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O que estou a fazer nas redes sociais? Pergunte antes de julgar

Divulgamos. Avaliamos. Partilhamos. Acusamos. Condenamos. Porque a tecnologia o permite e o nosso sentido de justiça a isso obriga, graças ao poder de denúncia de que fomos investidos por uma entidade superior.

As duas crianças comem sozinhas à mesa. As batatas fritas que acompanham os hambúrgueres que ambas pediram já marcharam quase todas, as saladas estão relativamente intocadas, os copos dos refrigerantes estão vazios. A fome que tinham no início da refeição desvaneceu-se num fósforo. É o que dá comer sem falar, olhos no prato e cabeça na dentada que se segue.

Na verdade não estão bem sozinhas. Mas é como se estivessem. À frente das pequenas está um adulto que se percebe ser o pai, embora na realidade não esteja mesmo lá. Está mas não está. O homem tem os olhos no telemóvel e ora fala baixinho quando faz ou recebe chamadas, ora martela rapidamente os dedos no ecrã. O hambúrguer dele está frio. No final, a pensar no almoço do dia seguinte, pedirá para o colocar numa caixa.

Sempre naquela espécie de mímica, a famosa língua gestual de restaurante que os portugueses dominam tão bem, e que ele usa para pedir também a sobremesa das miúdas, o café, a conta. Sem nunca abrir a boca para o empregado porque precisa dela para as chamadas que vai fazendo.

Parece uma cena de teatro. Seria uma comédia, se não fosse trágico. A partir do primeiro balcão das mesas contíguas, uma de cada lado, os comensais vizinhos assistem àquilo com um ar de admiração e repúdio. Comentam, lamentam, abanam a cabeça. Com a ajuda do telemóvel, uma mulher fotografa discretamente as duas pobres crianças e o pai ausente. O marido diz-lhe para não o fazer, mas o outro casal insiste na missão.

Não é voyeurismo, estão convictos. É serviço público. Em breve as imagens estarão numa rede social com comentários sobre maus tratos, dependência de dispositivos móveis, crianças infelizes e pais negligentes.

É o que é, são os tempos em que vivemos. Para o bem e para o mal, o que fazemos pode facilmente chegar a um palco maior e de repente estamos amarrados a um pelourinho virtual, prontos para ser apedrejados por pessoas que não conhecemos porque fizemos de forma privada o que agora é público – desde que alguém o queira tornar público, graças a um telemóvel, redes sociais, acesso à internet e uma vontade de falar sobre a vida de quem não conhece.

Já uma vez tinha escrito sobre estes implacáveis polícias coscuvilheiros das redes sociais. Afinal, o fenómeno não é novo, caracterizado por essa pulsão incontrolável em julgar o outro.

Vemos alguma coisa de que não gostamos? Fotografamos. Alertamos. Comentamos. Condenamos. Do carro mal estacionado em cima da passadeira ao lixo espalhado no passeio, da marquise feia no prédio bonito ao condutor com a matrícula X, que no dia Y, à hora Z, circulava na rua W em excesso de velocidade.

Da mãe que dá um chupa-chupa a um filho, envenenando assim a criança com o açúcar que lhe entupirá as veias, ao pai que, naquele restaurante, passou a refeição agarrado ao telemóvel enquanto as filhas devoravam hambúrgueres e batatas fritas, sem nunca dirigir a palavra às pequenas.

Tudo isto pode ser visto. Difundido. Divulgado. Denunciado. Porque podemos. Porque é possível. Porque a tecnologia o permite e o nosso sentido de justiça a isso obriga.

Mesmo que o carro em cima da passadeira seja de um condutor que foi ao prédio em frente buscar a mãe, que não consegue andar. Mesmo que o lixo no passeio sejam os vestígios de um cão sem trela que atacou o homem que caminhava com os sacos em direção aos contentores. Mesmo que a marquise feia tenha sido a solução para uma cama extra naquela casa onde agora vive mais uma pessoa, que ficou sem tecto depois da subida das rendas.

Mesmo que o condutor em excesso de velocidade fosse um médico a caminho de uma emergência. Mesmo que o chupa-chupa fosse a forma rápida de contrariar uma descida súbita de açúcar numa criança com uma doença metabólica.

A verdade é que não sabemos. Não sabemos a razão do que avaliamos e condenamos, mas sabemos que, pelo poder de denúncia de que fomos investidos por uma entidade superior, podemos atribuir uma sentença.

Não é fácil perguntar a alguém porque circula a grande velocidade ou porque mandou construir uma marquise. Admito isso. Mas, naquele dia, naquele restaurante, se alguém me tivesse perguntado porque razão estava eu sempre agarrado ao telemóvel enquanto as minhas duas filhas comiam em silêncio, talvez eu tivesse respondido que tinha um familiar próximo no hospital, em situação grave, que estava com a cabeça em água e por isso quis sair de casa com elas, que nem consegui fazer o jantar, que passei o tempo a falar com a família e amigos profissionais de saúde à procura de respostas e soluções.

Mas, claro, para isso era necessário que alguém tivesse feito a pergunta. Em vez de julgar. Por isso, se encontrarem por aí, numa rede social qualquer, uma fotografia minha com as crias num jantar em que não interagi muito com elas, mostrem este texto ao autor.

Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.

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