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OpiniãoRacismo

O racismo à portuguesa

Não será melhor pôr de lado as teses que se filiam nas operações de desocultação, boas para serem postas ao serviço de causas militantes, mas que não servem necessariamente os propósitos de uma agenda de investigação científica?

Sentados da esq. para a dir.: Luis Alberto de Pinho, Manuel Hermínio Paquete, Burghardt du Bois, Dr. José de Magalhães, Pascoal Pires dos Santos, Dr. Lourenço Pires Amado. De pé da esq. para dir.: Manuel Maria Ribeiro, Angelino Costa, Sebastião N. D'Alva Teixeira, Augusto de Magalhães, Tomé Agostinho das Neves, Manuel Afonso de Barros e Pascoal Betencourt.

Sentados da esq. para a dir.: Luis Alberto de Pinho, Manuel Hermínio Paquete, Burghardt du Bois, Dr. José de Magalhães, Pascoal Pires dos Santos, Dr. Lourenço Pires Amado. De pé da esq. para dir.: Manuel Maria Ribeiro, Angelino Costa, Sebastião N. D'Alva Teixeira, Augusto de Magalhães, Tomé Agostinho das Neves, Manuel Afonso de Barros e Pascoal Betencourt. © Créditos: DR

Num livro acabado de sair sobre o movimento negro em Portugal no início do século XX, encontra-se uma análise da vinda a Lisboa, em finais de 1923, do conhecido sociólogo norte-americano William Edward Burghardt Du Bois. Os seus autores, Cristina Roldão, José Augusto Pereira e Pedro Varela, são investigadores experientes e interessados em saber como operaram os grupos e os indivíduos racializados durante a República até à transição para o Estado Novo. Este capítulo do seu livro, intitulado "Tribuna Negra: origens do movimento negro em Portugal (1911-1933)" (Tinta da Cinha), merece ser lido com atenção. 

Du Bois foi um sociólogo negro que estudou em Harvard, onde se doutorou em 1895. O seu envolvimento no pan-africanismo – sobretudo a sua participação numa série de congressos que deram expressão ao movimento de afirmação dos direitos dos negros, contra as mais diversas formas de discriminação e segregação – coincidiu com a explosão cultural que teve lugar num dos mais importantes bairros nova-iorquinos – a chamada Harlem Renaissance

A sua vinda a Lisboa, por ocasião do II Congresso Pan-Africano que teve lugar entre 1 e 2 de Dezembro de 1923, levou-o a permanecer cerca de duas semanas na capital. Logo de seguida, partiu para o Funchal e depois para África até visitar a Libéria.   

O encontro ocorreu na sede da Liga Africana, na Calçada do Carmo, nº 25. José de Magalhães, nascido em Moçâmedes, médico, professor de medicina tropical e deputado por S. Tomé e Príncipe foi quem recebeu Du Bois e lhe mostrou a cidade. 

Os autores do livro lamentam que Du Bois não tivesse visto "o racismo 'à portuguesa' vivido pelos negros pobres na 'metrópole' e pela esmagadora maioria dos africanos nos territórios colonizados" (op. cit., pp. 76-77). Se não viu ao certo o que os autores do livro gostariam que ele tivesse sido capaz de ver, a pergunta que se coloca é, então, a de saber o que viu realmente Du Bois durante a sua curta estadia em Lisboa? 

Esclareço, desde já, que não concordo com a maneira de colocar o problema no livro em causa, por postular a existência de uma realidade e considerar que esta está ausente da perspectiva de quem tinha obrigação de reparar nela. Tal como se um testemunho, em lugar de ser analisado em função da intencionalidade do seu autor, fosse considerado como uma espécie de desvio, em relação àquilo que é considerado a norma e, por isso mesmo, padecesse de uma ausência. Por isso, procurarei antes de mais reconstituir o ponto de vista dos autores do livro, apesar de achar que estes não procuraram fazer o mesmo em relação a Du Bois.    

