, no Brasil, vivemos em prisões invisíveis à porta das nossas cidades, temos fortunas de família.
Somos novos-ricos, somos burgueses, damos festas, saímos nas revistas, vamos à missa perdoar os nossos pecados, estamos viciados em telenovelas e futebol, não dobramos uma esquina sem tropeçar num banco ou num hambúrguer de plástico.
Somos bloqueados, proibidos, advertidos, notificados, multados, temos impostos e burocracia até ao pescoço, cães de peluche a abanar na parte de trás dos carros, temos terços nos retrovisores, inserimos moedas para estacionar, pagamos às prestações o que já foi pago, acordamos com vontade de dormir, temos barrigas XXL, usamos roupas feitas em Espanha, importamos os sapatos que as nossas crianças fazem.
Temos a maior taxa europeia de uso e abuso de telemóvel, ingerimos calorias, somos a bica, o bagaço, começamos a almoçar e, sempre a falar de comida, acabamos a cear, em abaladiças sem fim. Vamos de carro para o ginásio, vestimos o fato de treino ao domingo para ler um jornal desportivo no banco reclinável do carro. Ainda por cima, fumamos. Ai, ai, ai, isso que não.
Aqueles barcos de cruzeiro, que mais parecem cidade flutuantes que navegam e atracam em Lisboa, produzem mais poluição à sua passagem que todo o parque automóvel da cidade a carburar ao máximo durante um ano. Isso ainda vá lá, fumar é que não, porque é uma questão de saúde pública. Dá logo vontade de acender um cigarro.
Somos a maioria que vota na abstenção, o sonho e a incredulidade, somos olá, pá, gajo, já agora, vê lá isso. Somos orgulhosos do que somos, isso ninguém nos pode tirar. E, se pensarmos bem, já não nos falta quase nada para sermos alguma coisa.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)