Bem-aventurados os apáticos, pois deles é o mundo
Vivemos na era dos pós-escândalos. Ninguém é responsabilizado, ninguém é penalizado. Ninguém quer saber.
Kyriakos Mitsotakis celebra a vitórias nas eleições legislativas de domingo. © Créditos: AFP
Parece quase uma partida de adolescentes com problemas na escola. Meia dúzia de meliantes põem fita-cola nas portas, para que estas não fechem bem; a intenção é poder entrar de madrugada no hotel, e inserir dentro de telefones fixos, daqueles com disco e fio, um par de microfones. À primeira as escutas nem funcionam bem, é preciso arrombar o hotel uma segunda vez. O membro do gang que ficou à coca a ver se chegava a polícia distraiu-se a ver um filme, e quando tentou avisar os capangas já foi tarde demais.
Só que o hotel Watergate albergava a sede do partido Democrata, a oposição aos Republicanos do presidente Richard Nixon, que autorizou a operação de escutas ilegais.
A influência do Watergate é tanta que qualquer escândalo moderno ainda acaba por ficar conhecido por “---gate”. Ver por exemplo: dieselgate, Galambagate... Mas em 1972 o impacto contemporâneo foi ainda maior. Nixon ainda ganhou a reeleição desse ano, mas quando se tornou claro que iria ser destituído, teve de pedir a demissão (algo único).
Mais importante que isso, o processo é considerado como o momento de “perda da inocência” para a sociedade americana. Até esse momento, a democracia funcionava e sobretudo a população – talvez por ingenuidade – confiava nos seus políticos, e acreditava que eles seguiam a missão de decidir o melhor para o país. O Watergate estilhaçou as ilusões, rompeu o contrato social, e revelou a verdade nua e crua: os presidentes são humanos e como tal capazes de estupidez, ganância e perfídia.
O que não significa que isso pudesse ser tolerado. Há meio século, a partir do momento em que o presidente sabia que havia escutas ilegais, era claro que ele tinha de sair: ou se demitia ou, obviamente, demitiam-no.
Avanço rápido até hoje, e a outras eleições importantes na Grécia, outro país democrático dentro da União Europeia. Mitsotakis, tal como Nixon em 1972, é o candidato da direita e é também o primeiro-ministro incumbente, mas a sua reeleição parece impossível: há mais de um ano que estourou o escândalo Predator.
Predator é um malware espião, ou seja um programa invisível extremamente poderoso que uma vez instalado nos telefones infectados envia toda (absolutamente toda) a informação neles contida para o hacker que o instalou. Neste caso, o hacker são os serviços secretos gregos, directamente debaixo da responsabilidade do PM; e as vítimas são políticos da oposição (como o líder socialista Androulakis) e jornalistas de investigação. Isto num país onde, aquando do Watergate, a ditadura militar vigiava ilegalmente metade da população (tal como em Portugal, de resto).
Quando a (pouca) indignação relativa a este drama escabroso parecia já estar a passar, sobreveio a tragédia: o pior choque de comboios da história grega, com 57 passageiros mortos, muitos deles estudantes. A falta de um sistema de sinalização moderno, após anos de promessas, demonstrou a corrupção reinante e a incompetência do governo de direita. Os seus dias pareciam contados.
Só que não. No domingo, Mitsotakis ganhou com 41% dos votos, mais do dobro do segundo partido mais votado; e em novas eleições para o mês que vem, provavelmente chegará à maioria absoluta. Nixon deve estar boquiaberto, lá pelo inferno dos políticos.
Vivemos na era dos pós-escândalos. Ninguém é responsabilizado, ninguém é penalizado. Ninguém quer saber. "Apatia" é uma palavra de origem grega que significa "sem sentimentos".
(Autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.)