Na opinião dos autores do livro, Du Bois considerou que São Tomé e Príncipe era "a mais independente e progressiva colónia portuguesa", ao mesmo tempo que não hesitou em representar Lisboa como uma cidade "mais do que hospitaleira". Entre portugueses e africanos ou mestiços ('near Africans') não havia "antipatia racial, a acumulação de ódios históricos, desgostos e desprezos". Uma outra prova da valoração positiva do regime republicano, por parte do sociólogo, encontrava-se na constatação de que Portugal tinha deputados e ministros negros. Quanto ao império português, Du Bois recebera a informação de que ali os africanos tinham idênticos "direitos que os nascidos europeus". Em S. Tomé e Príncipe, "os piores aspectos da escravatura desapareceram e os pequenos proprietários coloniais conseguem competir com os proprietários das grandes plantações". Mais: a economia das roças do cacau, mantidas à custa de penosas condições laborais, só foi benéfica para os seus principais investidores, os detentores do capital inglês (pp. 77-78).  

Sempre segundo os autores do livro, são várias as hipóteses que ajudam a explicar, o conjunto de "apreciações favoráveis sobre as relações raciais no império colonial português", acabadas de elencar. A primeira dessas explicações surge sob a forma de uma aproximação à conferência do coronel Wyllie, proferida na Sociedade de Geografia de Lisboa, a 3 de Dezembro, ou seja, no dia seguinte ao do último dia do Congresso Pan-Africano. Segundo os autores, que encontraram a comunicação intitulada "The Portuguese slavery lie", proferida por um militar britânico que não identificam, no arquivo de Du Bois, já ali estavam em emergência as "narrativas do excepcionalismo do colonialismo português, que seriam posteriormente recriadas pelo Estado Novo através do lusotropicalismo de Gilberto Freyre" (p. 77). Ora, o argumento da comunicação de Wyllie era – coincidente com o que defendera Du Bois – que as críticas às condições de trabalho em S. Tomé serviam os interesses e as intenções do expansionismo britânico.      

A segunda hipótese explicativa diz respeito às "apreciações favoráveis" das relações raciais em Portugal e no seu império. Neste caso, trata-se, mais uma vez, de uma aproximação entre Du Bois e outros afro-americanos (a começar por Frederick Douglas) que, ao visitar o espaço europeu, também consideraram ser terra de liberdade para os negros, em comparação com os EUA, onde se multiplicavam as demonstrações de linchamentos, segregações e perseguições legalmente instituídas pelo regime de Jim Crow (pp. 73, 74, 78). Logo, a perspectiva de Du Bois em relação ao racismo à portuguesa seria explicável à luz de uma espécie de disposição prévia dos afro-americanos, sempre dispostos a representar de forma benévola o que sucedia na Europa. 

Outras hipóteses explicativas são sugeridas pelos autores do livro: Du Bois terá, porventura, preferido centrar as suas críticas no imperialismo britânico; ou, então, o que não contradiz necessariamente a relevância das críticas anteriores, seguiu nos calcanhares da Liga Africana que punha a coesão e a moderação acima de tudo. Assim sendo, seguia o exemplo do que já tinha sido notado por outros delegados afro-americanos, a respeito de congressos pan-africanos anteriores, nomeadamente em relação às posições afro-francesas mais moderadas em relação à violência colonial. De recordar, ainda, que a sessão, em Lisboa, do III Congresso Pan-Africano contou com a presença de Ferreira da Rocha, ex-ministro das Colónias, e Vicente Ferreira, à época o ministro da mesma pasta.

E que, quando Du Bois e Ida Gibbs Hunt, outra afro-americana residente em Paris, organizaram o I Congresso em 1919, o então coronel Augusto Freire de Andrade, ex-governador de Moçambique, ali esteve com os seus pontos de vista moderados e conciliatórios em relação ao colonialismo português (p. 84). Neste sentido, importa acrescentar que a presença de representantes oficiais dos Estados coloniais não se registara só em Portugal, já que o mesmo sucedera em congressos pan-africanos anteriores, contribuindo para atenuar as críticas ao colonialismo e ter uma visão mais afável das relações raciais.            

