Cuidar do que se herda. E deixar para os próximos
“Amanhã ou depois já trato do portão. Vou combinar tudo. E também vou ligar ao homem e depois logo lhe digo alguma coisa.”
O Sr. David conversa devagar e nunca atropela as palavras. Quando não pode responder porque está no campo ou com máquinas ligadas, espera um pouco e devolve a chamada quando consegue. E lá encontra um sítio sossegado para dar conta de como vão as coisas.
O homem de que fala é o comprador da madeira. O outro, com quem vai combinar tudo, é o serralheiro que vai reparar o portão. Não conheço nenhum deles, só conheço o Sr. David. É com ele que tenho falado nos últimos meses, foi a ele que mostrei o terreno em agosto, são dele os contactos, é ele que desenrasca os pequenos biscates em casa e arranja as grandes máquinas que revolvem o chão.
Na raia da Beira Baixa, numa aldeia do concelho de Idanha-a-Nova, a caminho de Espanha e a dois passos do rio Pônsul, a minha família tem uma pequena tapada que era do meu bisavô António. Onde havia vinha e azinheiras e figueiras o avô Manel mandou semear trigo e pôs pinheiros e oliveiras. E depois eucaliptos. Calhou nas sortes à minha mãe e foi depois o meu pai a tratar disso. Abrir caminhos, mandar limpar, acertar muros, vender, plantar novamente. Agora trato eu, as minhas irmãs e os meus sobrinhos, que a saúde do Zé já não o deixa.
Numa zona do país onde falta mão de obra e falta quem a encontre, quem tem um Sr. David é um privilegiado. Nós sabemos que somos. Terra que se herda não se vende, mas quem não vive dela e está longe também não pode mantê-la da mesma forma. E longe tanto pode ser Lisboa, Porto ou Algarve como pode ser França, Luxemburgo ou Alemanha. Longe é não viver lá. Longe é não estar no dia a dia. Longe é precisar de alguém que passe e veja e cuide e arranje.
Tudo isto dá trabalho, custa dinheiro, implica tempo. E viagens constantes. O problema não é a falta de amor à terra. O problema é a falta de recursos para a manter. E nó no peito que aperta forte quando os euros não chegam para manter o que se recebeu.
Estamos a habituar-nos a esta coisa de ter responsabilidades que antes não eram nossas. Sabíamos o que há, como se cuida, com quem falar. Mas nunca fomos nós a cuidar. A procurar quem fizesse. A fazer. Foi sempre o nosso pai e a coisa apareceu sempre feita. Nós ganhámos a afeição ao cheiro das folhas verdes na primavera e ao som da lenha seca a partir debaixo dos pés no verão, habituámo-nos a ir cedo para lá em agosto porque a bera do calor não deixava mais, cortámos mãos a limpar giestas e estevas, ficámos com dor de costas a empilhar pedras e a levantar o muro aqui e acolá.
Mas não é a mesma coisa. Não estamos lá. Não vemos os javalis a descer a ribanceira, não esticamos logo a vedação quando os ramos caem no inverno, não chamamos logo a GNR se alguém despeja lixo. Para isso precisamos do Sr. David.
O Sr. David da voz calma que me tem dito como andam as coisas e que devolve as chamadas quando não anda em cima do trator. Depois eu digo ao meu pai, para o manter a par. E um dia, se tudo correr bem, as minhas filhas vão fazer o mesmo. Sujar as mãos, magoar as costas, tratar de quem cuide. Ou cuidar ainda melhor.
Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.