Cala-te e mostra os golos
A pretexto furado da neutralidade, o governo britânico tentou silenciar uma voz crítica.
Gary Lineker © Créditos: Oli Scarff/AFP
O melhor jogador de basquetebol da actualidade, LeBron James, deu uma entrevista em 2018 em que discutia carreira, família e as dificuldades de ser uma figura pública afro-americana na tensa sociedade actual. Reservou também uma palavra para o então presidente Donald Trump - chamando-lhe "alguém que não compreende as pessoas, e diz coisas ridículas e assustadoras".
A Fox News, o influente canal de TV da ultradireita, não gostou que o senhor Trump fosse criticado. Imediatamente saltou a terreiro uma tal Laura Ingraham, comentadora política, afirmando que "as opiniões de alguém pago para brincar com uma bola não interessam", terminando por ordenar à super-estrela LeBron, como se ele se tratasse de um jogral ou do seu macaco: "cala-te e dribla, mas é!"
O indivíduo não se curvou perante o sistema, tranquilo na justeza da sua posição. E acabou por vencer: Lineker voltará a apresentar o programa futebolístico.
Algo parecido, só que ainda mais sinistro, voltou a suceder na semana passada. Confrontado com uma proposta demagógica, desumana e degradante do governo Tory britânico em relação aos demandantes de asilo - a de "parar os barcos" (com imigrantes) que tentem atravessar o canal da Mancha -, o antigo futebolista e actual apresentador desportivo Gary Lineker escreveu numa rede social: "Céus, é horrível. Não há um grande fluxo de refugiados, na verdade acolhemos muito menos pessoas que os outros países europeus. Isto não passa de uma política incomensuravelmente cruel, dirigida contra aqueles que são mais vulneráveis, usando linguagem que não é muito diferente daquela usada pela Alemanha nos anos 30."
Gary Lineker, jornalista desportivo da BBC. © Créditos: AFP
Ao anunciar umas ideias que ficam aquém dos padrões mínimos de uma democracia baseada no Estado de Direito, o governo britânico esperava alguma oposição vinda dos quadrantes do costume (a parte da esquerda que ainda mantém valores); mas não que uma figura imensamente popular, e inatacável, viesse a público chamar a isto "desnecessário e imensamente cruel".
Só que, ao tentar alertar para o facto de que regimes autocráticos e hostis aos direitos humanos usam os mesmos argumentos e linguagem que a actual ministra do Interior britânica, Lineker cometeu um erro básico: recorreu à hipérbole mais usada em discussões na internet, a "Alemanha nazi". Com isso deu a quem o queria silenciar uma oportunidade que nunca iria ser desperdiçada.
Lineker trabalha para a BBC, onde apresenta uma espécie de "Domingo Desportivo" há 24 anos. O seu trabalho (em que aliás é francamente bom) é comentar golos, jogadas e tácticas. Defendeu as suas opiniões políticas (as de um ser humano ponderado e capaz de compaixão e empatia) no seu Twitter pessoal = não no seu local de trabalho.
Dois dias depois a BBC - cujo presidente doa milhares de libras ao partido conservador e foi fiador de Boris Johnson; cujo director-geral é filiado no mesmo partido e até já foi candidato em eleições locais; pressionada às claras por toda a imprensa alinhada com os conservadores; e pressionada por trás da cortina pelos próprios ministros conservadores - suspendeu o apresentador do seu programa futebolístico. O pretexto furado é o de manter a aparência de "neutralidade" (não vale rir). Ou também: "Lineker cala-te e mostra os golos, anda!".
Epílogo: o indivíduo não se curvou perante o sistema, tranquilo na justeza da sua posição. E acabou por vencer: Lineker voltará a apresentar o programa futebolístico, enquanto a BBC reverá a sua "lei da rolha" em relação às redes sociais. Já os membros do governo britânico, se estavam atentos à discussão gerada, perceberam que a população é bem mais tolerante, compreensiva, acolhedora do que eles a pintam. E atenta, também…
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
A mudança para o Luxemburgo foi feita aos 21 anos - e logo de comboio, para apimentar a aventura. Ato contínuo começou a escrever na imprensa, sobretudo sobre desporto e viagens, paixões que cultiva com mais fervor que a gestão de empresas que seguiu na universidade do Porto. Agora vive em Bruxelas, onde tenta conciliar a floresta e a grande cidade. Escreve às terças-feiras.