Haverá ainda que considerar a hipótese de que, desde o início dos congressos pan-africanos, em 1919, teriam existido tensões e divisões, nas quais a Liga Africana participou. Um dos principais sinais da conflitualidade que atravessou os referidos congressos esteve no próprio entendimento do encontro de Lisboa e da vinda de Du Bois, como fazendo parte do III Congresso. Uma questão controversa, uma vez que, segundo José de Magalhães, se tratou apenas de uma simples visita a Lisboa do sociólogo negro. Apesar de este último nunca ter posto em causa que, em Lisboa, decorrera um congresso que, em comparação com os anteriores encontros do mesmo género, até foi "mais harmonioso e de espírito mais esperançoso" (p.  81). 

Interessante e rico é, ainda, o inventário dos conflitos de posição entre os congressos pan-africanos de Du Bois, os movimentos associativos ligados a Marcus Garvey e outros a George Padmore de origem antilhana, sem esquecer as conexões ao marxismo, ou as fracturas criadas pelo internacionalismo do bloco afro-francês de Blaise Diagne. Tais lutas tiveram reflexo directo em Portugal, argumentam os autores, uma vez que o santomense João de Castro, com o seu Partido Nacional Africano, se veio a aproximar da "matriz garveysta" com pouca capacidade para penetrar nas "massas negras das classes populares" Mais: Castro, distanciando-se das posições da Liga Africana, acabou a defender Portugal "das acusações internacionais pelo uso de práticas similares à escravatura nas 'colónias'" (p. 106).   

Todas estas explicações são apresentadas como hipóteses de trabalho pelos autores do livro em causa tendo em vista explicar o modo afável de Du Bois ver as relações raciais tanto em Portugal como nas colónias africanas. Neste sentido, o "racismo à portuguesa" mais parece uma realidade que Du Bois não viu, logo, que acabou por silenciar ou tornar num objecto oculto. Trata-se de uma constatação, no mínimo, paradoxal porque enunciada num livro que tem um argumento principal, a saber, o de desocultar – ou o de descolonizar o silêncio historiográfico que paira sobre – o racismo à portuguesa, nomeadamente o que decorreu da presença africana em Portugal.   

Pouco importa que Du Bois tivesse constatado, em 1925, dois anos depois da sua visita a Lisboa, que havia "Tanto sangue negro antigo nesta Península" (There is so much anciente black blood in this peninsula, Foreign Affairs, vol. 3, 1925, p. 424). Uma observação, bem reveladora da realidade da presença africana em Portugal, com que Du Bois abre uma memória breve da sua visita a Lisboa, mas que os autores parecem não relevar. Pouco importa, também, que os termos em que a obra de Du Bois é referida no livro em causa repitam a mesma tese do silenciamento, ao considerar o sociólogo negro "um académico prolífico, mas silenciado, do panteão da sociologia, que escreveu obras centrais da tradição intelectual negra" (p. 74). Dito de forma mais simples: será que o sociólogo negro que foi silenciado acabou por ser um silenciador, pelo menos, do racismo à portuguesa? É o que este livro dá a entender. 

Ao considerar que Du Bois silenciou o racismo à portuguesa, procurando explicar, tal como se se tratasse de um desvio, as razões desse silenciamento, não estarão os autores do livro a silenciar, por sua vez, aquilo que o sociólogo americano viu ao certo? Não estarão a escusar-se de construir os meios que lhes permitam perceber a intencionalidade do sociólogo afro-americano? Ou, em termos ainda mais genéricos, o que aconteceria se todos os argumentos acerca do silenciamento se virassem contra os próprios autores? É que os mesmos investigadores não referem, porventura por desconhecerem, abordagens anteriores sobre o modo como operaram em Portugal, mais concretamente, em Lisboa, durante a República, os membros da elite negra, sobretudo santomense.

Enfim, sem querer prosseguir neste jogo de espelhos acerca dos silenciamentos, não será melhor pôr de lado as saturadas teses que se filiam nas operações de desocultação, boas para serem postas ao serviço de causas militantes, mas que não servem, necessariamente, os propósitos de uma agenda de investigação científica? É que a rica dimensão analítica do livro em causa, como procuraremos mostrar noutro lugar, pode suscitar críticas e reparos pontuais, mas traz consigo uma solidez que se constitui em base segura para novos trabalhos de investigação. Escusado, por isso, submeter a uma agenda militante uma prática analítica e científica que é urgente intensificar sobre a presença africana em Portugal e as relações raciais que decorreram no império português. 

(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)

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