Bricolage é para meninos: a caixa de ferramentas do meu pai
Generosidade, empatia, tolerância, capacidade de argumentar. São algumas das prioridades que espero passar às minhas filhas. Mas se além disso aprenderem também a mudar uma torneira, melhor ainda.
Parafusos para madeira. Parafusos para betão. Pregos de aço. Anilhas de metal. Anilhas de borracha. Porcas. Buchas. Amigos do senhorio. Camarões. Escápulas. Folhas de lixa. Caixas de junção. Chaves de fendas. Chaves phlips. Jogos de chaves sextavadas. Brocas para betão. Brocas para madeira. Brocas para metal. Buchas. Fita de isolamento. Fita Teflon. Cola. Um formão. Um martelo que já foi do meu avô. Uma espátula muito velha. Uma colher de pedreiro.
Esta é a minha caixa de ferramentas. A minha velha e meio destruída e muito cheia caixa de ferramentas vermelha. Tem mais coisas do que as listadas no primeiro parágrafo. Tem mais ferramentas do que as que caberiam no tamanho limite desta crónica. Tem mais materiais e traquitanas do que eu alguma vez vou precisar novamente na vida.
E, no entanto, é a minha caixa de ferramentas. Que antes tinha sido do meu pai e agora é minha e que está recheada com coisas que ele já usou e agora uso eu – ou que eu nunca vou usar mas de que possivelmente nunca me irei desfazer.
O meu pai comprou uma caixa nova depois desta e a minha sobrinha já lhe ofereceu outra. Mas ele não usa nenhuma das duas. Já não usa. Já lhe faltam as forças nas mãos para apertar parafusos, a robustez nas pernas para se aguentar em equilíbrio, a estabilidade no tronco e nas ancas para segurar o berbequim. Ele também tem um novo aparelho perfurante e sim, eu também fiquei com o velho dele.
Tenho o mau hábito de acumular papéis e revistas, de que me custa desfazer, mas o pior hábito de acumular ferramentas e pequenos materiais de reparação que vou atirando para dentro da velha caixa. Tal como o meu pai fez durante toda a vida, enquanto a necessidade de pequenas obras obrigava e o vigor para as executar existia.
Não sei bem se o faço porque isto me faz lembrar dele quando forrava o chão da sala ou dos quartos com jornais para não salpicar com a tinta com que ele próprio pintava as paredes ou apenas porque é uma espécie de ADN da bricolage – palavra com que embirro um pouco, porque é vocábulo para quem pega num martelo quando o rei faz anos e não para quem sabe dar um aperto na torneira em vez de gastar dinheiro a chamar um canalizador. Entre a bricolage para meninas e meninos e a construção para quem percebe do assunto e vive dele, há o mundo extraordinário das reparações e nesse sim, mexo-me relativamente bem.
Graças ao meu pai, claro. Antes das pastas já feitas, foi ele que me ensinou a tapar buracos com cimento branco que misturava com água até atingir a consistência perfeita. Foi ele que me ensinou a fazer as terríveis e chatas de aperfeiçoar buchas de madeira com que aguentou boa parte dos reposteiros e quadros da casa antiga onde crescemos.
Foi ele que me ensinou a afiar uma faca e foi ele que me ensinou a perfurar um azulejo sem o estalar em fanicos. Foi o meu pai que me ensinou a aplicar massa de vidreiro nos vidros das portas que era preciso substituir – coisa que nunca me atrevi a fazer – e foi o meu pai que me explicou como se muda a fita de um estore (com muito cuidado, para o raio da mola não se soltar).
Continuo a tentar com afinco passar às minhas filhas o amor pela velha caixa de ferramentas, mas não estou a ter grande sorte. Ainda não desisti, porém. Se eu chegar aos 92 do meu pai, espero que por essa altura elas tenham caixas próprias e não precisem das de ninguém.
Mas uma delas pode ficar com a minha velha caixa vermelha. Com o espólio incluído.
Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.