Não sabemos falar da morte
Um dia morremos. Batemos a bota. Lerpamos. Vamos desta para melhor. Finamos. Falecemos. Perecemos. E até lá continuamos a não conseguir tocar no assunto. Ninguém nos ensinou a falar da morte – e isso era capaz de nos fazer aproveitar melhor a vida.
E um dia morremos. Fim.
É assim que tudo acaba. É assim que todos acabamos.
É o que temos de mais certo. Ou talvez seja a única coisa que tenhamos como certa: chegará a nossa hora, mais cedo ou mais tarde. Tenhamos nós tido uma boa vida ou uma miserável existência, tenhamos nós alcançado momentos de felicidade ou tenhamos nós sorvido alegria aos outros, tenhamos nós enchido o tempo de quem estava à nossa volta com gargalhadas ou com pesar, tenhamos feito tudo isto ou o seu contrário em algum momento das nossas vidas – porque ninguém é sempre bondoso e ninguém é sempre canalha –, tenhamos nós sido uma nota de rodapé num pasquim manhoso ou título de página inteira com direito a odes e poemas... a data chegará.
Um dia morremos. Batemos a bota. Lerpamos. Vamos desta para melhor. Finamos. Falecemos. Perecemos. E, embrulhados em mortalha grosseira ou encaixotados em urna de rico, alguém leva o nosso corpo, seja para a terra ou para o forno. E acaba para nós e começa a dor para os outros.
Apesar de já cá andarmos há muito e de já todos termos perdido gente que amámos e de já todos termos chorado pessoas que nos faltam, continuamos sem saber como se faz isto. Como nos preparamos. Como nos despedimos. Continuamos sem saber falar da morte, mesmo quando ela já espreita e precisamos de lembrar a vida.
Não nos ensinam a falar sobre isto. Nem sobre a nossa morte nem sobre a morte dos outros. Não o fizeram com os que vieram antes e nós também não sabemos fazer com os que chegaram depois. É uma inaptidão.
Talvez a matriz judaico-cristã e a ideia da ressurreição ajudem a justificar o tempo curto que por cá andamos em comparação com a eternidade. Até podemos não ser crentes, mas os nossos pais ou avós ou os que vieram antes deles são ou já foram religiosos (espirituais?) e essa pode seja essa uma das razões para não pensar demais e não falar demais e não sofrer demais por antecipação porque o que vem a seguir é que é bom. E o mesmo se aplica às outras religiões monoteístas: "num mundo sem morte – logo, sem céu, inferno ou reencarnação – religiões como o islamismo, o cristianismo e o hinduísmo não teriam feito sentido" escreve o ensaísta Yuval Noah Harari no bestseller "Homo Deus – História Breve do Amanhã."
O certo é que não falamos da morte e dificilmente alguma geração das que ainda podemos ver antes de nos finarmos alguma vez falará. O assunto incomoda, inquieta, deixa-nos desconfortáveis e por isso o adiamos até ao momento das despedidas ou da dor do luto e da perda.
Talvez se o fizéssemos com outros olhos e sobretudo com outra cabeça pudéssemos sofrer menos com a ideia de um dia já cá não estarmos. E talvez assim sofrêssemos menos com a ideia de os nossos mais velhos um dia terem mesmo de partir. Talvez se falássemos mais do fim pudéssemos viver melhor o início e o durante que são a nossa vida e a dos que queremos por perto.
E quem sabe se assim a morte iria trazer apenas saudades em vez de toda aquela angústia prolongada porque os que amamos nunca mais vão voltar. E com uma vantagem grande, parece-me: decerto aproveitaríamos bem melhor o tempo em que os temos. E em que estamos por cá.
Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.