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Cientistas sem direitos, país sem soberania

Os trabalhadores da ciência saem dia 16 à rua em protesto contra a precariedade: 75% têm vínculos precários, centenas estão em risco de ir para o desemprego já no final do ano.

© Créditos: Loic Venance/AFP

Na próxima terça-feira é Dia Nacional do Cientista, data criada em 2016 em homenagem ao ex-ministro e cientista José Mariano Gago, pelo dia do seu nascimento (16 de Maio). Dia que pretende "celebrar e reconhecer o papel dos Cientistas na sociedade portuguesa", dizia na época o projecto-lei do PS, bem como o site do ciclo de conferências anual Streams of Knowledge (em inglês, língua universal da ciência), Caminhos do Conhecimento para celebrar o "legado de Mariano Gago".

"São os Cientistas, por excelência [e com maiúscula], inspirados pela curiosidade e obediência ao pensamento crítico, os principais representantes e atores do processo de descoberta e inovação, agentes de mudança, de modernização e renovação persistente", dizia o projecto-lei de 2016. Este ciclo de conferências serve para "celebrar e reconhecer a contribuição da comunidade científica para o avanço do conhecimento e o progresso e bem-estar da sociedade".

Este ano a conferência é em Évora e a ministra da Ciência e Tecnologia e Ensino Superior, também cientista, Elvira Fortunato, vai lá estar. Perfeito. Evita o incómodo de se defrontar com o protesto nacional de investigadores à porta do seu ministério nesse mesmo dia. Não evita, contudo, os efeitos da precariedade.

A comunidade científica está por um fio. E o Sistema Científico e Tecnológico Nacional está, como na semana passada vários especialistas alertavam, numa audição parlamentar do PCP sobre o Estado da Ciência em Portugal, em risco. Hoje cerca de 75% dos investigadores têm vínculos precários. E segundo dados do Observatório do Emprego Científico e Tecnológico, que envolvem contratados, não apenas investigadores, o nível de precariedade sobe para 95%.

O que é que isto quer dizer – quando a própria ministra afirma que nunca o investimento em ciência foi tão alto? E o que quer isto dizer quando as pessoas ouvem a palavra 'bolsa' ou 'bolseiro' e pensam naqueles "privilegiados", fechados numa biblioteca ou num laboratório, "inspirados pela curiosidade" como diz o projecto-lei do PS, "atores do processo de descoberta"? Quem não deseja uma bolsa assim para ser um actor movido pela "curiosidade" e ainda contribuir "para o progresso e bem-estar"?

Estamos a falar de um "gigante" com pés de barro. A ministra dizia em Dezembro, diante de investigadores com vidas precárias viradas do avesso, que as "oportunidades de emprego" para doutorados em Portugal "nunca foram tantas" – será por isso que todos os dias vemos notícias sobre fuga de talento e falta de mão-de-obra qualificada no país? Será por isso que o Governo quer triplicar doutoramentos em empresas, fornecendo-lhes mão de obra altamente qualificada, mas financiada pelo Estado, que empresários não querem nem vão pagar?

Ao Expresso, Elvira Fortunato disse que "se integrarmos todos [os investigadores] no quadro, matamos a ciência. O sistema tem de ter alguma permeabilidade". "Permeabilidade" é empreendedorês para lógica de mercado: se os investigadores forem muito resilientes e tiverem muito mérito individual, hão-de chegar lá.

E a ciência assim não morre. Ela morre quando os trabalhadores têm contratos permanentes, têm direitos, sabem que vão poder pagar casa e contas a horas, sabem que vão poder ter uma família ou alimentar os filhos, sabem que, quando entram no laboratório para continuar o que estavam a fazer ontem, não têm de começar do zero todos os dias.

É isso que mata a ciência: a estabilidade. Até porque é assim que se faz ciência: todos os dias uma ideia brilhante de um cientista muita perseverante que um dia há-de ser empreendedor.

A ciência em Portugal é feita por trabalhadores com contratos precários, a prazo (1 ano, 3 anos, 6 anos), dependentes de financiamento ("há quando houver"), que passam longos períodos desempregados à espera que chegue a próxima tranche, com vidas e famílias adiadas. Não estamos a falar de "bolseiros" de 20 anos inspirados pela "curiosidade" a fazer um doutoramento para passar o tempo. Nem estamos a falar de ideias brilhantes por causa de uma maçã que lhes caiu sobre a cabeça. Estamos a falar de um Sistema Científico Nacional absolutamente assente nestas pessoas. Estamos a falar de trabalho.

Há trabalhadores científicos com mais de 50 anos que toda a vida foram precários, toda a vida viveram de "bolsas", toda a vida viveram a prazo. No entanto, o seu papel é e tem sido essencial para o país ganhar prémios internacionais, ou atrair "financiamento estrangeiro", sobretudo da UE, para garantir que uma ponte não cai, que o metro funciona, que vacinas se desenvolvem, que medicamentos são criados, que floresta ou solos são protegidos, que a nossa segurança alimentar é assegurada, que sabemos quais os nossos índices de pobreza e como a nossa riqueza é gerada, gerida e (mal) distribuída. Isto é: para garantir a soberania sobre os nossos recursos, do território às pessoas.

Neste momento, a média de idades dos quadros de alguns Laboratórios do Estado é de 52 anos (noutros é 58). Dada a quase impossibilidade de integração de actuais bolseiros, pós-doutoramentos, contratos a termo (todos eles precários) quer dizer que o grosso deste investimento será "deitado fora": depois de passarem pelos laboratórios, os cientistas vão para o estrangeiro onde há condições de estabilidade e, aí sim, a ciência não morre. Nos próximos 10 anos haverá Laboratórios do Estado que, literalmente, não vão ter conhecimento integrado. Porque todos se reformaram ou emigraram.

O mesmo se passa com 90% dos actuais contratos e bolsas: terminarão nos próximos três anos, e sem garantia de emprego e estabilidade, muitos vão abandonar o sector ou emigrar. Mas o dinheiro existe: aliás, paga estes salários. A intenção do Ministério é, como sempre, em vez de olhar a investigação como um pilar da soberania e do desenvolvimento nacionais, criar uma mentalidade de escassez para virar os trabalhadores científicos uns contra os outros numa lógica darwinista da lei do mais forte.

Após tomar posse, Elvira Fortunato dizia que em 2030 Portugal ia cumprir a meta dos 3% do PIB para a ciência (actualmente nos 1,5%), porque “país que não invista em ciência é um país que aposta no fracasso” (jornal Mirante). Só se esqueceu de dizer que o investimento de que falava era para apostar no sucesso dos outros. Em inglês.

(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)

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